Contra o Mundo Brasileira

Autor(a): Petter Royal


Volume II

Capítulo 28: Testes

A dor foi a primeira coisa que retornou. Peppe sentiu várias pontadas no torço, pernas e também um ardor superficial no braço. Gemeu, tentando se sentar na cama de palha, já se preparando para a agonia que certamente viria com o movimento. 

Ela não veio.

Ou melhor, veio, mas foi um eco distante do que ele esperava. Como uma lembrança de dor, não a coisa em si. 

Ele olhou para o braço, puxando a manga rasgada da túnica suja. Onde horas antes havia um corte profundo e sangrento, agora havia apenas uma linha rosada e sensível, quase uma cicatriz de semanas. O rasgo na coxa estava no mesmo estado. O ferimento na bacia, que ele temera ser o pior, agora era apenas uma rigidez muscular. 

Era como a sensação de tomar várias injeções pelo corpo. Ele sentia algum tipo de desconforto, contudo estava longe de alguém que tivera uma luta até a morte poucas horas antes. 

— Que porra... — murmurou, tocando a pele estranhamente curada.

Foi então que a segunda camada de consciência despertou. Como se tivesse uma biblioteca silenciosa dentro de sua mente e ela abrisse suas portas, o conhecimento começou a fluir. 

Ele não apenas via as cicatrizes; entendia a velocidade anormal da regeneração. Ele sabia que o excesso de energia vital que seu corpo consumira durante o sono foi estranho. Os resquícios de um processo regenerativo para um humano comum levaria semanas. O dele levou horas.

"Regeneração de tecido mole acelerada. Taxa: aproximadamente 1200% da base humana padrão", o pensamento surgiu, claro e clínico. "Consumo calórico elevado. Desidratação secundária presente."

Era mais do que informação. Era uma intuição profunda, um saber que parecia ter sempre estado lá, agora apenas despertado. 

A Loja da Ganância realmente pareceu um presente digno de se trocar pela própria alma naquele momento. O Pacote de conhecimentos que comprou era básico, mas isto apenas para os padrões de Floquinho, que era um espírito ancestral. 

"Caraca! Eu fiquei mais inteligente mesmo?!", desconfiou. 

Em seguida olhou para a garrafa de água ao lado da cama. Sem pensar, estendeu a mão. Não para pegá-la, mas em um gesto sutil de puxar. Sua vontade, focada e recém-descoberta, tocou a umidade do ar ao redor do recipiente, condensando-a, dirigindo-a.

Gotículas de água se formaram no ar, dançaram e depois se precipitaram suavemente em sua boca aberta, frescas e puras. Não foi um feitiço. Foi um ajuste ambiental, tão simples quanto estalar os dedos.

— Caralho — sussurrou para o quarto vazio, um sorriso lento e descrente se espalhando em seu rosto.

A euforia durou até seus olhos encontrarem o relógio de parede na copa. O ponteiro avançava implacável.

— Fudeu de verdade agora!

Os minutos seguintes foram um caos. Ele se levantou, seu corpo respondendo com uma leve dor residual, mas uma vitalidade roubada que o surpreendeu. 

A fome era uma fera no seu estômago, só que não havia tempo. Sara havia deixado uma túnica limpa e uma bacia com água. Ele se lavou às pressas, a água suja escorrendo pelo chão de terra batida, revelando a pele intacta por baixo da sujeira e do sangue.

Não havia tempo para se maravilhar. Vestiu a túnica, pegou uma bolsa com alguns materiais de escrita que Sara deve ter separado e saiu quase correndo.

***

Peppe estava ofegante, suando, mas chegou no portão principal exatamente quando o sino tocou. Ele correu e correu, mesmo com o desconforto.

Andou de pressa até a sala círcular número "000". Passou apressado pelos corredores, mas mesmo assim reparando neles. 

Aquele não era apenas um prédio de pedra agora. Ele via. Percebia as linhas sutis de força que percorriam as paredes, os pontos focais onde a energia mana se condensava (os laboratórios, a biblioteca, o salão principal), a teia quase invisível do sistema de segurança arcano que cobria as janelas do andar superior.

Enquanto se maravilhava, Oliver acabou passando por ele com um sorriso de desdém, emanando uma aura de mana disciplinada, fria e azulada, como gelo lapidado. 

Eles entraram na sala quase juntos. 

Notando bem, todos ali tinham algo parecido. Só que os outros brilhavam com cores e intensidades diferentes. Ele conseguia sentir seu poder, seu nível de exaustão, seu foco.

— Moretti — a voz seca de Mestre Corvus cortou o ar. O professor estava à porta da sala, com os olhos escuros escavando Peppe. Parecia que tinha acabado de entrar. 

Peppe olhou de volta, despertando de seus pensamentos. 

— Atrasado, como sempre. Sua aparência é... melhor do que eu esperava. — Houve um leve franzir de testa, como se Corvus detectasse uma incongruência mas não pudesse nomeá-la. — Sente-se. Iremos começar os testes teóricos. 

A sala era silenciosa, tensa. Pergaminhos foram distribuídos. Peppe sentou-se, olhando para a primeira questão de Teoria Arcano-Matemática. 

Uma semana atrás, aqueles símbolos eram hieróglifos alienígenas. Agora...

Agora era como se o tivessem perguntado quantas laranjas sobram depois de dividir nove delas para três pessoas. 

A equação pedia para derivar a função de estabilização de um campo de força de segundo círculo sob stress térmico. Não apenas ele sabia a resposta; vinte e sete métodos diferentes de resolução, alguns elegantes e modernos, outros brutalmente eficientes e arcaicos, surgiram em sua mente. Todos levavam ao mesmo resultado, aparentemente. 

Ele escolheu o mais direto, sua pena riscando o pergaminho com uma fluidez hipnótica. Símbolos complexos se formavam sob sua mão, não copiados, mas nascidos de um entendimento profundo.

Ele viajou pelas questões. 

Alquimia: prever o resultado da mistura de "Essência de Sombras Lunares" com "Pó de Rubi Solar" preparadas sob temperatura ambiente e condições normais de pressão. 

Herbologia: identificar a doença que atacaria uma Mandrágora cujas raízes fossem cortadas com uma lâmina de ferro não purificado. 

Ele não respondia. Ele discorria. Adicionava observações marginais que iam muito além do escopo da prova — notas sobre aplicações, variações raras dos componentes, e também sobre as teorias aceitas.

Quando terminou, faltavam ainda vinte minutos. Ele olhou para Oliver, dois bancos à frente. O nobre estava tenso, a testa franzida, a pena hesitante. Peppe sentiu, mais do que viu, a onda de frustração e dúvida que emanava dele.

— Já terminou, neófito Moretti?

Peppe fez que sim, entregam a avaliação escrita para o professor e saindo de pressa da sala.

Quando Corvus viu o conteúdo escrito sobre ela, quase caiu para trás. 

Contudo não havia acabado ainda. A segunda parte era a demonstração prática. 

No pátio de treinamento, Mestre Ignis Feldspar, com seus cabelos ruivos como chamas, os aguardava. 

— É um teste bem simples. Demonstração de controle elemental básico! — bradou Iggy. — Vocês devem conjurar uma chama sustentada na palma da mão por trinta segundos. Simples! Vamos lá, quem vai primeiro? Você, Moretti! Vamos ver se encontrou sua 'paixão'!

Risadas abafadas soaram. Todos se lembravam do fiasco da semana anterior, quando perdeu a queda de braço arcana para Oliver de maneira vergonhosa.

Confiante, caminhou até o centro do círculo de observação. 

Peppe ergueu a mão, contudo não pensou em "fogo". Pensou em converter a energia cinética do ar, gerando atrito molecular para forçar uma excitação térmica localizada. Sua vontade agiu como um catalisador perfeito.

O resultado foi impressionante. 

Não foi uma chama que surgiu. Foi um sol em miniatura.

Uma esfera perfeita de plasma branco-azulado, silenciosa e estável, pairou sobre sua palma. Não tremulava. Não fumegava. Brilhava com uma luz intensa e pura, aquecendo o ar ao seu redor em um gradiente suave e controlado. Dentro dela, padrões de conveção dançavam como serpentes de luz.

O silêncio foi absoluto. As risadas morreram na garganta.

Ignis engoliu seco, com os olhos arregalados. 

— Isso... isso não é um feitiço de primeiro círculo — sussurrou. — Parece até que...

Ele chegou mais perto, encarando a pequena bolota. Os demais se afastaram, com medo daquele amontoado de chamas explodir. 

— Isso é controle de plasma. Interessante. Normalmente, nem magos do terceiro círculo conseguem executar algo tão perfeito. Belo controle de mana, meu caro. Você tem talento! — A voz acalorada de Iggy ecoou, varando o ar. 

— Absurdo! Como seria possível um neófito que nem sequer chegou ao primeiro círculo conseguir realizar um Globus Lucis Stellaris com tamanha precisão — Peppe escutou a voz vazia de Corvus cortando o ambiente.

Todos se viraram para ele. Estava na parte de cima da arquibancada, junto dos outros professores da classe especial. Aparentemente, todos se juntaram para acompanhar os testes práticos.

O mestre arcano-matemático desceu os degraus, seus olhos fixos em Peppe como um falcão em sua presa. 

Ele deixou a esfera se dissipar, não em fumaça, mas em um brilho suave que se dissolveu no ar. A pergunta de Corvus não era sobre técnica. Era sobre impossibilidade.

Ele encarou o mestre e, pela primeira vez, não havia medo ou humilhação em seu olhar. Havia apenas uma calma profunda, e um conhecimento tão vasto que era quase assustador.

— Eu estudei — disse Peppe, sua voz tranquila ecoando no pátio silencioso. — E parece que finalmente entendi.

Na varanda, a Mestra Lyra trocou um olhar intenso com Silas. O mestre da ilusão tinha um sorriso pequeno e satisfeito nos lábios.

— Eu avisei — sussurrou Silas, quase cantarolando. — O garoto da profecia. A ascensão começou.

— Os resultados serão pendurados no mural amanhã pela manhã. Todos poderão ver. Agora, vamos continuar. Quem quer ser o próximo?

A pergunta de Iggy fez o restante da turma voltar à realidade. 

Oliver encarava Peppe com uma espécie de fúria, algo que nem ele conseguia explicar. Parecia que seu palco havia sido roubado. De uma hora para a outra, não era ele mais o centro das atenções. E aquilo o irritava.   

Saindo de canto, Peppe deixou o pátio sob o olhar atônito de todos, a sensação de poder novo e antigo pulsando em suas veias, e a certeza de que nada na Academia — e talvez, em todo o seu mundo — seria como antes. De alguma forma, ele sabia que havia sido aprovado e que os resultados eram mera formalidade.

A prova estava fechada, mas um teste muito maior havia apenas começado.

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