Volume II
Capítulo 26: Linha de Produção de Almas (Parte II)
O ar noturno cheirava a mofo e crime.
Foi como Derik, o chefe-ladrão da guilda, descreveu. Peppe chegou antes do pôr do sol, na esperança de conseguir se esgueirar antes que seus alvos viessem fazer negócio.
Deu certo, de certo modo. Ele chegou cedo, mas não muito. Minutos foram o bastante para que dois grupos distintos se encontrassem ali.
Eles chegaram na surdina, como se tivessem brotado do completo nada. Eram ágeis.
Foi então que duas carroças pararam, escoltadas por alguns bandidos. Outros homens, vestidos com um tipo de terno preto, saíram dos becos, entrando no centro do pátio.
A noite em Celestria tinha um jeito peculiar de esconder seus segredos mais sombrios. Enquanto os nobres nas torres altas brindavam com vinho importado e discutiam filosofias mágicas, os becos da periferia sussurravam conspirações em tons mais terrenos. O pátio abandonado nas docas era um desses lugares onde as sombras pareciam se coagular em formas mais densas, mais substantivas.
Peppe se encolheu atrás de uma pilha de barris podres. Naquele momento ele fedia a exaustão. Doze horas. onze almas. A matemática macabra dançava em sua mente enquanto observava aqueles homens.
E eram seus movimentos que o intrigavam. Não tinham uma postura desleixada de contrabandistas comuns, e sim uma eficiência quase militar com que descarregaram as caixas dos carroções.
E então viu o líder.
O jovem não era o que se esperaria de um chefe do crime. Seus cabelos eram de um verde musgo tão incomum que pareciam absorver a pouca luz disponível, como se fossem feitos de sombra vegetal. O corpo era franzino, quase delicado sob as vestes escuras que, mesmo simples, tinham um corte impecável. Mas eram os olhos que prendiam a atenção. Vividos, intensos, queimando com uma curiosidade quase alienígena enquanto examinava o conteúdo das caixas com as luvas de couro fino.
Peppe conseguiu vislumbrar o interior de uma delas, que estava aberta. Não se pareciam com armas convencionais ou drogas. Eram artefatos de metal prateado em formato de bolas com runas que pulsavam com uma luz azulada inquieta.
Tecnologia arcana.
O jovem de cabelos verdes pegou um dos dispositivos. Era um orbe do tamanho de uma maçã que emitia um zumbido baixo e perturbador.
— Os testes em Morath superaram as expectativas — disse sua voz, suave mas carregada de uma autoridade inquestionável. — A agressividade induzida chegou a 340%, com supressão quase total do córtex pré-frontal. Perfeito para nossa fase de implementação nas províncias do leste.
Um dos contrabandistas, um homem com cicatrizes no rosto que falava mais de brigas de taverna do que de conspirações políticas, balançou a cabeça confuso.
— O que isso significa na língua do povo, mago?
"Mas que merda é essa?", pensou Peppe, um frio percorrendo sua espinha. Isso não era crime organizado, era engenharia social em escala industrial.
O jovem mago sorriu, um gesto fino que não alcançou seus olhos intensos.
— Significa que vocês transformarão essa maldita cidade em um verdadeiro Purgatório. Hahaha!
Eles também riram em resposta, repassando ao jovem mago uma pilha de bolsas que pareciam estar repletas de dinheiro.
"Puta que o paril. Agora eu realmente me deparei com a verdadeira putaria, mas que cacete".
Agora estava em um dilema. A situação parecia feia e envolvia artefatos estranhos cujo poder destrutivo ele desconhecia. Talvez devesse fugir e avisar as autoridades. Era só que quando fizesse isso, já seria tarde. E mesmo que fugisse, ninguém acreditaria nele. Não teria simplesmente como fingir que estava andando de modo aleatório em uma região erma e escura de uma favela de Celestria no meio da madrugada e, por um acaso, acabou descobrindo uma transação de magos contrabandistas com terroristas perigosos.
Por outro lado, precisava das almas deles se quisesse continuar na Academia e aprender magia. E só tinha algumas horas antes das provas. Precisava matá-los, e rápido.
Peppe não precisou pensar ou ver mais. Sua mão já fechava a última de suas granadas caseiras, uma mistura instável de componentes alquímicos que cheirava a enxofre e pólvora.
— Quer saber, foda-se — cuspiu, as palavras saindo como um juramento.
A granada voou em um arco perfeito, mas o jovem de cabelos verdes já estava em movimento antes mesmo do vidro estilhaçar. Seus dedos finos dançaram no ar, tecendo geometrias sagradas com a precisão de um ourives trabalhando com fios de luz.
— Scutum Fulminis! — a voz ecoou com a autoridade de quem estava acostumado a ser obedecido.
Um escudo azulado se formou, não apenas para dissipar a explosão, mas parece que para absorvê-la, convertendo a energia caótica em padrões ordenados que brilharam brevemente antes de se dissiparem.
— Um intruso — murmurou, mais para si mesmo. — Que padrão de mana caótico... — Ele se virou para os contrabandistas. — Capturem-no vivo. O Conselho terá interesse em estudar essa anomalia.
Peppe não esperou ser cercado. Surgiu das sombras como um demônio, sua capoeira transformada em uma dança mortal. Seus movimentos eram fluídos e imprevisíveis.
Deu logo uma rasteira no primeiro contrabandista, depois emendou um chute giratório, uma esquiva que virava um golpe de palma.
O jovem mago observou, fascinado.
— Pitoresco — comentou, como se fizesse anotações mentais. — Alta eficiência energética, baixo custo cinético. Inadequado para batalha campal, mas excelente para combate em espaços confinados. — Seus dedos começaram a desenhar runas no ar. — Paralis Corpore!
Uma luz esverdeada se formou onde ele havia desenhado, voando até o chão, próximo a onde Peppe estava.
Ao pisar nas runas, congelou no meio de um movimento. Seus músculos ficaram travados. Era como se o próprio ar tivesse se solidificado ao seu redor, uma prisão perfeita e impessoal. Se sentiu preso por uma série de fios invisíveis, uma sensação bizarra, que nunca experimentou antes.
Observou o ambiente. Aquele pátio escuro, a lua aparecendo tímida entre as nuvens. Tentou se debater para escapar, mas não adiantou. Aquelas cordas invisíveis eram muito fortes.
Os contrabandistas que ainda estavam de pé se afastaram. O mago então se aproximou, examinando-o com a curiosidade clínica de um cientista estudando um inseto raro.
— Interessante — murmurou, seus olhos verdes percorrendo o corpo imóvel de Peppe. — Resiliência física anormal para alguém com treinamento tão... primitivo. — Sua mão gesticulou, e Peppe sentiu uma pressão estranha em sua mente. — E a assinatura de mana... tão caótica, mas com ecos de múltiplas fontes?
Peppe forçou os lábios, conseguindo mover apenas os músculos faciais.
— Vai se foder — gemeu.
O mago riu, um som seco e acadêmico.
— Encantador. Bom, deixe-me continuar com os exames.
Peppe fechou os olhos, ignorando a dor e o medo. Ele voltou-se para dentro, tentando se acalmar para o desespero não tomar conta de si.
Sabia que seria inútil continuar a se debater. Estaria lutando contra algo que ia além do poder humano. Esse era o verdadeiro poder da magia.
"Que cacete, eu tô muito fudido". Ele até tentou chamar por Floquinho, porém nada. A criaturinha estava em um sonho profundo e não despertaria por nada.
Assim, abandonado à própria sorte, Peppe só tinha uma saída.
"Tenho que romper essa porra com magia".
Decidido, Peppe fez um esforço sobre-humano para focar sua vontade não em quebrar as correntes, mas em entendê-las. Lembrou-se das lições de Corvus e também da vez que a professora Lyra o avaliou, ainda quando estava tentando entrar na Academia.
Ele precisava deixar o fluxo de partículas mágicas correr para entender o que estava acontecendo primeiro. Não deveria resistir quando sentisse a sucção de mana saíndo de seu corpo.
E assim aconteceu.
Pela primeira vez, conseguiu enxergar o que não enxergava antes. Olhando melhor, era como se as teias que o prendiam fossem visíveis agora. Ele podia visualizar.
E foi assim que notou pequenas imperfeições, pontos onde a energia oscilava levemente, como notas desafinadas em uma sinfonia perfeita.
"Como faço pra cortar essa caceta?", questionou-se, antes de ter um insight.
Com um estalo que pareceu ecoar através da própria realidade, as correntes se romperam. Peppe rolou para o lado justamente quando uma adaga mágica perfurou o ar onde seu coração estivera momentos antes.
O jovem mago recuou um passo, genuinamente impressionado.
— Excelente! — seus olhos brilharam com admiração profissional. — Capacidade de adaptação e aprendizado acelerado. O Conselho pagaria uma fortuna por um sujeito de testes como você.
— Que mané Conselho, seu filho de uma puta?!
Ele ergueu ambas as mãos, e desta vez não havia mais curiosidade científica em seus olhos, apenas determinação.
Peppe sacou a espada.
— Gladii Aetherii! — Do lado do rapaz de cabelos verdes, dez lâminas de energia pura se materializaram no ar.
Cada um daqueles objetos pontiagudos girou em padrões matemáticos perfeitos antes de mergulhar em direção ao alvo em sequências calculadas para cobrir todos os ângulos de fuga.
Peppe dançou entre as lâminas como um louco, sua capoeira levada ao extremo absoluto. Ele se contorceu, girou e saltou. Tudo em sequência.
Cada movimento foi uma oração desesperada pela sobrevivência.
Uma lâmina cortou seu braço, outra raspou a coxa. O sangue jorrou, pintando o chão de escarlate. E a dor veio, mas não podia dar a devida atenção a ela, porque os ataques não pararam.
A ideia anterior era atacar o adversário com a espada e separar sua cabeça do resto do corpo, antes que usasse algum outro feitiço bizarro ou algo do tipo. Só que o mago foi mais esperto, e mais ligeiro, do que ele.
Peppe estava perdendo terreno, e muito sangue também.
Foi então que algo aconteceu.
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