Volume 1
Capítulo 8: O Passado na Noite Estrelada
Três dias se passaram desde que nos mudamos da caverna, encarando novamente nossa vida nômade. Durante esse período, o silêncio se instalou na minha cabeça, sem mais perturbações para nos afligir.
Sem mais Chamado do Vazio.
A primeira vez que a misteriosa voz se manifestou foi no planeta vermelho. Naquela época, acreditei que fosse apenas um delírio da minha mente e não lhe dei muita importância. Contudo, quando o Livro começou a falar e as vozes desapareceram, percebi que talvez estivesse maluco.
Foi apenas na segunda aparição que pude desvendar a verdadeira natureza dessa entidade.
“Será que ela se foi... mas isso não faz sentido.”
Em todas as ocasiões anteriores, perdi ou não possuía o Livro, e nesses momentos a voz desapareceu, aparentemente, devido ao Livro. No entanto, o que teria causado essa mudança dessa vez? Qual foi o gatilho para tal…
— Ei, você quer? — Vaeli estendeu um espeto de carne grelhada em minha direção, prestes a enfiar em minha boca.
— Não, obrigado — respondi, afastando o rosto. — Não estou com fome.
— Antes você tinha mais fome…
Desanimada, ela afastou o espeto, com um olhar insatisfeito. A jovem levou a comida à boca com uma expressão pensativa, seus lábios se movendo suavemente enquanto mastigava, perdida em seus próprios pensamentos.
Após passar tanto tempo com Vaeli, percebi algumas coisas. Sempre que havia comida, ela não desperdiçava; comia tudo o que cabia em sua barriga. E mesmo que não estivesse com sono na hora de dormir, ela dormia. Era uma criança muito disciplinada para alguém de sua idade.
Sem um abrigo adequado, fomos obrigados a acampar sob as estrelas. Para compensar a atenção tripla que precisava ter com ela, minha mente fervilhava dez vezes mais. Decidi fazer uma pausa na busca pelo Livro até que tudo estivesse resolvido. E para isso seria necessário o novo fator que estava em falta antigamente: comunicação.
A menina é uma genia, isso tinha que admitir, mas esse é um golpe fatal para meu orgulho.
Sempre pensei que aprenderia primeiro do que ela, e depois eu a ensinaria a língua que falo. No entanto, não esperava que ela fosse mais esperta do que eu! O pior de tudo é o fato de ser velho... Talvez o bastante para ser considerado pai ou avô.
É deprimente ser um adulto sendo ensinado por uma criança. No entanto, não fiquei bravo com ela, pelo contrário, fiquei feliz. Agora que ela pode me entender, poderemos esclarecer muitas coisas que eu queria saber, e uma delas foi a pergunta que mais desejava ter respondida.
“Hoje parece um bom dia para perguntar.”
— Vaeli… — A garota se virou na minha direção, seus olhos cheios de curiosidade. — Há muito tempo queria te perguntar algo... Por quê?
— Por que? — perguntou, intrigada, enquanto mastigava a carne.
— Por que veio comigo? Por que você foi até mim naquele dia e por que continua ao meu lado? — Essas perguntas têm me assombrado, mas finalmente chegou a hora de encontrarmos as respostas.
— Porque... eu quis... — Sua voz era suave, quase como um sussurro.
— Sim, isso faz sentido... — Minha resposta saiu antes mesmo de eu processar completamente a informação. — O quê? Como assim?
No momento em que fiz a pergunta, pude observar uma mistura de desconforto e tristeza surgir no rosto dela. Seus olhos, antes brilhantes e vivos, agora se tornaram opacos, carregados de uma profunda melancolia. As sobrancelhas se franziram enquanto ela lutava para conter as emoções que começavam a transbordar. Por um breve instante, seu olhar desviou, enquanto suas mãos inquietas brincavam e apertavam o palito com força.
— É... difícil de explicar. Faltam palavras... — Ela se virou para mim, olhos marejados refletindo a luz da fogueira.
— Entendo... — Na verdade, eu não entendia.
Em termos simples, esta é a primeira vez que temos uma conversa assim. Não sei o que dizer ou fazer. Sinto-me desconfortável em pressioná-la a falar, então talvez seja melhor encerrar a conversa. Droga. Se eu tivesse algo para dizer, apenas diria. Deveria ser simples assim.
“Não é como se fôssemos estranhos. Se é um segredo sou o melhor para guardá-lo. Primeiro, eu precisaria falar a mesma língua dela antes de compartilhar o que ela está prestes a dizer.”
— Eu... tinha uma mhar... — A menina começou a explicar, mas a interrompi.
— O que é isso?
— Hum... como se chama alguém que te deu vida?
— Mãe?
— Isso, mhar é mãe.
“Agora entendi o que ela queria dizer com 'faltam palavras'.”
— Eu e ela vivíamos juntas, éramos felizes... até que ela ficou doente. — Ela limpou uma lágrima solitária que escorria no canto do olho. — E então um... como se chama alguém que não é parente de sangue, mas cuida de você?
— Depende do contexto, mas acho que se refere a um responsável.
— Sim, meu... responsável... — disse a palavra com raiva na voz — cuidou de mim até que um dia ele não me quis mais por perto...
— Eu... — Fechei minha boca instantaneamente. Não me sentia no direito de dizer algo. — Desculpe, continue... mas só se quiser.
— Não, está tudo bem. Isso aconteceu quando eu tinha cerca de 6 de idade… já passou.
Isso não me deixa menos preocupada!
— Ele me entregou aos D’lá e os ameaçou, dizendo que se eu aparecesse na frente dele, ele os mataria.
Franzi a testa com essa informação. Como eles a deixaram vir comigo então? Por que a deixaram sair? Não fazia sentido.
— Isso esclarece algumas coisas... — “Na verdade, não esclarece nada, mas não sou babaca ao ponto de dizer isso.” — Mas por que veio comigo? Quero dizer, eles não poderiam te tratar tão mal ao ponto de você querer fugir.
— Eles não eram pessoas ruins, na maior parte do tempo me ignoravam… Alguns até me ajudavam e outros… — Seu rosto se contorceu e ela tremeu um pouco.
— Desculpe por fazer você lembrar dessas coisas ruins...
— Dam… Já passado. Minha vida é melhor agora — explicou enquanto forçava um sorriso no rosto.
O diálogo cessou entre nós, interrompido pela jovem que parecia estar completamente focada em seus pensamentos. Sentados lado a lado em um tronco de madeira, pude observar como ela estava mergulhada em suas reflexões, tão imersa que nem notou quando seu palito — agora desprovido de qualquer carne — escapou-lhe das mãos e tocou o solo.
Virei meu olhar para a fogueira, cujas chamas balançavam com a ventania da noite. As sombras dos minúsculos insetos executavam uma dança graciosa, como um baile elegante. Toda a coreografia era acompanhada pela sinfonia do estalar da fogueira e do assovio do vento.
“Sinto muito, mas sem insetos.”
Levantei minha mão pronto para começar um massacre nos mosquitos dessa região, quando a Vaeli se virou para mim e perguntou:
— Posso fazer uma pergunta?
— Você já fez, mas eu permito… — Eu abaixei o braço e me virei para ela.
— Como devo chamar?
— Quem? — perguntei, curioso.
— Você.
— Ah... — Parei por um momento, pensando em como gostaria de ser chamado. — Não tenho nome e acho que nunca pensei em ter um nome.
— Entendi... então é verdade que um urohoji não tem nome... — murmurou, ficando pensativa novamente.
— Ororroji? O que é isso?
— É você.
— Eu?! — exclamei, surpreso com a afirmação, mas logo me recompus. — Por que você acha isso? E, afinal, o que é isso?
Então, começou uma longa explicação interrompida por diversas vezes para que eu pudesse entender o significado das coisas. Basicamente, um ourroji é uma criatura do folclore local. Acredita-se que ela apareça para punir pessoas más nas florestas, rios e montanhas. Vaeli acredita que sou um deles.
— Mas não sou esse tal de oroje ou algo assim...
— Como não? Segundo a lenda, um urohoji aparece e entrega o corpo de um ente querido da vila que havia falecido nas montanhas. Em troca, quem oferecesse palha poderia ter um desejo concedido. E foi exatamente isso que aconteceu! — disse animada, chegando até a se levantar. — Sempre quis sair da vila, e essa foi a minha oportunidade.
— Mas qual a relação disso com você ter partido?
— A pessoa que faz o pedido é levada pelo urohoji em direção às montanhas e nunca mais é vista.
— E você simplesmente foi?! Isso é… Uma loucura! — Minha voz se elevou com um misto de raiva e desespero. — E se eu fosse alguém se passando por esse... esse tal de orroji... me diga, o que você faria? — Levantei-me abruptamente para confrontar a garota.
— Impossível. Você curou o Fir, não foi? Isso foi prova o suficiente.
— A criança? Sim, mas isso… — Meus olhos desviaram rapidamente, enquanto lutava para controlar a gagueira em minha voz trêmula. — Ainda assim… — A frase morreu em meus lábios, incapaz de encontrar uma conclusão.
Cada batida acelerada do meu coração ecoava a marteladas da culpa que me consumia. Lutei para trazer as palavras a tona, mas elas fugiam, como se temessem o julgamento e a condenação que poderiam trazer.
“Como posso explicar isso sem dizer que foi uma tentativa desesperada de compensar o ato terrível de tirar a vida daquele menino?!” Minha mente girava em círculos, enquanto eu lutava para encontrar a coragem de enfrentar a verdade.
— Não importa. — Ela me interrompeu e logo se sentou novamente. — Sabe, aquela mulher com a criança que você salvou… ela tinha uma filha.
— Sério? Eu não a vi. Mesmo assim, não mude de assunto…
— Tinha… — falou cortando minha raiva. — Ela morreu.
Meu corpo todo se enrijeceu ao ouvir aquelas palavras, e me fez desabar no assento em um misto de choque e pesar.
— Desculpa. — As palavras saíram automaticamente num sussurro.
— Não foi culpa sua. Ela morreu a menos de metade de Erv’fre anterior a minha chegada — explicou com um olhar distante. — Naquela época, ninguém queria cuidar de mim, então eu dormia do lado de fora das casas. Até que um dia, alguém abriu a porta no meio da noite. Por um momento, pensei: Ah, vão me chutar de novo...
Fiquei boquiaberto, ouvindo tudo, sem conseguir acreditar na história daquela pequena garota. Isso explicava por que ela estava acostumada a se virar e até mesmo a conseguir comida.
— Mas isso não aconteceu — continuou a contar sua historia. — Ela me acolheu e permitiu que eu dormisse lá durante as noites em que...
— O marido dela?
— Isso, o marido. — Ela parou por um momento antes de prosseguir. — Nos dias em que ele estava de vigia, ela me deixava dormir lá. Os outros não gostavam muito disso, mas ela me defendia. — Um sorriso brotou em seus lábios.
— Ela foi como uma mãe para você... — comentei ao ver a felicidade estampada em seu rosto.
— É, mas... — O sorriso desvaneceu. — Ela só fazia isso porque eu tinha quase a mesma idade que a filha dela. Às vezes, ela até confundia nossos nomes.
— Isso… é triste…
— Um pouco. Mesmo assim eu agradeço por ela cuidar de mim… — Mais uma vez forçou um sorriso, só que esse veio com lagrimas. — Sabe, ela nunca aceitou nada de mim, mas eu sempre quis retribuir sua gentileza e quando vi a chance… não desperdicei.
Ficamos em silêncio novamente, mas desta vez com algumas respostas e muita informação a processar. E eu tinha bastante a pensar.
— Estou com sono, vou dormir… — falou Vaeli indo em direção a sua cama improvisada do outro lado da fogueira
— Boa noite…
Noite adentro, não me preocupei com minha falta de sono usual. Eu estava em uma intensa reflexão. Cada palavra pronunciada, cada resposta obtida e cada nova pergunta emergiram em minha mente de maneira incessante. As respostas deveriam dar alívio, mas não deram, e as novas perguntas só aumentaram a carga.
Ao longo de horas que pareciam intermináveis, minha atenção se concentrava em apenas duas coisas: preservar incansavelmente as chamas que dançavam à minha frente e mergulhar profundamente em minha própria mente.
Em silêncio, a lua subiu ao topo do céu, e como se tivesse cumprido sua missão, saiu de cena pelo horizonte oposto ao que veio. E quando um cai, outro se levanta; o nascer do sol chegou. Os primeiros raios da manhã tocaram meu rosto, que nem mesmo piscou ao sentir a luz da estrela.
A jovem acordou assim que o sol nasceu, envolvida pela luz suave da manhã. Talvez fosse um habito antigo que ela mantinha.
— Bo dia… — falou em meio a um bocejo.
— Já decidi.
— Com o que? — perguntou ainda sonolenta.
Com passadas largas e firmes, passei por cima da fogueira, indo em direção a garota. E com o olhar firme a encarei e fiz a pergunta:
— Você poderia me ajudar a procurar um livro?