Volume 1

Capítulo 7: O Ponto Mais Fraco

Trinta dias se passaram desde que pisei nesse planeta e continuou em busca do Livro. Varri cada centímetro de terra, rio, rochas, copas de árvores e picos de montanhas. Porra, quem tem paciência para isso?!

Tentei canalizar minha energia, na esperança de que pudesse me guiar, mas como era de se esperar, essa abordagem não trouxe resultados. No máximo, provoquei um pequeno deslizamento de terra na montanha onde estava vasculhando.

No auge do desespero, acabei recorrendo a algo que sabia ser errado, algo que não deveria usar. Me coloquei de joelhos e juntei as mãos e fiz um Desejo. Tal como da última vez, minha mente se apagou por um breve instante, mas logo retornei à realidade.

— Isso… Funcionou? Não... Não é como antes. — Apertei meus punhos com força e desferi um soco no solo enlameado. — Droga! Deu tudo errado!

“Maldição, por quê? Já consigo ouvir as vozes...”

Uma sensação de formigamento percorreu minha mão direita. Ao retirá-la da lama, pude ver o motivo: meus dedos estavam se contorcendo involuntariamente, como se estivessem sendo puxados por uma força invisível. Balancei a mão vigorosamente, até que ela voltou ao normal.

Comecei a suar frio. Esse era o primeiro sinal.

Essas vozes... ou como o Livro as descreve, o Chamado do Vazio. É um fenômeno que apenas os deuses conseguem sentir quando uma certa condição é cumprida, uma das manifestações é como vozes inquietantes. Daí o nome.

Quanto mais frequente e intensa o barulho, mais próximo se está de ser engolido pelo vazio. Ao contrário do vácuo do espaço, esse é o lugar mais aterrador que alguém como eu poderia acabar. 

“Tenho só mais alguns dias… Maldito seja, não posso simplesmente desistir assim.”

Com um movimento de telecinese, levantei voo em direção à próxima montanha. Assim que pisei na neve novamente, fiz o mesmo que na montanha anterior: consumi tudo em fogo ardente. 

A medida que o tempo passava, a ansiedade começava a se infiltrar cada vez mais em meu coração. A dúvida minava minha determinação, corroendo minha confiança a cada instante. Precisava encontrar o Livro para que tudo ficasse bem.

O vento soprava, carregando consigo o vapor que se desprendia da água quente. Em pouco tempo, o terreno à minha frente revelava o rastro devastador de uma queimada. O solo estava negro, a água da neve descongelada adquiria tons sombrios, e nenhuma árvore ou planta escapou da destruição. Terra por terra, montanha por montanha, eu passava deixando um rastro de destruição e fumaça.

De repente, uma exaustão avassaladora me atingiu. Por um momento, a ideia de descansar parecia tentadora, a possibilidade de fechar os olhos e deixar o cansaço me vencer parecia atraente. Assim o fiz, fechei os olhos, mas, como sempre, foi impossível mantê-los fechados.

Ao olhar novamente, a névoa de vapor se dissipou. No lugar, as estrelas e a lua começavam a iluminar no céu noturno. Confuso, dei um passo para trás, mas meus pés estavam afundados no chão, presos na lama seca e cinzas que cobriam o solo.

Foi então que observei melhor os arredores. A terra negra, marcada pela queimada, se estendia diante de mim. A vegetação havia sido reduzida a cinzas, as pedras estavam carbonizadas. Era evidente que aquilo não era uma ilusão criada pelos meus delírios, eu realmente estava diante da devastação que causei.

“Como? Dormi em pé?”

— O que está acontecendo?

Um frio penetrante passou pela minha espinha, uma presença indesejada e perturbadora estava por perto.

— Não... Não... Isso só deveria acontecer daqui a alguns dias — murmurei, e pela primeira vez em muito tempo senti medo.

Idiota, nós nos encontramos de novo.

Um simples sussurro provocou arrepios por todo meu corpo. Eu cerrei os punhos e os dentes, determinado a não me deixar abalar dessa vez. Me pus a caminhar em direção a próxima montanha, se desse sorte o problema seria resolvido lá.

Hehehe, imbecil. 

Havia três estágios antes de ser consumido pelo Chamado do Vazio. O primeiro que é a distorção do corpo, o segundo que é as vozes propriamente ditas e o terceiro são todos os anteriores elevados ao máximo de dor possível. Segundo o Livro, todos que chegaram a esse ponto morreram ou foram levados para o Vazio.

Você é um estúpido se pensa que pode escapar.

Respirei fundo para manter a calma, enquanto fervilhava de raiva. As provocações eram leves, mas iriam começar a ferir cada vez mais. E algumas delas ainda não se curam desde a última vez.

— Você deve estar com saudade dos seus amiguinhos, que peninha para você que não vou dar tempo deles chegarem — disse com sarcasmo.

Calma, não precisa se preocupar, logo logo eles estão aqui dentro também hehehe.

Ele está sendo irritante agora — coisa que ele sabe fazer muito bem —, como sempre, mas o que me preocupa é o que ele fará a seguir. É como dizem, seu pior inimigo é você mesmo.

Então admite que faço parte de ti. Que evolução nobre da sua parte!

A voz é chata, ele faz muito barulho e cada vez que fala sinto que se tivesse uma pequena dor de cabeça.

E tudo ainda vai piorar

— Por quê?! — gritei, deixando minha frustração extravasar. — Eu me esforcei tanto, explorei cada canto dessas montanhas! Por que não consigo encontrar o Livro?

Lágrimas rolaram pelo meu rosto, embaçando minha visão. Minhas pernas fraquejaram e uma dor lancinante tomou conta do meu peito.

Ih, tá chorando? O bebê quer uma fralda ou uma mamadeira?

De joelhos gritei por ajuda, mas ninguém apareceu. Só havia voz que continuava suas zombarias.

— Maldito. Quando tudo isso acabar, vou me certificar de nunca mais ouvir você — declarei, enxugando as lágrimas.

O sabor salgado das lágrimas se misturou com o amargo da realidade. A sensação cruel de desesperança consumia todas as minhas esperanças restantes.

Você é apenas um fracote que não consegue se sustentar sozinho. Usando algo que sabe que não existe como uma muleta para continuar vivendo... Você me dá pena.

— Cale a boca, cale a boca, cale a boca, cale a boca! — gritei, tapando os ouvidos, mesmo sabendo que não adiantaria.

Lixo! Louco! Estranho desgraçado! Você viveu trancado e mesmo do lado de fora você continua enclausurado!

— Você é apenas um pedaço de voz sem sentido! Você nem existe na realidade! — respondi impulsionado pela raiva.

O silêncio da noite se tornou ensurdecedor. Ele parou de falar? Isso me deixou mais assustado do que aliviado.

E você é real?

O quê?

As coisas ao seu redor são reais?

— É claro que são... — minha resposta saiu incerta, não tão confiante quanto eu gostaria. — Tenho certeza, afinal, a garota...

“A garota! Como pude me esquecer dela?”

***

Enquanto corria em direção à caverna, meu coração se encheu de preocupação. A imagem de Vaeli angustiada, esperando por minha volta, ecoava em minha mente. A ansiedade me consumia, tornando cada passo mais pesado.

Meus pés se enroscaram em uma raiz de árvore, e eu caí no chão. Me levantei rapidamente, esperando por mais deboche do Vazio. Mas ao invés disso, a voz perversa entoou:

Olha, ele se levantou. Merece uma recompensa especial por isso... Vazio, a canção que não termina!

Aquele maldito canto ecoou em meus ouvidos. Era uma melodia horrível e repetitiva, onde a única palavra entoada era vazio e seus anagramas em diferentes tons. Era uma verdadeira tortura para a mente.

Corri desesperado pelas florestas e montanhas, tentando chegar à caverna o mais rápido possível. Precisava manter o foco para voar, por isso, aproveitava os raros momentos de silêncio como…

— Agora! — gritei enquanto saltava do chão e flutuava a vários metros de distância.

 A paisagem ao meu redor estava irreconhecível, destruída pela minha passagem frenética. Era difícil localizar a caverna, e a voz dentro de mim só aumentava a confusão.

Vaeli deve se sentir tão sozinha, você vai magoá-la se demorar muito.

A voz, com um tom choroso, tentou me distrair, fazendo minha concentração vacilar e resultando em outra queda. A melodia irritante ecoava novamente em meus ouvidos enquanto lutava para conter a raiva crescente.

Ei, acabamos de passar, volta!

Não me ignore, eu sei o que digo.

Uau, veja, lá está o Livro! Pegue-o antes que desapareça, assim como sua sanidade, hehehe

“Filho da puta…”

Tudo o que eu podia fazer era me concentrar em alcançar a caverna o mais rápido possível. No entanto, o caminho à frente era escuro e traiçoeiro. Eu tropeçava e escorregava em barrancos, perdendo a conta das quedas. A cada vez que caía, a voz do Vazio zombava de mim, minha frustração e exaustão mental só aumentava.

Demorou um pouco, mas finalmente consegui reconhecer os arredores. Em meio a mais um voo, avistei a montanha onde havia escavado a caverna. A alegria tomou conta de mim, mas foi efêmera ao notar uma mancha escura em meio à floresta verde perto de onde seria a entrada.

Enquanto caía, senti-me momentaneamente desconectado do mundo. Será que era culpa minha? Ela estava machucada? Estaria bem? Será que eu havia causado isso? Seria minha responsabilidade? Mais uma vida perdida por causa de um erro?

Você é tão melancólico, até para os meus padrões. Hahaha, entendeu? É porque sou o vazio.

A voz debochada me trouxe de volta à realidade. Fiquei preso em um galho de uma árvore e, ainda atordoado, consegui me descer.

“Não, eu preciso confirmar. Sem suposições apresadas.”

Caramba, você é tão otimista… Isso é hilário!

Se isso fosse um programa de televisão, ele seria o apresentador e o show seria o meu drama. E nesse momento, as vozes da plateia inteira estavam na minha cabeça, todas rindo ao mesmo tempo.

Como não podia descontar minha raiva nele, canalizei-a para algo positivo. No momento em que as risadas cessaram, ganhei impulso e, ao invés de voar para cima, arremessei-me com toda a minha força em diagonal para a frente. Percorri vários metros em questão de segundos.

A aterrissagem não seria suave. Ao me aproximar da floresta, eu bati em folhas e galhos, e, por fim, quebrei o tronco de uma árvore antes de parar. Fiquei estirado no chão, coberto de sujeira e mato.

Levantar-me foi fácil; isso não poderia me causar danos. Ainda sujo, lembrei do rumo e corri na direção da caverna.

Que vigor! Você é um verdadeiro... Não há palavra melhor para te descrever além de idiota, então lá vai: idiota!

Ignorei-o e me preparei para dar outro salto, mas algo estava errado com minhas pernas. Olhei para baixo e vi que elas estavam secando, os músculos se contorcendo. Tentei reverter o processo como fiz com a minha mão, mas não estava funcionando.

Que perninhas finas, você deveria se exercitar mais.

Mesmo com a voz debochada, eu a ignorei e forcei-me a caminhar. Não doía, mas manter o equilíbrio era difícil.

Após um longo caminho, alcancei finalmente o local onde a mancha se encontrava. Infelizmente, minhas suspeitas se confirmaram quando me deparei com a terra carbonizada à minha frente.

Meu coração disparou ao encarar a paisagem desolada à minha frente. O silêncio pesado dominava o ambiente, deixando meu corpo petrificado. Sem palavras, minha mente tentava assimilar a terrível realidade diante de mim, deixando-me perplexo e imóvel.

Não negue a realidade. Você queimou mais uma vida... A culpa é sua! Você repetiu seu erro, burro! Burrinho, burrão, burrico, burraco, asno! Até uma criança sabe que não se deve brincar com fogo em uma floresta!

Meus olhos se encheram de lágrimas, prontas para derramar, mas eu as contive e continuei a caminhar pela floresta incendiada. Não queria acreditar, mas parecia ser verdade. Eu havia errado novamente, e mais uma vida tinha sido ceifada por minhas mãos.

— Não! Isso não é verdade!

Neguei repetidamente enquanto lutava para continuar, pois até mesmo minha vontade de prosseguir começava a se dissipar.

Vamos, campeão, mais um pouco e chegaremos ao corpo dela... Só estou brincando. Não tenha pressa, ela já está morta mesmo.

— Cale a boca, porra! — gritei, apoiando-me em uma árvore para recuperar o fôlego.

O tronco se soltou e quase me derrubou, mas consegui me manter em pé. Esse pequeno susto dissipou um pouco da minha raiva.

Recuperado as energias, continuei arrastando os pés. Meu esforço estava surtindo efeito, já conseguia avistar a entrada da caverna.

— Vaeli! — Minha voz ecoou pelo local, mas não houve resposta alguma.

Ao me aproximar da caverna, meus olhos se arregalaram diante das manchas pretas que dominavam sua entrada. Era como se o fogo tivesse irrompido do seu interior. Minhas mãos tremiam diante dessa visão perturbadora. Ela permaneceu lá dentro? O fogo chegou ou veio de dentro da caverna? O que aconteceu?

— Vaeli, onde diabos você está?!

Meus olhos vasculharam freneticamente os arredores, numa busca desesperada por qualquer sinal dela. Meu coração pulsava acelerado, enquanto a angústia me consumia. Cada segundo sem resposta era uma tortura insuportável.

Estou morta, imbecil. E isso é culpa sua!

— Calado seu pedaço de bosta! Não fique imitando a voz dela! — gritei com a voz que continuava a me atormentar. — Vaeli! Responda! — Minhas mãos tremiam, implorando por uma resposta que parecia nunca chegar.

Sem respostas, entrei em pânico e corri desesperadamente para dentro da caverna, meu coração batendo descontroladamente. Acendi fogo na palma da minha mão direita que iluminou o ambiente.

A ausência da mochila, normalmente jogada em um canto, e da cama improvisada que ocupava um espaço familiar na caverna, despertou dentro de mim uma chama de esperança. Minhas expectativas se elevaram instantaneamente. Ela está viva!

Você não deveria alimentar suas esperanças com isso.

— O que você quis dizer?

A voz não respondeu.

“Não faz sentido. Ele nunca deu um ‘bom’ conselho.”

Perdido em confusão, dei meia volta em busca de respostas. Foi nesse momento que me deparei com algo inesperado na parede à minha direita. Quase não percebi, por estar numa posição baixa, mas fiquei atordoado ao descobrir o que estava escrito: desculpa. Era a primeira palavra escrita que eu havia ensinado à garota, e ali estava ela, mesmo que de forma trêmula.

É, meu amigo, você foi abandonado.

Uma onda de choque me atingiu com força, destruindo minhas defesas. Era como uma explosão na minha mente. O fogo da minha mão foi apagado até pela menor brisa.

“Isso não pode ser real. Ela foi embora? Por quê?”

Levei a minha mão direita para o coração. Sentia uma dor avassaladora, como se o vazio que ela deixou estivesse esmagando meu coração. A caverna, antes acolhedora e cheia de vida que compartilhávamos, transformou-se em buraco vazio.

Você sabia que isso ia acontecer, apenas não queria lembrar. Haha... Sua “vingança” foi apenas uma desculpa para mantê-la por perto. Na verdade, você não gosta de estar sozinho... mas acabou como antes... sozinho!

Consumido pela dor que me sufocava, lágrimas escaparam dos meus olhos. “Estou sozinho... novamente...”, pensei enquanto finalmente desabava no chão.

— Sim, tudo isso foi um sonho. Eu ainda devo estar preso naquele deserto sem vida — murmurei para mim mesmo, como se negar a realidade pudesse trazer algum consolo.

Vamos lá, desista. Não há mais nada aqui.

Sentado no chão, desejei desaparecer. Queria apagar e nunca mais acordar.

“Não aguento mais...”

Não há razão para aguentar.

“Seria bom encerrar essa história aqui... Estou cansado.”

Sim, vamos. É só fechar os olhos. Deixa fluir.

Talvez fosse o cansaço me dominando, mas pela primeira vez, senti sono. Fechei os olhos lentamente. Ah, como será bom finalmente descansar.

— Você... volto... — Uma voz suave, quase um sussurro, ecoou ao meu redor

“Isso... Já estou sonhando?”

De repente, alguém me envolveu com um abraço apertado, desesperado e urgente.

— Por favor, não vá embora! — gritou ela, suas palavras chegaram em meu ouvido como uma onda avassaladora.

Com calma, meus olhos se abriram, e para minha surpresa, deparei-me com uma cascata de longos cabelos castanhos. Lágrimas quentes escorriam pelo rosto dela, misturando-se ao muco que pingava como uma goteira no meu ombro. Era Vaeli.

“Como ela está aqui? Não tinha ido embora?”

A torrente de lágrimas dela suprimiu meu próprio choro. Fiquei atônito e confuso demais para chorar. Normalmente, eu a soltaria imediatamente e a bombardearia com perguntas, mas... havia algo naquele olhar desesperado e na intensidade do seu abraço que me impedia de reagir.

Ah, pare com essa pieguice, é nojento. Ei, você está me ouvindo?

— Eu... — Comecei, mas me vi sem palavras.

Embora possa ter vivido em outros planetas por três ou até onze vezes mais tempo do que neste planeta, sem dúvida, este foi o período mais especial. Não por causa da paisagem ou da existência de seres vivos, mas por causa dessa garota chamada Vaeli. Nada teria sido tão significativo sem ela.

— Eu... — Recomecei, agora com a resposta certa. — Eu prometo que não vou te abandonar — sussurrei, levando uma das mãos trêmulas até sua cabeça, acariciando seus cabelos.

Tch, sortudo. Na próxima vez não será tão fácil...

Ignorei a voz irritante.

E ali ficamos, até que as lágrimas dela cessassem. Depois de dar um tempo para que a garota se acalmasse, comecei a fazer uma enxurrada de perguntas:

— Onde você estava? O que aconteceu com a caverna e a floresta ao redor?

Seu rosto se contorceu e seus olhos encheram-se novamente, prontos para uma segunda rodada de choro. Eu a acalmei e pedi novamente, dessa vez, mais delicado.

— Decupe... Eu... quemei casa... e fente da casa... — confessou com voz chorosa.

Apenas com aquelas palavras, pude imaginar o que havia acontecido. Ela tentou acender um fogo na caverna, mas deu errado e pegou fogo. Depois, ao dormir do lado de fora, o fogo da fogueira se espalhou pela grama e alcançou a floresta. Isso me fez rir alto como nunca antes tinha rido.

A garota estava confusa por não ser repreendida e pela minha atitude estranha de rir. Mais tarde, eu explicaria para ela, e tenho certeza de que ela riria também, assim como eu ri naquele dia.



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