Volume 1
Capítulo 5.2: Caminho Agridoce
O céu com as misturas de laranja, vermelho e amarelo lembrava um pouco dos tempos que passei no planeta vermelho. Eu diria que é uma coisa nostálgica se não fosse tão traumática.
Como se isso não bastasse para azedar meu humor, a garota parafuso a menos — como carinhosamente apelido ela agora — continua a me seguir feito um cão abandonado. Como um cachorro que você deu carinho e agora ele não te deixa, mas você tem pena de abandonar de novo.
O canto dos pássaros e o balançar das árvores soaram de maneira relaxante, acalmando minha mente. Viajar pelo vazio do espaço é uma tortura pela falta de sons ambientes ou pelo fato do corpo não suportar a ausência de som. Até um barulho simples como os ventos velozes das tempestades do planeta gasoso que passei eram um alívio para minha mente.
“Espero não ficar com um cabelo branco de tanto estresse.”
Antes que minha mente pudesse se perder em seus próprios devaneios, um gemido abafado de dor interrompeu meus pensamentos e me arrancou da distração. Meus olhos se voltaram rapidamente na direção do som, e lá estava ela, caída de nariz no chão, sua mochila desproporcional parecendo esmagá-la.
“Essa garota deve ter um equilíbrio mais instável que uma girafa de pernas bambas, essa é a vigésima quarta queda dela!”
Caminhando até ela com passos rápidos, não pude deixar de notar o olhar surpreso em seu rosto. A garota tinha um olhar um tanto quanto surpreso. Segurei sua mochila e, com um esforço considerável, ajudei-a a se erguer.
Uma vez certificado de que ela estava novamente de pé e aparentemente ilesa, dei de ombros e continuei nosso caminho em direção à montanha. Era óbvio que tínhamos que alcançar nosso destino antes que a escuridão caísse sobre nós, especialmente para a segurança dessa garota desastrada
Não demorou muitos passos para esbarrarmos em um obstáculo. Nós nos aproximamos daquilo que bloqueava nosso caminho, enquanto eu considerava as opções.
O problema era evidente: duas árvores haviam caído à nossa frente. Mudar de direção parecia uma solução lógica, mas o mato espesso ao redor era mais alto do que o da trilha, e eu não estava disposto a arriscar encontrar algum animal peçonhento escondido ali.
— Por que tornar as coisas tão complicadas? Vamos lá... — murmurei para mim mesmo, enquanto recolhia a garota nos braços.
No momento em que a segurei, sua reação foi instantânea; seus olhos se arregalaram, e ela agarrou-se a mim, surpresa e um tanto assustada com a ação repentina.
Com um salto, voei sobre as árvores, sentindo o peso da garota em meus braços. Ela estava agarrada a mim com força, seus olhos percorrendo o cenário abaixo, a surpresa agora misturada com um toque de maravilha diante da paisagem que se desenrolava rapidamente.
No céu, já estávamos do outro lado, mas, sinceramente, por que parar por aí? A garota em meus braços olhava para baixo, uma expressão de surpresa ainda estampada em seu rosto, mas agora misturada com um brilho de admiração. Era evidente que aquela vista era algo completamente novo para ela, e seu coração parecia vibrar com a vista. Aproveitando o momento, voei até chegarmos ao limite da floresta.
Ao pousar suavemente no chão, a garota demonstrou sua surpresa ao perceber que havíamos cruzado a floresta em um piscar de olhos. Ela ficou tão concentrada na sensação de voar que não percebeu que a floresta já havia acabado. Acho que é aí que eu poderia dizer: nem sequer alcancei minha velocidade máxima. Mas, é claro, ela não entenderia.
Seguimos a pé em nossa jornada, já que carregá-la nos meus braços enquanto voava seria uma ideia arriscada demais. Imagina só, deixá-la cair lá de cima, seria uma sentença de morte certa. Até mesmo voando baixinho e rápido, ela poderia se machucar seriamente. A simples ideia de vê-la ferida pairava os meus pensamentos.
Mais um obstáculo surgiu no meu caminho, só que desta vez, ele era a própria montanha. O trajeto que escolhi para deixar essas montanhas era cheio de altos e baixos, mas devo admitir que a subida vai ser mais desafiadora do que a descida. Agora, a escalada parecia quase vertical! Não posso evitar pensar que essa inclinação acentuada contribuiu para todas as quedas que sofri durante a descida.
Estávamos ao pé da primeira montanha, antes de enfrentar a cadeia de montanhas. Cruzar essa barreira natural significaria entrar em um ambiente extremo. Ela conseguiria sobreviver naquelas condições hostis?
“Droga, eu deveria logo colocar ela dentro da mochila e carregar ela por aí.”
Desta vez, estendi a mão para ajudá-la a subir. Ela captou o gesto e segurou a minha mão. Aproximei-me dela, seus braços envolvendo meu pescoço. Segurei-a com firmeza. Voei quase que diagonalmente para frente, o terreno passa como um borrão.
Em poucos segundos, atingimos um platô mais amplo no topo da montanha. Com todo o cuidado, coloquei-a no chão, sentindo suas pernas trêmulas, como se fossem feitas de gelatina. Percebendo-me de que talvez tenha sido um erro subirmos tão rápido.
Dei à garota um momento para recobrar o fôlego. Enquanto ela respirava profundamente, meus olhos se fixaram no sol poente, prestes a desaparecer no horizonte. Enquanto contemplava a vista diante de mim, não pude evitar a decepção que brotou em meus pensamentos.
“Pensei que seria mais magnífico... ”
A paisagem, embora bonita, não correspondia à grandiosidade que os poetas e artistas retratavam em suas obras. “Eles deviam ter uma visão especial”, pensei, “algo que ultrapassava minha compreensão, para proclamar que o pôr do sol era a coisa mais bela já vista”. Se eles vissem como é bela uma explosão de um vulcão ou a paisagem do planeta de gases brancos, com toda certeza não diriam isso.
“Será que é por que são estrelas diferentes? Isso faria sentido”
Com um olhar atento para a garota, percebi que suas energias estavam lentamente se recuperando. Sem pressa, iniciei minha caminhada em direção à próxima montanha. Contudo, antes que pudéssemos avançar, a garota soltou um grito que me fez virar na sua direção. Seu dedo estendido apontava para o horizonte, e as palavras que ela pronunciou me atingiram como um sinal claro, embora eu não as entendesse.
Viajar à noite não seria um problema para mim, dada a minha constituição, mas para ela seria como ficar cega. Olhei para o chão de terra pontilhado de pedras e tomei a decisão mais sensata naquele momento. Ambos concordamos que permanecer ali era a melhor opção.
A garota deslizou a mochila para fora de seus ombros e a deixou cair. Suas mãos, rosadas pelo frio, começaram a esfregar uma na outra, os dedos se moviam rapidamente, como se desejassem acender uma faísca de calor.
Então, ela soprou suavemente entre as palmas, e pequenas nuvens se formaram no ar gélido. Eu a observava de lado, percebendo como o vapor de sua respiração se misturava com o frio da montanha.
“Está frio assim?”
Imitei sua respiração profunda, mas não consegui produzir um sopro de ar visível. Parecia que minha temperatura corporal era mantida em segredo, protegida pela barreira de energia ou alguma mudança biológica que reduzia minha emissão de calor. Talvez o Livro tenha algo sobre isso.
— Livro, abra na página… — Interrompi o gesto de erguer meu braço quando percebi sua leveza.
Percebi meu erro; o Livro não estava lá. Às vezes, sinto como se ele ainda estivesse por perto, mas, ao mesmo tempo, é como se escapasse dos meus sentidos. Como no dia em que cheguei nesse mundo; um grande poço sem fundo se abre aos meus pés.
“É estranho… Aquele vazio que pensei ter trancado começou a se abrir novamente...”
Enquanto eu estava absorto no horizonte, o som dos pés da garota varrendo o chão chamou minha atenção. Ela foi mexer na mochila e retirou um pano grosso, desenrolando-o cuidadosamente antes de espalhá-lo sobre a área que acabara de limpar. Em seguida, pegou outro cobertor da mochila e o deixou sobre o pano grosso.
“Uma cama? Ah, verdade, pessoas normalmente dormem em camas…”, pensei percebendo que parecia mais um animal que humano.
Meus olhos acompanharam atentamente seus movimentos, enquanto ela se inclinava com graça para coletar pedras volumosas, posicionando-as com cuidado em um círculo no solo, no espaço que nos separava. A intenção estava clara: ela planejava acender uma fogueira ali.
Ao observar atentamente o exemplo dela, decidi seguir o meu próprio caminho. Usei minha telecinese para alisar o solo, empurrei múltiplas pedras com facilidade. Como não tinha uma esteira ou tabua, decidi me esticar no chão. Peguei o saco de palha e o coloquei sob minha cabeça como um travesseiro improvisado. Era um pouco desconfortável, é verdade, mas ainda era melhor do que as pedras que usava antigamente.
Estirei-me no chão e, deitado de costas, contemplei o céu. A lua, tímida como quem acena, surgiu de trás de uma nuvem. 'Isso é uma lua incrível', pensei, quase me permitindo acreditar que eu estava realmente em casa, se não fosse pelo fato de a lua parecer tão pequena e distante.
“É o tamanho dela ou a distância? Nah, isso não faz diferença.”
Realmente, não fazia diferença para mim. Mesmo se ela saísse de órbita, não havia nada que eu pudesse fazer, pelo menos no meu estado atual.
Me virei para ver a garota jogar um punhado de gravetos no lugar onde seria a fogueira. Onde ela conseguiu tudo isso? Me levantei, ficando sentado, e percebi que não havia gravetos ao redor. Ela voltou à mochila e pegou mais gravetos.
“Ela estava carregando isso o tempo todo?!”
Isso é normal por aqui? Não parece certo. Não, acho que sou o errado. Por alguma razão, sinto que sou o errado. Com vergonha de encarar a situação, viro-me para o outro lado, observando a terra vazia.
Essa montanha me lembrava os tempos vermelhos com suas montanhas e vulcões. Não, com o gelo, poderia ser uma das montanhas daquele planeta de gelo, mas só um pouco mais quente. Isso me lembra da vez em que o livro caiu dentro do mar congelado e fiquei muito tempo embaixo da água no escuro.
“Foi tão engraçado quando achei ele. Gritou tanto comigo por... por dias ou foram semanas?”
Conforme me aproximava do topo, a subida da montanha se tornava cada vez mais íngreme, mas essa não era a maior montanha. Estendia-se uma cadeia de montanhas além dela, e em algum ponto, oculto sob neve e pedra, estava o livro. Estava decidido a encontrá-lo, nem que levasse até a explosão do sol.
Um som agudo parecido com o de um metal chamou minha atenção. Virei para ver o que acontecia ali e me deparei com a garota batendo uma pedra na outra, com a vá esperanças de acender o fogo diretamente nos galhos.
“Pensei que ela realmente soubesse de algo, mas no final, é apenas uma criança...”
Levantei-me do chão e me aproximei do meu lado da fogueira. A garota parou de bater as pedras e lançou um olhar intrigado sobre mim. Com um gesto pedi para ela se a afastar e assim ela fez. Estralei os dedos das mãos e do pescoço, preparando-me para o show.
Com a telecinese, peguei um dos galhos do monte e segurei com as duas mãos. Com ambas em cada ponta, dei um leve sopro. Toda a madeira entrou em combustão descontrolada por alguns segundos, mas logo se tornou um galho em chamas normal.
Coloquei ele de volta com cuidado na fogueira que se acendeu e olhei para a garota. Paralisada com cara de espanto, ela demorou um pouco para fechar a boca e se mover. A menina que se recuperou do susto se aproximou da fogueira para se esquentar
Parados diante das chamas crepitantes, nós dois encarávamos o fogo em silêncio. Os nossos olhares se cruzaram em meio à dança das labaredas, e, de repente, a garota sorriu.
Ela se virou abruptamente, dirigiu-se à sua mochila ao lado da cama. Em poucos instantes, voltou com uma manta. Fiquei surpreso, mas logo aceitei a manta com um aceno de cabeça. Pela primeira vez, tive a chance de dormir vestido e sob uma coberta ao mesmo tempo.
Voltamos para as nossas camas improvisadas e tentamos dormir, embora pelo menos um de nós tenha conseguido. Eu me deitei e passei a noite observando o céu estrelado. A beleza do firmamento era inegável, cada estrela brilhou como um diamante cintilante. Mesmo que nunca tenha visto um diamante pessoalmente.
Contudo, a tranquilidade da noite foi interrompida quando uma nuvem invasiva se intrometeu, obscurecendo a vista. Mesmo assim, consegui encontrar algum conforto na visão dos pedaços do céu que permaneceram à vista.
No meio da noite, a apatia surgiu. O céu podia ser diferente, mas ainda parecia monótono. A garota continuava dormindo, e o amanhecer estava longe. Não conseguia pegar no sono; era como se alguém me obrigasse a permanecer acordado.
No começo, tentei fazer exercícios, mas logo percebi que era inútil para um corpo que não se cansa por falta de ar. Só depois de correr nu pelo deserto durante um bom tempo é que me dei conta disso.
“Se essa garota fosse para casa, eu teria a liberdade de continuar minha busca pelo Livro... Se ela fosse para casa…”
Enquanto ponderava sobre a situação, uma ideia audaciosa brotou em minha mente. A ideia de levá-la de volta à tribo sem que ela sequer protestasse pareceu tão simples, fácil e rápida. Naquele momento, senti-me incrivelmente perspicaz por bolar esse plano astuto.
Com um movimento rápido, levantei-me e aproximei-me dela. Já havia decidido. Estava prestes a me abaixar para pegá-la e levá-la de volta à vila quando, de repente, uma cobra marrom e cinza emergiu silenciosamente e deslizou na direção da cama.
Minha mente acelerou enquanto eu buscava desesperadamente uma solução segura, mas o medo dominou, resultando em uma reação exagerada. Transformei a serpente em uma massa disforme de carne e sangue, o que não era minha intenção. O remorso logo me consumiu.
Deixei a bola disforme cair, e ela pousou perto da cama. O sangue escorreu como chuva no solo, cintilando à luz fraca da fogueira.
Fiquei ali, imóvel, por alguns instantes, ponderando minhas ações. Como isso pôde acontecer? A única explicação que fazia sentido:
— Medo... É engraçado, tenho medo de cobras.
Sim, só podia ser isso. Não havia uma razão para matar uma criatura que não é ameaça para mim.
— Vou considerar que foi falta de prática… Como daquela vez. — Isso relembrou uma memória dolorosa. — E se o mesmo acontecer com a garota pela minha falta de prática?
Essa questão me faria andar de um lado para outro se já não tivesse tomado a decisão. Quando a garota acordasse, ela estaria de volta a vila.
Volto a missão original de mandar a garota para casa, mas assim que vou enrolar ela nos panos vejo seu rosto pálido, com lábios e nariz roxos. A respiração dela começou a aparecer mais facilmente do que antes.
— Essa idiota!
“Ela me ofereceu uma manta mesmo com tanto frio ao monto de quase congelar? Louca. Essa menina é uma maluca!”
Se ela ao menos fosse capaz de entender, eu a sacudiria e gritaria todos os sentimentos que me consomem neste instante. Não somente os de agora, mas também todos os estresses que ela me causou em um único e maldito dia.
Respirei fundo e cantei um mantra.
“Não faça besteira, não faça besteira…”
Foda-se!
“Eu tenho todo tempo do mundo! Não preciso ficar com raiva agora… Sim, paciência é o que mais preciso nessa vida!”
Limpei o local do cadáver do animal e todos os vestígios, enterrando-os no solo. Agradeci pelo ato que me fez perceber algo importante: não preciso ter pressa. Se a pressa é inimiga da perfeição, então farei as coisas de maneira perfeita
Voltei para o meu leito e sacudi o pano para eliminar a sujeira. Em seguida, cobri delicadamente a garota e me sentei de frente para a fogueira, que estava prestes a se extinguir. Estendi a mão em direção ao fogo, e, à medida que minha mão se aproximava, as chamas ganharam vida, crescendo até atingir o dobro do tamanho original.
“Minha missão ainda é achar o Livro, mas vingança vai ser minha missão secundaria.”
Meu plano terá duas etapas. A primeira é manter a garota viva e aprender a língua dela. Quanto à segunda... bem, eu vou pensar nisso depois. Afinal, tenho bastante tempo para planejar.