Volume 1

Capítulo 08: OZ

As lembranças despertaram Grimm na manhã seguinte à ordenação. Ele não sabia por que, mas vinham-lhe à cabeça cada vez com mais frequência: a figura do pai exigindo nos treinos diários, as incontáveis flexões que ele mesmo adotara como válvula de escape para o stress… Não havia tempo para se deter nisso, ainda assim era inevitável. Há quatro anos decidira que, se fizesse alguma coisa, seria por escolha própria — lição que aprendera com o rei Magnus.

Acolhido aos oito anos como Dragão, Grimm passara os últimos dias do rei Maximoff e os primeiros de Magnus a admirar as histórias do clã. “A rainha Wanda adoraria conhecer vocês; sempre quis ter filhos e netos.” Ver os dois pupilos crescer era, para Magnus, cumprir o desejo que Drakkon partilhava sempre que podia. Grimm e Laki também sonhavam em conhecer a “avó”, pois viam em Magnus e Alice os pais perfeitos.

Ele, Laki e Haru partilhavam o facto de não terem nascido no clã, mas suas trajetórias eram tão diferentes quanto as estações do ano — tal como as suas personalidades.

Naquela manhã, Magnus e Alice convocaram os três Dragões para uma reunião. O objectivo era designar os mestres encarregados dos novos treinos. Haru já sabia dos planos do rei, e por isso não se surpreendeu; Laki e Grim, porém, sentiam certa apreensão, e a tranquilidade do recruta acabou soando irritante aos dois.

— Reunimo‑nos ontem, durante as festividades — explicou Magnus, ajeitando a papelada. — Queremos lapidar as qualidades de cada um sem deixar ninguém para trás.

“Não posso depender para sempre da bênção da Deusa Fada”, pensou Haru, soltando o ar. Não ficara satisfeito com a forma como haviam vencido, mas orgulhava‑se de ter contribuído mesmo fora de forma.

— Comecemos pelas atribuições — prosseguiu o rei, ajustando os óculos. — Alice ficará responsável por Laki.

Rainha e arqueira trocaram um sorriso; o laço entre ambas tornava a escolha óbvia. Magnus continuou:

— Grim.

O monarca fitou o discípulo mais antigo por cima das lentes.

— Ragna conduzirá o teu treino.

— Certo…

Laki percebeu o leve cerrar da mão do amigo sobre a perna: sinal de que engolia o desconforto, ainda que estivesse longe de aceitá‑lo por completo.

— Haru — disse por fim, voltando‑se para o novato. — Oz cuidará do treino de espada; eu próprio orientarei o teu controlo de mana. Alguma objeção?

— Nenhuma — responderam Laki e Haru em uníssono.

— Nenhuma… — acrescentou Grim, num tom quase inaudível.

— Ao final de cada dia — concluiu Magnus — Ragna dará uma sessão conjunta de fortalecimento físico para os três.

O rei então dispensou os pupilos. Laki seguiu Alice para o salão privado dos monarcas; Grim encaminhou‑se ao ginásio principal; e Magnus fez um último aparte a Haru:

— Oz estará nos estábulos. Procura‑o assim que possível; ele explicará os primeiros passos.

O Dragão Branco assentiu e partiu em silêncio..

O Espada Real desceu as escadas com as mãos nos bolsos, caminhando em direção aos estábulos. Vestia roupas leves, embora se sentisse desconfortável com o quanto a camisa lhe parecia folgada no corpo — prometera a si mesmo resolver isso com treinos físicos.

Ao entrar nos estábulos, viu alguns dos cavalos reagirem à sua presença. A companhia dos animais lhe trazia certa nostalgia, lembrando as poucas vezes em que visitara sítios ou passara pelo canil de sua antiga cidade. Havia também algumas casinhas de cachorro espalhadas ao redor da estrebaria.

Seus olhos percorreram o local. Pensando estar sozinho, começou a explorar a estrebaria enquanto executava pequenas tarefas. Encontrou sacas de ração canina e reabasteceu o feno dos cavalos. “O castelo é de todos, então fica a nosso encargo cuidarmos dele”, Ragna dissera na noite da festa, quando Haru o ajudara a limpar o salão. Sentindo-se útil ao realizar aqueles afazeres, Haru não pediu permissão nem fez perguntas — simplesmente agiu.

— Então, você chegou... — disse uma voz grossa e rouca, interrompendo-o antes que pegasse o último bloco de feno.

 

Um homem de aparência robusta, aparentando cerca de 45 anos, parou na entrada dos estábulos com uma das mãos apoiada no focinho de um cavalo. Tinha uma estrutura corporal forte e atlética que disfarçava a idade, diferente dos cabelos onde já despontavam fios grisalhos entre o preto do corte degradê e da barba rústica. As mãos e o rosto, castigados pelo sol e pelo tempo, somavam-se às cicatrizes visíveis nos braços, dando-lhe uma aparência de veterano de guerra. Usava uma camisa cinza ajustada ao corpo com o brasão do clã nas costas, parcialmente coberta pelas bainhas cruzadas de duas espadas; calçava uma calça tática preta justa, presa nos tornozelos acima dos coturnos amarrados.

— O senhor deve ser Oz... — disse Haru, inclinando-se para reverenciá-lo, mas o guarda-caça levantou a mão para detê-lo.

— Venha comigo...

Oz mascava alguma coisa enquanto conduzia o recruta. Caminharam até saírem pelos fundos do castelo, passando por algumas pequenas jaulas vazias que estavam sendo limpas próximas à porta. Dali, estendia-se um campo de grama verde-esmeralda que antecedia a floresta, a qual seguia até a base de uma das montanhas ao sul do castelo.

O guarda-caça puxou uma das espadas das costas e lançou-a para Haru. O peso quase o fez deixá-la cair.

— Essa é minha espada para caçar bestas — disse Oz, cuspindo no chão o que estava mascando. Em seguida, tirou a outra espada das costas. — Como pode ver, esta é propositalmente mais leve.

— Mas... por que está me dando isso? — estranhou Haru, confuso.

— Você precisa de uma arma para treinar, não precisa? — respondeu Oz, bocejando enquanto levava a mão ao ombro oposto e o estalava. — Vai ser bom fazer algum exercício depois de tanto tempo.

Haru puxou levemente a lâmina da bainha, revelando seu brilho prateado. A forma como refletia o sol deixava claro: era feita de prata pura. O cabo, de ferro, tinha sua base próxima à guarda confeccionada em madeira. As hastes da guarda formavam um “V” próximo à lâmina, feitas de ferro também, e convergiam para um losango no centro, onde o brasão do clã estava finamente entalhado.

Oz tirou um cigarro do bolso, acendeu‑o com o isqueiro e soltou a primeira baforada antes de erguer a voz:

— Fique em guarda, garoto. Quero ver primeiro o que você sabe.

— Espere...

A advertência do recrutado mal saíra quando o guarda‑caça avançou e o atingiu com o ombro no peito. O impacto o fez engasgar, mas ele manteve a espada firme na mão esquerda. Conseguiu prever o golpe seguinte e, ainda com a lâmina embainhada, levantou o cabo para aparar o ataque.

— Não vou me conter por muito tempo, meu jovem — avisou Oz.

— Não quero machucá‑lo.

O espadachim novato puxou a lâmina e largou a bainha no chão, mas mal se firmara quando o mestre voltou a pressioná‑lo. As espadas se chocaram em alta velocidade; mesmo fora de forma, o recruta conseguiu bloquear cada estocada, até que a força crescente dos impactos o desequilibrou. Vendo a brecha, Oz deslizou a lâmina pela guarda de Haru e desferiu um corte de cima para baixo.

O rapaz quase caiu; a mão livre tocou o chão em busca de apoio. Mesmo sem ver, sentiu o movimento de Oz com clareza. Girou a empunhadura, segurando a espada de modo invertido, bloqueou o golpe e passou ao contra‑ataque. Ajustou a guarda no meio da ação e, então, seus golpes começaram a encontrar o caminho, forçando o veterano a recuar e procurar outra abertura. Ainda enferrujado, Haru perdeu de novo o equilíbrio, precisando impulsionar‑se para trás com um salto e erguer a espada em riste.

“Vai ficar brincando de herói até quando, meu filho?” A voz de seu pai soou tão nítida que ele quase enxergou a figura paterna sobre os ombros do mestre. “Sortis não vai sorrir pra você o tempo todo.”

Respirou fundo, fechou os olhos e mudou a postura. Agora mantinha a lâmina perto do rosto, ambas as mãos no cabo. Oz, surpreso com a pressão que emanava do aluno, apagou o cigarro na sola da bota.

— Muito bem, garoto... Vamos ver do que você é mesmo capaz! — gritou o caçador, incitando o ex‑militar a avançar.

Haru iniciou o ataque com um giro ágil, fazendo com que a lâmina de Oz cortasse apenas o ar. O recrutado desferiu golpes intensos, tão fortes que faiscavam ao se chocarem com a espada do mestre. Instintivamente, liberou uma pequena quantidade de mana — o suficiente para aumentar sua resistência e suportar os impactos.

Ao perceber que o aluno aguentava o ritmo, o caçador experiente esquivou-se de um golpe e, com uma rasteira precisa, derrubou Haru de costas no chão. Antes que ele pudesse se levantar, a ponta da espada de Oz já estava em seu pescoço.

— Qual é o seu nome, garoto? — perguntou Oz, girando a espada na mão antes de embainhá-la.

— Haru... — respondeu o jovem, ofegante, batendo o punho fechado contra o chão. — Haru Kurotska.

— Oskar Zorin — disse o homem, estendendo a mão. — Mas todo mundo me chama de Oz.

Ele o ajudou a se levantar com um tapa amigável no ombro e pediu a espada de volta. Em seguida, passou as primeiras instruções: exercícios de fortalecimento, focados em recuperar a forma física do jovem. A falta de equilíbrio de Haru era preocupante, mas seus golpes revelavam anos de prática — como alguém que aprendeu a lutar ainda criança, até que os movimentos se tornassem naturais. Haru, por sua vez, obedecia às ordens sem protestar ou demonstrar incômodo.

Quando o sol atingiu o auge, Haru caiu no chão, encharcado de suor e ofegante. Oz lhe entregou um cantil gelado.

— Tome — disse o caçador. — É água com pétalas de cinzal de Ita. Vai te ajudar a revigorar.

— Obrigado — murmurou Haru, sentando-se devagar.

— Beba devagar. Se não, vai irritar a garganta.

Ele tossiu levemente, mas sentiu o corpo resfriar aos poucos, como se uma leve fumaça escapasse de sua pele.

— Não é a sua primeira vez com uma espada — comentou Oz, sentando-se na grama ao lado dele. Tirou um pequeno fardo de Erva-Raiz de Fauno do bolso e começou a raspar com o punho do punhal.

— Como...?

— Fui mercenário, garoto — respondeu o caçador, juntando as raspas em uma folha de seda. — Reconheço experiência quando vejo uma.

— Meu pai... — Haru suspirou, limpando o suor da testa com o braço. — Ele me ensinou a lutar com espadas desde os meus sete anos. Dizia que eu precisava aprender a me defender.

— É curioso — comentou Oz enquanto enrolava o cigarro improvisado. — Alguns pais ensinam os filhos a dar um soco...

— Eu só fazia porque achava divertido — disse Haru, dando de ombros e se endireitando.

— Parece que herdou essa “estranheza” dele, então — Oz acendeu o cigarro e ofereceu ao pupilo, que recusou com um gesto.

— Treinar com espadas fazia ele se sentir jovem. Eu me lembro do sorriso dele enquanto lutava — disse Haru, devolvendo o cantil.

— Bem... vou ter que agradecer a ele por isso — comentou Oz, pegando o cantil de volta. — Facilitou bastante o meu trabalho.

Ele estendeu o punho para Haru, esperando o cumprimento. O jovem hesitou, mas tocou o punho do mestre com o seu.

— Quando puder, vá aos estábulos — disse Oz, colocando as mãos nos bolsos e ajustando as espadas nas costas. — Vou te mostrar direito o lugar e nossos afazeres.

Haru assentiu, observando o guarda-caça se afastar em direção ao castelo. No mesmo instante, Magnus surgiu pelos portões dos fundos e caminhou em direção a ele. O rei parou para trocar algumas palavras com Oz à distância — Haru até conseguiu ver um sorriso discreto nos lábios do monarca durante a conversa.

Tentou se levantar, mas Magnus fez um gesto com a mão, pedindo que permanecesse sentado.

— O que faremos agora não vai exigir esforço físico seu, não se preocupe — disse o Dragão Rei, aproximando-se. Vestia uma blusa vermelha de algodão e calça jeans. — Pelo visto vocês se divertiram.

— Meu corpo diz outra coisa.

Magnus soltou uma risada contida e colocou as mãos nos bolsos.

— Me diga, Haru — começou o rei, dando alguns passos ao redor do pupilo e observando-o por trás. — O que você sabe sobre mana?

— Apenas o que Alice me contou no dia em que fui recrutado — respondeu o jovem, balançando a cabeça para afastar o suor dos cabelos.

— Ótimo — comentou o Dragão‑Rei, ainda observando as costas do recruta. — Feche os olhos, Haru, e relaxe.

Haru obedeceu, expirando todo o ar dos pulmões. Sem que percebesse, a mana escapou lentamente do seu corpo, espalhando‑se como uma névoa tênue. “Estranho… para alguém que teve os canais abertos só três dias atrás, ele libera muita energia”, pensou Magnus, afastando‑se para não entrar no raio daquele manto.

— A mana é a energia que extraímos da Criação — explicou o rei. — Quando a usamos, devolvemos parte de nós a ela. Esse “contrato” nos permite lutar e proteger quem não pode se defender. Todos os seres vivos participam dessa troca.

Magnus avançou alguns passos dentro da aura. O súbito enrijecer dos músculos de Haru confirmou o que ele e Alice suspeitavam: o jovem era um abençoado pela mana. Restava descobrir quão sensível ele seria.

— Um humano comum, como você ou eu, consegue manifestar apenas dois elementos — disse o mestre, parando a poucos metros do rapaz. — Concentre‑se e deixe a mana fluir bem devagar.

O Dragão Branco inspirou fundo. Mesmo de olhos fechados, sabia exatamente onde Magnus estava; sentia a distância até o castelo e até a árvore mais próxima, como se a relva lhe contasse segredos enquanto roçava sua pele. O véu de energia foi encolhendo até contornar apenas o corpo de Haru, subindo num fio finíssimo que, sobre a cabeça, parecia tocar o céu.

Magnus agachou‑se diante dele.

— Abra os olhos, por favor.

O azul das íris de Haru refletia um céu pontilhado de nuvens, como um mar espelhado no horizonte.

— Laki e Grim têm olhos iguais aos seus, mas vocês ainda não enxergam o mesmo destino — murmurou o rei. Produziu então uma pequena chama na palma direita e atirou‑a em arco suave. Haru ergueu os braços, certo de que seria queimado. Para seu espanto, a labareda pairou diante dele, pesada, quase sólida. Mal conseguiu sustentar o fogo na própria mão.

— Empregue a sua mana nessa chama — ordenou Magnus, pondo‑se de pé e cruzando os braços. — Faça‑a sua.

— Mas… como? — Haru ergueu os olhos, pedindo ajuda.

— Você é quem deve descobrir.

Ele suspirou e tornou a fitar o fogo. Não sentia calor algum: era só uma silhueta dançando. Tentou preencher o que faltava. Aos poucos, percebeu calor na palma; a chama ganhou contornos, mas ainda não lhe pertencia. Quando apertou os olhos, viu sua mana avançar contra a de Magnus e ser repelida; a pequena porção que conseguia tocar moldava o fogo, mas com esforço.

— Basta por hoje — disse o rei, dissipando a chama com um gesto. — Você tentou impor a própria vontade, em vez de fundi‑la à chama. Quando aprender a diferença, entenderá de verdade o que pode fazer.

O calor residual em sua mão era estranho, mas Haru tentou ignorar a sensação. Estava apenas engatinhando num mundo onde muitos já corriam. Magnus iniciou então exercícios de meditação para que ele encontrasse a intensidade correta da própria mana — ainda instável, mas promissora.

Compreender e agir caminham lado a lado no domínio da energia. Haru não sabia, mas, em meio aos próprios conflitos, os três Dragões buscavam o mesmo mar tranquilo, sem ainda enxergar o caminho até ele.

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