Volume 1

Capítulo 5.1: Caminho Agridoce

Ao adentrar a densa floresta, olhei por cima do ombro, desejando que a garota não estivesse ali. Para minha frustração, ela continuou atrás de mim. Como se fosse uma sombra presa aos meus calcanhares. Quando ela me viu, sorriu, mostrando dois dentes ainda em crescimento. 

“Ela não desistirá”, pensei, encarando seu semblante decidido. Voltei a olhar para frente, decidido a ignorá-la e seguir em frente. Era apenas uma criança, mas eu não me importava. Eu sabia que ela voltaria para a vila, e então eu poderia continuar minha busca. Essa certeza me impulsionava a ignorar sua presença.

O sol alcançava o meio-dia, e as sombras no chão se moviam. Era hora de parar, não por causa da garota, que suava e ofegava como um cão, mas para pensar no que fazer a seguir. 

Encontrei uma árvore e me sentei para descansar. A garota chegou com passos hesitantes e se sentou em uma raiz. Eu senti seu olhar e olhei para o outro lado, fingindo não notar. A situação era desconfortável. Não sou a pessoa mais sociável do mundo, além do problema de comunicação que dificultava ainda mais.

Eu não conseguia entender o que ela dizia, assim como ela não entendia o que eu dizia. Mesmo depois de horas de caminhada, ela não desistia de me seguir. O que eu deveria fazer? Se ela continuasse, poderia se machucar ou até morrer!

Olhei de soslaio para ela, enquanto ela bebia da água de seu cantil. Seus dedos pequenos seguravam o cantil com cuidado, e as gotas escorriam por seus lábios. Ela fechou os olhos por um momento, saboreando a água. Era um prazer simples, mas que toda criança deveria poder experimentar sem preocupações. 

Eu precisava de um plano para afastá-la, antes que ela se machucasse. As montanhas e a selva eram perigosas, e ela não sobreviveria. Mesmo comigo do seu lado ela poderia morrer por inanição ou ser atacada por algum animal enquanto não estou de olho. Se isso acontecesse, seria minha culpa. 

Ao sair do meu devaneio, notei que a garota havia desenhado vários rabiscos no chão na terra. “Se está entediada por que não volta para vila e vai brincar?!”, com esse pensamento finalmente retornei à realidade. Levantei-me e caminhei em direção ao fundo da floresta. Talvez alguma ideia apareça no caminho. No entanto, como era de se esperar, a garota logo se levantou e correu atrás de mim.

Algum tempo depois, encontramos uma parede de plantas espinhosas. Os espinhos eram tão pontudos que pareciam alfinetes. Embora eu não corresse perigo, ela sim. Uma ideia maligna surgiu na minha cabeça com essa informação. Foi uma decisão difícil, mas não hesitei por muito tempo. 

Sem me importar com a garota, que parecia perplexa, avancei em direção ao arbusto. O emaranhado de espinhos me arranhava a pele, mas eu mal sentia as agulhadas. Era como se fossem seringas incapazes de perfurar um balão. Emergi do outro lado e, através da pequena abertura, observei sua expressão. Seus olhos exibiam surpresa e angústia, compreensíveis, pois ela não sabia que eu estava ileso. 

Para minha surpresa, ela também se aproximou dos espinhos. Com passos ágeis, ela avançou, protegendo seu rosto com os braços delicados. Os espinhos a cercaram, e seus longos cabelos ficaram presos neles. Com um puxão, ela os libertou. Notei que seu laço estava quase caindo da cabeça, devido ao cabelo bagunçado.

Diferentemente de mim, que não tinha um arranhão, ela ostentava vários. Seus braços eram os mais afetados, com uma coleção de arranhões, alguns dos quais inicialmente eram brancos, mas logo se tornaram vermelhos. 

Nossos olhares se cruzaram, e vi a irritação em seus olhos. Eu também estava irritado, mas me preocupei quando vi o sangue escorrendo de seus cortes. No entanto, essa preocupação logo foi substituída por determinação. Eu não iria pegar leve com ela se fosse para evitar coisas piores no futuro.

Em um acesso de fúria, eu corri pela floresta, determinado a me livrar dela. A terra irregular e coberta de folhas secas sob meus pés se transformava em uma sinfonia de sons de ramos quebrando e galhos se chocando.

Um baque surdo e um grito agudo ressoaram pela floresta, misturando-se ao som do vento nas árvores e ao zumbido dos insetos. Eu parei, o coração acelerado. Não precisava olhar para trás para saber o que havia acontecido, mesmo assim o fiz.

Virei-me lentamente e a vi se erguer a alguns passos de distância, com determinação feroz nos olhos. Ela estava suja de terra, folhas do chão e arranhões dos espinhos que açoitaram sua pele. Seu cabelo desgrenhado caía sobre os ombros, sua fita azul perdida no chão. 

— Você… — “Louca”, pensei ao vê-la nesse estado. — Pegue suas coisas e vá embora... — falei, arremessando o saco de palha que ela havia me entregado aos seus pés.

Ela estendeu a mão para o saco de palha que jazia ali, erguendo-o com cuidado. Com o saco agora em suas mãos, ela fez uma nova tentativa de se aproximar de mim, como se persistisse em sua determinação de continuar me seguindo.

— Não… — implorei que ela parasse, mas ela não cedeu.

Ela continuou vindo em minha direção. Que droga! Essa garota não passa de um fardo que não quero mais carregar. Rangi os dentes, mas não conseguindo conter minha raiva. 

— Cai fora!

O silêncio da floresta foi rasgado pelo meu grito. Ela arregalou os olhos, aterrorizada, sem entender o que estava acontecendo. Aquele surto de raiva me libertou de minhas amarras. Não queria mais ter que me preocupar com aquela criança.

Voei para cima em alta velocidade, até que ultrapassei as nuvens. Lá, fiquei parado, remoendo meus pensamentos, me torturando aos poucos. Foram trinta minutos de pura contemplação.

“Abandonar uma criança não é certo”, “Se ela morrer, a culpa é minha”, “Uma criança como ela não deve conseguir descobrir o caminho de casa”, “Sou responsável por ela até que ela ache outro adulto para cuidar dela”, “Ela não deve ter comido nada, deve estar morrendo de fome”, etc. Não tinha fim as inúmeras desculpas que me impeliam de voltar.

Com um estalo, desativei minha habilidade de voar e caí livremente em direção ao chão, decidido a ajudar a garota que estava sozinha na floresta. A sensação do vento era estranhamente familiar, como se eu já tivesse passado por isso antes.

“Quando será que foi isso… Esquece, deve ser das memórias do meu mundo”.

Enquanto descia em direção ao solo, meus pensamentos estavam voltados para a garota. Será que ela ficaria chateada? Talvez enfurecida? Certamente ela está. Mas só saberia quando ficasse cara a cara.

A incerteza martelava meu peito, e o pensamento de que ela poderia me odiar me atormentava. Enquanto a terra se aproximava, minhas mãos tremiam. Inalei e expirei algumas vezes, antes de finalmente entrar com tudo dentro da floresta. De cabeça para baixo, passei por entre as árvores e me detive a poucos metros do solo. 

Meus olhos vasculhavam as partes escuras da floresta em busca dela. Imaginei encontrá-la chorando em algum cantinho sombrio, agachada e com medo. Porém, para minha surpresa, ela estava ali, a poucos metros de mim, sentada debaixo de uma árvore, comendo pedaços de carne seca como se estivesse em um piquenique. 

Seus olhos curiosos se voltaram para mim, como um cachorro pego com a boca na comida. Por um momento, minha mente ficou em branco e eu caí de cabeça no chão. 

“Merda, perdi o controle só por um instante. Como eles conseguem fazer isso ao mesmo tempo que conversam?”.

No chão, testemunhei uma reação inesperada na garota à minha queda. Um riso espontâneo escapou de seus lábios, mas logo foi substituído por um acesso de tosse. Ela agarrou seu cantil e bebeu avidamente para se acalmar. 

Levantei-me do chão, minhas mãos sujas de terra. Aproximei-me devagar, observando cada detalhe. As feridas da criança exibiam uma camada de pasta verde em algumas delas, um sinal de algum tratamento improvisado. Seu cabelo, agora, estava parcialmente arrumado, o laço no lugar, mas ainda bagunçado em alguns pontos. Era claro que não se podia exigir muito de uma criança. 

“Pelo que pude ver, a criança parecia não necessitar de assistência, pelo menos não da minha parte”, refleti, minha determinação diminuindo. “No final das contas, acho que alcancei meu objetivo.”

A garota se virou depois de um tempo, desviando o olhar como se minha observação a incomodasse. Não posso culpá-la, afinal, também não gostaria de ser encarado.

“Acredito que seja hora de dizer adeus...”

Dei as costas para a garota pronto para partir, mas um aroma suculento preencheu o ar. O perfume me lembrou de churrascos e cozidos, e meu nariz não pôde evitar vagar na direção de onde estava vindo.

“É claro… Só podia ser isso em meio a floresta”.

A carne que a menina comia parecia ser deliciosa só de olhar. Isso ativou meu estômago, que passou de um leve aperto para uma sensação de vazio, como se alguém tivesse esvaziado ele com um aspirador de pó. Minha saliva transbordava, e eu babava cada vez que abria a boca.

“Talvez se eu pedir só um pedaço, ela me dê…”, pensei, incapaz de desviar o olhar da carne que as vezes aparecia quando ela ia mastigar. Num instante, seus olhos encontraram os meus. Com um gesto ágil, ela estendeu a mão livre em direção à sacola de palha ao seu lado e a lançou na minha direção. Isso quebrou meu transe de fome e me fez perceber sua ação.

— Eu tenho cara de cavalo pra ficar comendo palha?!

Seus olhos se arregalaram, e ela deu um salto para trás, batendo na árvore. Respirei fundo, ciente de que não devia deixar minha raiva tomar conta de mim.

“Não era culpa dela. Não posso ficar de braços cruzados se ela não entende o que estou dizendo. Se não posso usar palavras, vou usar gestos”.

Com gestos circulares, esfreguei minha barriga, transmitindo a sensação de fome. Minha expressão se contorceu em uma careta, e meus dedos apontaram para a boca, enfatizando a necessidade de comida. Os olhos perplexos da garota rapidamente deram lugar a uma compreensão, com suas sobrancelhas se erguendo em surpresa. A satisfação se espalhou por mim. Com cautela, ela revirou sua bolsa e, sorrindo, retirou um pedaço de carne seca, estendendo-o na minha direção.

Peguei o pedaço de carne seca e senti sua textura áspera. Ao levá-lo à boca, a resistência inicial cedeu, dando lugar a uma suculência que derretia na língua. Mastigar aquele pedaço foi uma explosão de sabores. Sem perceber, fechei os olhos para aproveitar a sensação. Estava meio salgado, mas ótimo. Aquilo foi a coisa mais saborosa que já experimentei desde que cheguei a esse mundo.

De repente, algo começou a escorrer pelo meu rosto, e meus olhos se abriram em confusão. Chuva? Olhei para o céu, mas não havia nuvens. O que estava acontecendo comigo? Limpei o rosto, mas a água continuava a embaçar minha visão. Não, não era água, eram lágrimas. Mas por que eu estava chorando por causa de um pedaço de carne? Era uma reação patética.
 
O silêncio da garota me fez virar o olhar para ela. Ela estava agachada, vasculhando em sua bolsa gigante. Sua mochila era quase do tamanho dela, indicando um verdadeiro tesouro de itens. O que ela estaria procurando naquele abismo?

Enquanto saboreava minha primeira refeição decente em dias, senti um nó na garganta. Lembrei-me dos primeiros dias no planeta vermelho, quando comi terra, bebi lava e até tentei comer meus próprios dedos. Foi uma loucura que eu nunca deveria ter passado.

“Ah… acho que agora entendi”.

Enquanto eu estava absorto em meus pensamentos, ela se levantou e se aproximou de mim com passos rápidos. Seus olhos estavam cheios de preocupação, mas logo ela percebeu que minhas lágrimas já haviam secado. Mesmo assim, ela gentilmente me entregou um lenço branco, bordado com detalhes amarelos nas bordas.

Limpei meu rosto e senti uma onda de gratidão me inundar. Se ela não tivesse me visitado, se não tivesse insistido em me seguir, se não fosse por ela, eu demoraria bem mais para experimentar carne e talvez nunca tivesse ajudado aquela criança. Talvez não fosse tão ruim assim a presença dela, só preciso ser mais cuidadoso.

Devolvi o lenço para ela que me olhava atônita. Peguei o saco de palha aos meus pés, para não deixar a garota triste, e comecei a caminhar. Tínhamos que manter o ritmo para subir a montanha antes do pôr do sol.

Quando não ouvi seus passos, me virei e a vi parada no mesmo lugar. Logo a chamei com um gesto de mão, e ela sorriu. Ela correu até sua bolsa, guardou o lenço na mochila e a jogou nas costas. Em seguida, me seguiu a passos ligeiros.

“Acho que vai ser uma boa viagem.”

Um baque surdo de queda me tirou um sorriso sincero, essa era a 23 vezes que ela cai.

“Uma nem tão boa para ela…”



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