Dançando com a Morte Brasileira

Autor(a): Dênis Vasconcelos


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 102: Fusquinha Amarelo

— PAAAASSA!

Num finalzinho de tarde tranquila, embora bem quente, um grupo de amigos jogava bola em um campo de areia intitulado "Campo do Areião". Eram seis jovens, todos de pele morena para negra, e, dos seis, apenas um morava próximo daquele lugar.

Dois moravam subindo a BR-135, indo parar em Tiririca; já os outros três seguiam sempre juntos com os dois, pois moravam em Catolândia — de onde trouxeram o prêmio do jogo do dia: uma Coca e seis coxinhas... Mas, mesmo que tivessem comprado, o comprador real seria o trio que perdesse a disputa.

Era sempre o mesmo script: os que dividiam inicialmente as moedas para comprar os prêmios desciam por horas a BR a pé, para chegar e torcer pela vitória no "dois ou um" ou "pedra, papel e tesoura", para ser quem começava a escolher o time.

Tudo isso... Pois, tendo um jovem que recém completou seus 18 anos no time, era a garantia de que venceria e os perdedores teriam que dar o dinheiro dos alimentos. Esse jovem, que tinha a pele um tanto mais escura que os outros, pois não ia à escola e ajudava em casa, trabalhando embaixo do sol desde cedo, não tinha um físico muito... normal.

Era enorme — um físico que muitos entusiastas de academia e profissionais da área, os maiores fisiculturistas do mundo, matariam para ter... sendo completamente natural. O jovem, embora pobre, gostava de manter seu cabelo bem aparado, baixinho.

Sua blusa, já velha e gasta, mal aguentava seus bíceps, mas era o que tinha — e o que provavelmente passaria para um irmão mais novo quando, de fato, não coubesse mais em seu corpo.

Uma coisa se destacava mais que sua pele esbelta e seu corpo forte, trincado: seus olhos. Seus olhos eram verdes, um verde-água bem sereno, compactuando com seu humor sempre alegre, tranquilo com tudo.

Devido ao seu tamanho, sua posição em campo era sempre a mesma: goleiro. Mas, como goleiro... o jovem era um excelente atacante.

1 olhou para o 2, que pedia a bola, e... vendo a muralha na frente do gol o encarando... Tuf! Puxou a bola toda arrebentada e rasgada, de cor "branca" já no pano e bege de tanto pó, e tocou de letra para o amigo que vinha com sede de fazer um gol e levar aquele jogo pra casa.

Mas...

Sabendo dos riscos de chegar mais próximo, nem mesmo quis pensar muito. A defesa vinha com rapidez, 5 se preparava para chegar e tentar roubar a bola, mas, assim que a bola chegou ao 2, PAF! o menino chutou com tudo... em um tudo ou nada.

Só que seus olhos se abriram abundantemente, o mundo se despedaçava junto com suas esperanças de comer de graça. Seu corpo ficou mole, no tempo que descia do pequeno salto que deu ao forte chute de primeira, deixando uma nuvem de poeira e areia para trás, com a bola amassada e girando, voando na direção do "Boss".

O que viu?

Viu a muralha se esquecer que era goleiro e preparar uma bicuda de primeira, com a bola vindo certeiramente na altura do voleio que o jovem virou.

BUM!

Pushhshshshshsh!

Uma pequena explosão aconteceu... mais um hexágono encardido da bola se desprendeu.

O goleiro rival nem mesmo viu, somente ouviu quando a rede balançou, e a bola, que continuou girando absurdamente rápido, quebrava a gravidade, flutuando no meio da rede ao seu lado, deixando-o com medo de tocar e...

"Isso vai arrancar o meu dedo?" pensou, sua feição igual à mente... aterrorizada.

1 voltou o olhar para 2, vendo o menino ainda inerte, e logo olhou para a muralha, com um sorriso no rosto e as mãos na cintura, com a blusa gritando de dor, quase rasgando por não suportar aqueles músculos e peitoral trincado.

— ...Pivete, vamo ter que trocar um papo — murmurou.

— Guê? — rebateu, se aproximando, e, junto dele, a sombra de 1,84 metros.

— Thales, ocê é goleiro, disgraça! Né chutador, não!

— Oxi... só porque não tá no time — provocou com um sorrisinho.

Harrff... — suspirou, com os braços moles e a cabeça para baixo, não discordando do que escutou.

— Iiiiiiii! O Oreia tá chorando? — brincou 4, ao chegar próximo.

— Rotina — brincou Thales, e Oreia ergueu o rosto um tanto aborrecido... antes de abrir um sorrisinho.

— Num tô, e digo mais! Se são macho, aceitam que quem fazê o próximo gol vence!

— Tá 15 a 0 pra gente, sua mula! Já ganhamos, pra q...

— Eu topo! — Thales cortou seu amigo e logo concluiu: — Mas não vou de goleiro!

— TÁ!

...A resposta foi animada.

Exclamou com um sorriso, que desapareceu quando a rodada se iniciou. Tuf... paf... O toque inicial da partida veio e, no instante em que as bactérias presentes na bola colidiriam com os átomos da pele do garoto... antes mesmo de sentir, de fato, o toque daquela arma de queimar mão de goleiros... Thales roubou a bola, surgindo como furacão, arrastando a areia com o vento atrás da sua trajetória.

Seus dois amigos comeram poeira, fechando os olhos para se protegerem... mas um não tinha proteção. O goleiro rival, vendo a parede correr na sua direção com um sorriso e a bola no pé... estremeceu as pernas, suando frio.

Seus olhos arregalados, o rosto tremendo em pânico, sentindo o chão tremer a cada passo de Thales ficando mais próximo. Em um último suspiro de um ser vivo que lutaria por sua vida, o menino se jogou com um gritinho fino para longe da reta do gol, e o que viu foi aterrador.

BUM!

Uma explosão se seguiu depois que Thales ergueu o pé para trás e avançou como a espada de um samurai executando um general inimigo capturado. O movimento fluido, rápido... e insanamente forte, rompeu a barreira do som nos milissegundos do impacto, e a bola nem mesmo foi vista quando tocou a rede... pois a mesma foi furada, e a velha bola foi perdida da vista de cada um presente ali.

Os jovens encararam a pose heroica de Thales, sorrindo, com as mãos na cintura, as pernas ligeiramente afastadas. 1 se aproximou — foi ele mesmo quem pagou pelo lanche —, então só aceitou a derrota e seus 10 pila gastos.

— Aqui a pouco escurece, vamo comer... depois tenho que caçar minha bola... de novo... — murmurou, de cabeça baixa, rosto desanimado, braços pendendo no vazio do seu estado de espírito.

Thales se aproximou e colocou a mão no ombro do garoto, logo passando por ele na direção de onde deixaram a sacola com as coisas.

— Vô tentar conseguir uma bola nova pro cê, só preciso conseguir um dinheirim, beleza, negão?

1, ao sentir o toque e o olhar rápido passando por ele, ergueu o rosto, meio envergonhado pela situação. Não queria ter aquela "dívida", meio promessa, pois sabia que Thales era o mais pobre entre eles.

— N-não, nego! Tá de boa! Ela deve tá lá pra rua. Eu consigo achar ela, se preocupa não.

Thales notou o afobamento no tom de voz, mas deu um sorriso gentil em troca, e todos se sentaram para comerem juntos, sob uma pequena árvore ali presente. 2 pegou os copos descartáveis e passou para cada um. 1 pegou o refrigerante para distribuir, mas uma surpresa foi sentida, e o rapaz preferiu não dizer inicialmente.

Porém... foi unânime...

No primeiro gole...

— Tá quente pá uma disgraça! — todos reclamaram juntos, mesmo que a Coca tivesse ficado na sombra.

Riram um pouco com isso, mas comeram tranquilos.

O silêncio se seguiu.

Não era um banquete, mas era uma coxinha, e, para quem não tinha muito, aquilo era muita coisa. Era notório que a noite começaria a cair em poucas dezenas de minutos. O vento fresco, farfalhando as poucas folhas das árvores, refrescando o grupo, deixava claro que, se demorassem muito para ir embora, teriam que subir a BR até suas casas no completo breu.

1 se levantou.

— Precisamos achar a bola ainda — comentou com um tom de preguiça... porém, só ele levantou; todos os seus amigos se fingiram de surdos. Com um olhar entediado, disse com mais firmeza: — Vai anoitecer. Querem ser caçados na noite por uma anomalia? Seus pais nunca falaram das que caçam crianças?

— Aaaaaaaah... eu nunca vi uma. Isso é só historinha — resmungou 2.

— Thales? — chamou 3.

Thales o olhou.

— Chora?

— Tu é o mais velho, já viu alguma anomalia?

— ...Acho que não. Sei lá. Já vi no jornal, então deve ser real. Cêis não vê de noite, não?

— Prefiro ver desenho.

— Também.

Thales semicerrou os olhos.

— Desenho de noite?

— É uma assinatura que meus pais pagam, aí tem canais a mais.

— ...Ah. Tenho um videogame, mas faz tempo que não jogo. Deixo meus irmãos brincarem mais. Só que... sei lá. Aparecem, de vez em quando, umas anomalias fugitivas que têm recompensas pra quem tiver informações ou matar elas. Sempre é mais de mil reais... Se surgisse uma assim aqui, e eu conseguisse matar... ia ajudar demais em casa.

Os meninos olharam, meio impotentes, para o amigo. Na tentativa de sair desse assunto, com um leve pesar no clima, um voltou ao chamado inicial:

— Vô ver na internet depois, alguma anomalia. Mas é isso, meu rei. Vai anoitecer e...

Thales se ergueu, girando o braço em alongamento.

— Vão lá. Se amanhã quiserem jogar mais, só aparecer aí.

Todos se levantaram e assentiram com a cabeça. Uma despedida sem palavras, tranquila, amigável e respeitosa. Os meninos logo seguiram juntos para a BR, estreita e sem asfalto. Olhavam para a esquerda da cerca, os matos ressecados e as poucas vegetações e árvores;

A busca pela bola começou e, enquanto isso, Thales seguia à direita, seguindo pela sua rua, que nem mesmo nome havia. Caminhava tranquilamente, sem pressa alguma de chegar em casa. Mesmo que amasse sua família, eram bem barulhentos, e às vezes o rapaz só queria ter silêncio para pensar, silêncio para tentar descobrir uma forma de tirá-los de lá.

Nasceu e sempre morou ali.

Mas, ao saber que seu pai sempre fez o que agora o menino começava a assumir de responsabilidade — que era trazer comida, como tatupeba, que era o animal mais abundante ali por perto, para caçar e levar —, o "recém-chegado" na vida adulta não queria que essa fosse a história da sua vida.

A escolha de nascer... não foi dele.

A religião que acreditava... não veio dele.

A vida que vivia... nada... nada foi escolha dele.

Antes mesmo de nascer, metade da sua vida havia sido escrita pelo contexto, pelo que seus pais queriam e tinham a oferecer. Mas... Thales não queria "ser" como o pai. Não que o pai fosse um monstro — nada disso. O respeito pelo pai era grande; mesmo no perrengue, na mesa sempre tinha o almoço e a janta.

Thales só não queria aceitar essa vida como o pai aceitou. Só não queria chegar na idade do pai, fazendo o que o pai sempre fez, e, futuramente, ser o que os irmãos, ou os próprios filhos de Thales, farão. 

Só não queria que toda a geração futura da família continuasse sendo: o mais forte e mais velho tendo que caçar por comida para alimentar os mais jovens e fracos.

Era engraçado...

No ponto onde se despediram, o asfalto continuava na rua de Thales, porém, distraído em pensamentos, seus olhos — que sempre foram alegres, para cima, sonhadores — estavam abatidos.

O ritmo lento dos passos deixou para trás até onde o asfalto se estendia na sua rua. O jovem morava muito, muito para frente de lá. Ali ainda havia casinhas, pessoas que moravam, mas o barraco onde morava ficava mais isolado, cheio de tranqueiras, quase um ferro-velho, onde seu pai deixava bastante peças de carros para sempre consertar seu velho fusquinha amarelo.

O tempo ia passando, o dia ficando cada vez mais escuro. 

O pôr do sol... lindo, esbelto, não era agraciado com a atenção de suas lindas íris verde-água.

As casinhas iam ficando para trás. Cada vez mais próximo de casa, seu chinelo arrebentado, preso por um prego, deixava pegadas pesadas pelo solo. E... em meio a elas... Thales não percebeu que havia muitas, muitas pegadas de outros seres.

Chegava à sua casa.

O fusquinha meio enferrujado, amassando matos com seu peso, se postava metade para dentro da rua. Mas Thales nem pôde reparar muito nas luzes acesas, na gambiarra de fios colados no teto que seu pai fez. Poucos passos antes de entrar no terreno e ir até a porta... RrrgFu! um rosnado foi ouvido por ele. Vinha de trás, e, junto do grunhido, o vento sendo cortado com algo avançando na direção do jovem.

A reação foi imediata. Seu corpo todo se arrepiou e, ao jogar o rosto para trás, se assustou com a feiura vindo de boca aberta na direção do seu rosto. PAH! O jovem desviou para a esquerda, voltando um golpe por puro reflexo no ser, e, sem dificuldade, aquilo foi arremessado para o lado, caindo no chão e logo se erguendo.

Era uma anomalia conhecida no Nordeste. Uma anomalia que tinha uma fama: procurava e se alimentava de crianças desobedientes, malcriadas. Já havia sido batizada antes. Seu nome era Quibungo, e era bem usada em histórias para assustar crianças e, de certo modo, forçá-las a serem obedientes.

A anomalia era uma Errante 4, porém... naquele dia, apresentava características de Massacre, pois estavam em um bando de nove. Havia uma razão: a lenda e a fama eram verdade. Todas as exterminadas haviam atacado crianças — sempre crianças — e, dentro daquela casa, havia nove. Uma para cada.

Um minuto a mais que Thales demorasse para chegar poderia ter resultado no literal massacre da sua família, caso seu pai não acordasse rapidamente do cochilo sereno que estava fazendo naquele momento.

Thales, levemente em choque, se via cercado. Mas não eram todas iguais — porém, havia traços e características semelhantes. Se assemelhavam a um lobo depois de ser atropelado, maltratado, destruído, reconstruído à paulada e outras coisas aí. 

Mas também... era meio homem. Um humanoide com uma enorme boca cheia de dentes pontiagudos aberta nas costas. Alguns eram mais lobos, outros eram mais humanoides peludos, quadrúpedes... Uma visão bizarra e horrorosa.

A boca nas costas, com os dentes não seguindo padrão algum, tinha a presença ilustre de uma língua asquerosa que ficava limpando os dentes, babando para fora do corpo daquela coisa.

A expressão de nojo e estranheza estampava o rosto do jovem, que não gritou, chamou pelo pai ou fez qualquer barulho que fosse. Manteve o silêncio, observando os seres o rondando. Toda atenção era necessária.

"Esses dentes brilham mais que as facas da minha mãe..." Seus olhos, mesmo com a aura serena de sempre, o brilho da bondade, mostravam sua firmeza, sua coragem.

As anomalias eram medrosas.

Uma particularidade de anomalias Errante — não era à toa que só caçavam crianças. Mas a fome gritava, e os instintos se comunicavam umas com as outras. Sozinhas, só conseguiam uma criança. Juntas... quem sabe o banquete que seus olhos ferozes mantinham vidrados?

Thales percebeu a movimentação.

"Não vão atacar. Estão esperando. Estão com medo de mim... e se estão com medo, é porque eu venço."

O jovem fechou os olhos... deu a elas... uma chance.

Era tudo que sentia que precisava para acabar com aquilo, e era aquilo que todas elas precisavam para atacar com tudo.

Fu-f-fush!

O som de vários saltos... o jovem ouviu. 

Abrindo os olhos, ele viu: todas desciam em sua direção...

Todas desciam na direção dos seus punhos fechados.

BAM!-BAM! BAMBAM!

Mesmo que não quisesse fazer barulho para não chamar atenção da sua família, os sons amedrontadores dos seus golpes amassando a couraça daqueles seres eram muito altos. Os sons dos corpos colidindo contra o chão.

Os Errantes perceberam que não daria para vencer. Mas era tarde demais para correr. Thales não brincou, foi preciso. Só golpes na cabeça — golpes esses que destruíam os crânios daquelas coisas.

O menino era rápido. Não adiantou. Duas delas que sobreviveram ao desvio e ao contra-ataque subsequente em suas faces só deixaram o rasgado e o sangue em vermelho-escuro escorrendo pelo chão e suas pelugens.

Thales surgiu na frente delas, Schscrcrc... deslizou pela terra e seu chinelo arrebentou mais uma vez.

Não importou.

BUM!

Uma delas se espatifou no chão tão fortemente que quase explodiu; a outra, em um ímpeto de adrenalina na vontade de sobreviver àquela batalha, avançou no jovem, realizando um giro no ar, atacando com a boca enorme nas costas, acreditando que, assim, não abriria margem para um contra-ataque.

Péssimo erro...

PAH!

A boca vinha na horizontal... o chute do garoto foi na vertical. Não foi rápido a ponto de romper o som, assim como o chute que deu, na alegria de ter jogado uma rodada na linha e não como goleiro.

Entretanto, a força aplicada era absurda; o corpo daquele ser quebrou, dobrando em torno da perna do jovem. CRACK! Os ossos, diversos dentes se quebraram e também rasgaram a própria carne do ser.

Foi um massacre, e Thales ficou banhado em sangue.

Seus olhos se mantinham vidrados; todas haviam sido executadas. A maioria de forma honrosa, não porque quis assim, mas porque era assim que caçava os tatupebas: avançava, surgia de surpresa em cima de um e, com apenas um movimento preciso na cabeça, executava-as, para não causar-lhes... dor.

Técnica aprendida com o pai.

No meio de todas, Scrinch! ouviu o rangido da velha porta de entrada; seu pai, que acordara assustado com o desespero da mãe ao ouvir os barulhos altos de gemidos animalescos e porradas que quase pareciam tiros abafados, se deparou com o seu filho todo ensanguentado...

Ficou pálido.

Quase caiu para trás de preocupação.

E a mãe, que passou ao lado dele, congelada com a visão, se espantou igualmente. Thales piscou duas vezes, envergonhado. Logo abriu um sorriso, fechou os olhos e ergueu a mão na cabeça. Porém, quando abriu a boca... foi interrompido:

— Eu tô...

— PRO CAAAAAAAAAAARRRO! — sua mãe gritou, histérica. Mais um pouco e um dos moradores que orava naquele momento acreditaria que era a primeira trombeta tocando.

Thales se assustou e abriu os olhos. Seu pai, que era maior que ele — e quando digo maior, digo em músculos — segurou o menino igual a uma pessoa segurando um painel de papelão em formato de humano e o levou até o carro.

— HOSPITAAAAAAL, AGOOOOORA! — sua mãe, desesperada, continuava gritando, preocupada. Seus irmãos entraram no fusquinha, igual a um carro de palhaço, não fazia sentido algum nove crianças entrando sem parar naquele lugar.

A mãe entrou junto, e o pai colocou Thales, igual a um boneco, no banco do passageiro, sentado com dificuldade. O lugar era muito apertado para ele, mesmo todo encolhido naquela situação.

O pai logo entrou também, mas com mais dificuldade ainda. Seus músculos tocando os de Thales, duas muralhas que não permitiam a visão de ninguém que estava atrás de ver sequer o painel do veículo.

Os corpos, todos dobrados, o pai com as mãos no volante tremia de preocupação.

Thales, assustado com aquela reação toda, olhou o câmbio e viu que a chave não estava lá.

Logo abriu a boca.

— A cha...

— C-C-CALMA, MEU FILHO...! VAI FICAR TUDO BEM! VAI FICAR! TÁ! PAINHO VAI TE LEVAR PRO HOSPITAL! — cortou-o em gritos, lágrimas se formando em seus olhos.

Thales se mantinha com os olhos bem abertos.

"Oxi..." — A chave, pai. Tá aqui não.

O pai olhou para o câmbio e logo abriu a porta, saindo com dificuldade de dentro do carro a ponto de, Blup! soltar um som igual a retirar a rolha de um vinho e a suspensão guerreira do fusquinha gemer, quase gritando que não ia aguentar mais.

O pai entrou e saiu rapidamente, voltou para o carro e encaixou a chave; entretanto, não conseguia dirigir. Começou a lacrimejar; a preocupação tampava sua concentração, então olhou para seu filho.

— Thales, dirige, eu não tô conseguindo.

— Ma...

— Precisamos levar ocê pró hospital, misera, anda logo!

O jovem continuava sem entender nada, e a noite chegava cada vez mais.

Trocou de lugar com o pai e logo, Frrrvru-fvivivirr-vrrumnmmn... conseguiu ligar o carro e sair com ele rumo à BR, para subir até Catolândia; porém, não existia hospital e muito menos posto de saúde lá. Os mais próximos, ainda assim, ficavam há horas de onde moravam.

Thales só seguiu rumo até lá, não estava machucado, mas seus pais não o deixavam falar, então só aproveitou para dirigir um pouco e passear.

— Acelera, misera! Precisa ser socorrido!

Vruuu! acelerou, assim como o pedido, mas olhou de canto para o pai. Era nítido o desespero e o medo no rosto do homem. Ver o filho "machucado" causava dor física por não ter conseguido protegê-lo.

"Era pra eu ter me machucado!" pensou o pai, segurando o choro dramático que, mesmo assim, transbordava de seus olhos bondosos.

Thales cortava a BR, o rastro intenso de poeira sendo deixado para trás, e não demorou muito para passar rasgando pelo lado dos seus amigos, que ainda estavam bem longe de casa. O jovem olhou pelo retrovisor; os meninos acenavam para ele, com a bola encontrada sendo erguida, e também se assustaram... não com a velocidade... mas com o que viam no vidro traseiro.

O fusquinha, lutando pela vida, continuava aguentando cada pequeno salto, cada passada em um pequeno buraco... mas toda sua valentia e resistência não duraram muito. Era velho, seu auge já havia passado... e o veículo... se despediu, morreu, deixou-os na mão.

Fvvru-frvr-tivviviv...

— Não tá pegando — murmurou Thales.

— Não... Não... Oh meu Deus... T-Thales! Desce e empurra!

Thales olhou para o pai.

— Q...?

— Anda, filho! O médico! Temos que chegar lá logo! Empurra o carro! Precisamos cuidar docê! Eu assumo o volante!

— M...

— THALES, NÃO TEMOS TEMPO, MISERA! — berrava aos prantos. — Meu filho... eu não quero que ocê deixe esse mundo antes do pai.

Thales só aceitou o drama, os olhos entediados.

Blub!

Saiu do carro com dificuldade, Schhhhi! e seu pai se arrastou pelos bancos e teto para conseguir chegar do outro lado. Assim que o jovem chegou na traseira, teve um susto abrupto: seu caçula estava sendo esmagado no vidro, a bochecha quadrada, os olhinhos sorrindo assim como o sorriso dos dentes.

O menino, assim como os irmãos, todos espremidos lá atrás, deu um joinha com sua mão impossibilitada de movimento, mas Thales conseguiu ver no vidro e voltou um sorriso meio assustado para a criança.

— PODE EMPURRAR! — gritou o pai.

Thales começou a empurrar calmamente, indo andando com o carro, enquanto o pai tentava dar partida. Depois de algumas tentativas... conseguiu, e... saiu acelerando, rasgando a BR para salvar seu filho.

C-Cof!

O menino comeu poeira, abanou em frente ao rosto com a mão direita e viu o fusquinha saindo voado, tombado para a esquerda devido ao peso do pai.

— ...Barril.

Três minutos depois, o pai olhou para o lado para ver seu filho machucado... e quando não o viu, Skirrrrrrrrrrrrt! freiou bruscamente, balançando o cérebro de todas as crianças sendo esmagadas atrás.

— TH-TH-THAAAAAALEEEEEEESSSSS!


Thales, que vinha andando calmamente, ouviu o berro e, com ele, viu o fusquinha vindo de ré, quase mais rápido do que estava indo de frente. Decidiu parar e esperar, porém... no reflexo, Fush! teve que se jogar para o lado, pois seu pai quase o atropelou.

Assustado, arregalou os olhos, com o corpo meio deitado no chão.

A porta do carro abriu, seu pai correu na direção dele.

— FILHO! FILHO! DESCULPA! DESCULPA!

— Pa...

Thales foi segurado igual a um bonequinho novamente e posicionado no passageiro. Seu pai assumiu o volante novamente e, novamente, tremia de medo, começando a lacrimejar. Olhou para Thales.

— DIR...

Trlak

Thales abriu a porta, cortando-o na fala, e logo assumiu o volante.

"Que diacho é issu?! Já tô brocado de novo..."

Chegaram na cidade após mais alguns minutos. O pai apontava onde o menino devia virar e ir, até que chegaram na Prefeitura Municipal, onde o menino estacionou em frente, e o pai confundiu aquele lugar com um hospital.

Thales saiu do carro e, assim que a porta traseira abriu...

Bom!

Uma pequena explosão de crianças voando e saindo rolando aconteceu. Sua mãe saiu correndo atrás dos meninos, indo visitar a cidade, e seu pai surgiu na sua frente, com as mãos em seus ombros e os olhos carregados novamente.

— V-Vai ficar tudo bem!

O mais velho nem disse nada, só sentiu seu corpo ser erguido novamente, todo estático, duro igual rocha, e seu pai o carregar de lado, sob um braço, igual a um skate.

— SOCORRO! MEU FILHO FOI ATACADO POR ANOMALIAS!

— ANOMALIAS?!

— ANOMALIAS!?

— ANOMALIAS?!

O berro foi ouvido por toda a cidadezinha. As ruas se lotaram de gente, o prefeito e todos surgiram como baratas de um bueiro. Thales foi colocado em pé, e uma câmera surgiu ao seu lado, com uma repórter apontando um microfone para ele.

Era tudo que a cidade queria, algo novo, atenção para que o governador da Bahia desse mais atenção para aquele lugar. Não podiam perder aquele furo, aquela matéria exclusiva: "O menino que sobreviveu a um ataque de anomalias".

— Meu jovem, qual o seu nome e sua idade? — perguntou ela.

Thales, completamente assustado com aquilo, não raciocinou de imediato. Seus olhos, quase saltando da sua face, diziam por ele:

"Da onde esse tanto de gente saiu...? Quan... Quando esse treco apareceu na minha frente?" Ainda travado de susto, ficou em silêncio, pensando, e a jornalista mantinha um sorriso exageradamente forçado e imenso em seus lábios.

Voltou o microfone para ela.

— Desculpa, talvez ainda está assustado com tudo is...

— N-não... — ele balbuciou, e imediatamente o microfone voltou para ele. — Meu nome é Thales, tenho 18 anos. Não tô machucado, esse sangue não é meu, é dos bichos que matei.

Aquelas palavras fizeram todos vibrarem. Sorrisos, espanto... a felicidade escancarando ainda mais o sorriso com um pouco de face da repórter.

— V-você matou uma anomalia?!

— Eram várias. Eu tava voltando pra casa, aí broto do nada um monte de lobisomem, sei lá. Era muito feia, peluda, com uma boca gigante nas costas. Devia ser mais de dez, não contei, só matei tudo.

A moça quase caiu para trás... uma coisa que Thales não sabia: a matéria já estava na televisão, ao vivo, com destaque, pois... era raro notícias assim, e também... uma outra coisa que o menino não sabia: uma mulher, preguiçosa, cheia de perrengues, precisando de um aluno forte, assistia aquilo naquele momento, e ela precisava... de um aluno como ele.

Em sua cadeira, dentro do seu escritório na ADEDA, Mirlim colocou o celular no ouvido enquanto acompanhava a reportagem pelo monitor do computador, onde buscava potenciais para ser o seu escolhido, procurando por baianos que lutaram ou sobreviveram a uma investida de anomalias.

Nem piscava, só olhava diretamente para o menino ensanguentado.

A ligação foi atendida, e sua ordem foi dada silenciosamente no momento que a desligou.

Dois agentes da ADEDA entraram em sua sala, um de pele clara e o outro de pele escura. Chegaram na mesa de Mirlim, prestando respeito e aguardando a mesma decidir a hora de falar.

Mirlim girou o monitor, mostrando-os o menino na tela, e com uma voz arrastada, que fez os dois estremecerem de medo, ordenou:

— Traga-o até mim. Não importa se a família não quiser, o valor ou o que for. Quero ele na minha sala até amanhã de manhã. Escutaram?

— S-sim, senhora.

— S-sim...

— Escutaram?! — Mirlim aumentou o tom de voz, mas não a ponto de gritar. Seus olhos já eram uma ameaça constante.

— Sim, senhora!

— S-sim, Srta. Mirlim!

Mirlim olhou com um olhar menos severo para o agente negro, que respondeu com "senhorita", e logo os dois homens saíram apressados de lá, indo direto até o heliponto da escola, para executar o ped... a ordem da segunda mais forte.

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