Contra o Mundo Brasileira

Autor(a): Petter Royal


Volume II

Capítulo 24: Fome por sangue

O ar noturno dos becos da Zona Sul de Celestria tinha um fresquinho de bosta, literalmente. 

As ruas daquela periferia, longe do brilho mágico das torres, cheiravam a lixo, mijo de beco e desespero barato. Um cheiro que Peppe conhecia bem da Terra, mas que aqui tinha um gostinho especial de magia.

"Cacete! Aqui é pior do que onde eu moro", pensou. 

O pedaço de papel que recebeu de Derik na Mão Sombria queimava no bolso do seu casaco simples, um peso morto que puxava o tecido para baixo a cada passo. 

Ele não precisava sequer abrir duas vezes. A imagem do mercador de escravos — Bartholomeu, o mesmo que ele roubara antes — já estava cravada na sua mente como uma faca. Um barrigudo vermelho, suado, com dedos cheios de anéis (bom... não mais tão cheios assim) e o sorriso podre de quem lucrava com a miséria alheia.

"Serviço de zeladoria", Derik dissera. Só limpamos a escória.

"Tá bom, e eu sou o Papa", Peppe pensou, cuspindo no chão. Seu estômago embrulhava, mas não era nojo. Era uma agitação estranha, uma coceira nos músculos que ele conhecia bem: a antecipação do perigo. A mesma sensação que tinha antes de desfilar para um público hostil, como o da fashion week, ou então de encarar um fotógrafo falastrão que queria lucrar com alguma fofoca suja. 

"Finalmente acordou para a vida, moleque?" A voz de Floquinho ecoou na sua cabeça, sonolenta mas afiada. "A ganância move montanhas, mas primeiro ela suja as mãos. Ou, no seu caso, ensanguentada."

— Não grita... — Peppe resmungou, baixo. — Tô tentando ter uma crise moral aqui, caralho.

"Crise moral?! Você é ganancioso, eu sou a Ganância. É simbiose pura. Pense nas almas. Pense no conhecimento. Pense em não ser expulso dessa tal Academia e, se possível, tente conseguir umas almas melhores"

Ele tinha um ponto. A imagem de seu primeiro dia transmigrado bateu-lhe à porta da conciência. Quase morreu, e isso depois de ter sido assassinado. Também lembrou de Oliver, com seu sorriso de superioridade e sua mão gelada de mana.

Peppe era um modelo, talvez não o melhor deles, mas certamente um dos mais arrogantes. Mas sua habilidade lhe permitia isso. 

Agora, neste mundo, por que raios deveria ser diferente?

A raiva, sempre um combustível mais confiável que a moralidade, borbulhou nele. Sim, ele precisava daquelas almas. Precisava do conhecimento. Precisava de poder. E se o caminho estava pavimentado com cadáveres de escória... que fosse.

O alvo estava em uma taverna suja, na beira de um grande rio que levava para o mar e o qual os moradores de Celestria usavam de esgoto. 

A "Sereia Bêbada". Um lugar de fachada, usado por negociantes de escravos como prostíbulo para encontrar potenciais clientes.  

Era o lugar perfeito para um negócio sujo: escuro, barulhento e com clientes que não faziam perguntas. Peppe se encostou na parede de tijolos do prédio oposto, as mãos sujas enfiadas nos bolsos. Observou.

Bartholomeu estava lá, como previsto. Rindo alto, cercado por dois guardas com cara de poucos amigos e caras de quem batia primeiro e esquecia as perguntas. Parece que andou tomando medidas para evitar mais furtos. Também comprou novos anéis para cobrir os dedos.

Ele levantou uma caneca de cerveja, e a luz fraca da lanterna refletiu no rubi que Peppe já havia roubado uma vez. O homem era burro em demasia, ou muito confiante.

Peppe deu a volta, voltando para as sombras. 

Depois de tantos roubos, ele começou a ficar bom em desaparecer por aí, sem deixar rastros. 

Sumiu em meio às sombras de um beco que cheirava a peixe podre e morte lenta. Pelo que conseguiu observar, o caminho mais curto para a carruagem do mercador era através de um labirinto de becos, justamente o tipo de lugar que um nobre esperto evitaria. Mas Bartholomeu não era esperto. Era ganancioso e preguiçoso. E, pelo que parecia, também não era nobre. 

Mesmo assim, haveria dificuldade em matá-lo com os dois seguranças brutamontes tão perto.

Apesar de saber capoeira e de ter a habilidade física de um atleta de alto rendimento, ele não era um especialista em matar pessoas. E também não sabia esgrima, portanto sua espada não iria ajudar muito.

Poderia iniciar uma briga direta, mas os brutamontes o atrapalhariam, oportunizando ao alvo correr e clamar por ajuda. Se chamassem a guarda, ele estaria realmente encrencado, porque, apesar de sujo, o negócio de um comerciante de escravos era lícito. Furtar, entretanto, não era, e Peppe havia furtado muito por aí, usando os mesmos trajes que usava no momento: capa preta, roupa de linho barata, máscara improvisada, bandana para esconder os cabelos. 

Era sua marca, a marca do "Ladrão Fantasma".  

A ideia, então, era atacar por trás, enquanto ele passava, e depois fugir. 

Com isso em mente, ele se agachou atrás de um monte de barris vazios, o coração batendo um ritmo de samba no peito. Não era medo. Era a adrenalina do caos, a mesma que sentia ao desfilar na passarela sob milhares de olhares críticos. Só que aqui, o preço do erro não era uma crítica no jornal. Era uma facada na garganta.

Os passos pesados e a voz arrastada de Bartholomeu ecoaram na entrada do beco.

— ...e digo mais, aquele lote de elfas da floresta vai render uma fortuna no leilão de Maschata. São novas, dóceis e, principalmente, deliciosas... — o mercador ria, ofegante. — Quase dói ter que vendê-las.

Um dos guardas murmurou algo inaudível.

— Bah, relaxem! — Bartholomeu gargalhou. — Quem ia ser louco de me atacar aqui? A guarda...

Foi a última coisa que disse.

Peppe não saiu das sombras. Ele jorrou delas. Seu corpo malhado alcançou uma velocidade que ele nem imaginaria que seria possível. 

Moveu-se com uma economia de movimento assassina. Não foi capoeira. Não foi esgrima. Foi algo mais primitivo. Um braço envolveu o pescoço do mercador por trás, cortando o ar e o som. 

A outra mão, segurando a espada que trazia consigo desde Vila Verde encontrou o espaço entre as costelas do homem, procurando o coração com uma precisão que nem ele sabia que tinha.

Foi rápido. Quase silencioso. Um grunhido abafado, um espasmo, e o corpo pesado de Bartholomeu amoleceu contra ele. Os brutamontes, alguns passos à frente, nem perceberam por um segundo crucial.

"Você tem talento", Floquinho riu.

E Peppe sentiu. Algo frio e denso, como um fio de mercúrio, saiu do corpo que ainda sustentava e foi puxado para dentro do seu próprio peito. Não era uma sensação física, mas uma presença sendo absorvida, digerida por algo que habitava o lugar da sua alma. Um gosto de metal e âmbar inundou sua boca, doce e repugnante ao mesmo tempo.

No dia da tentativa de assassinato, quando ainda estava em Amoris, isso também aconteceu. Por estar inconsciente na hora, ele não tinha percebido essa sensação misteriosa. 

— Caralho — ofegou, soltando o corpo que escorregou para o chão com um baque mudo.

Os guardas se viraram. Os olhos deles se arregalaram no escuro.

— Chefe?!

Peppe não esperou. Jogou a arma no peito do mais próximo — um golpe de sorte, que acertou algo vital — e partiu para o outro. Sem estilo, sem graça. 

Este último, contudo, conseguiu reagir. 

Travou a meia-lua de Peppe com o braço e logo em seguida lançou uma espécie de soco no peito do rapaz.

Apesar de ter bloqueado, ele sentiu algo diferente. O golpe do brutamontes era forte, muito forte, só que não era a força que o incomodava. O punho dele parecia rígido, como se estivesse revestido com alguma espécie de metal. 

"Isso é aura de batalha, rapaz", explicou Floquinho.

Peppe não sabia o que significava aquilo. Por dedução, concluiu ser algum tipo de feitiço que deixava o corpo mais duro. 

Pah! Outro golpe. Dessa vez acertou a parede do beco. 

Peppe desviou com uma ginga simples, depois deu um mortal para se recompor. Observando o lugar atingido, viu que a parede tinha se rachado. 

— Okay, isso foi perigoso. Perigoso pra caralho. 

O oponente não lhe deu tempo para respirar.

"Os assassinos de antes não usavam isso, por que será que esse burrão aí consegue?", refletiu, tentando se comunicar com Floquinho. 

A criaturinha retrucou: "Mas é claro que conseguiam, humano. E usaram. Era só que sua sensibilidade para sentir a mana na época era a mesma de uma porta. Depois do teste, parece que agora você pode sentir".

Bom, aquilo era interessante. 

"Tem algo que me ensine a usar isso na Loja?", questinou. 

Floquinho riu.

Antes que obtivesse uma resposta, outro golpe veio. Esse ainda mais forte. Causou um estalo quando atingiu outra parede. 

— Seu animal! Vai acabar derrubando uma casa desse jeito — Peppe reclamou.

O homem não respondeu. Não com palavras, pelo menos.  

Apenas violência crua.

Sem muito tempo para pensar em como escapar, um insight veio-lhe à mente quando notou uma pequena abertura na guarda do adversário. Ele era muito grande e bastante forte, mas um tanto lento. Se conseguisse escapar de um soco e encaixar um contra-ataque...

Slap! Peppe atirou a espada contra a face do brutamontes. 

Ele ficou sem entender e estapeou o objeto perfurocortante como a uma mosca. Era só que não esperava que o rapaz que corria em sua direção, do nada, faria um movimento obtuso, jogando-se no chão com as duas pernas estiradas e a mão tocando o solo. 

Rasteira. Foi o que aconteceu. Bem na perna esquerda.

E o brutamontes se desequilibrou.

Aproveitando a oportunidade, Peppe usou um mortal para se recompor e correu com toda a velocidade para a parede lateral, pulando nela e continuando a corrida até a nuca do adversário. 

Um grande salto, seguido de um movimento decrescente com a perna. 

Crack! 

A sensação de ossos se partindo era bem peculiar. Parecia que estava quebrando um galho, mas na realidade era um pescoço.

— Eu sabia! Não dá pra revestir o corpo todo com essa tal "aura de batalha". As canelas e o pescoço dele tavam desprotegidos. 

Outro fio de mercúrio. Mais frio. Mais doce. Mais nojento.

Ele ficou de pé, ofegante, no beco silencioso. Três corpos. Três almas. O rubi de Bartholomeu brilhava fracamente na poça de sangue que se formava. Ele pegou, limpou-o na roupa do morto e enfiou no bolso. Era seu, por direito de conquista.

A náusea veio então. Ele se apoiou na parede para melhorar, cuspiu um pigarro com sabor de bile e suor. O gosto de ferro na boca era real agora, do seu próprio lábio rachado. Apesar de estar se acostumando com aquilo, ainda demandava certo esforço, tanto físico quanto mental. 

"Seis almas. Agora só faltam dezenove..." A voz de Floquinho era um arrulho satisfeito, um suspiro de prazer. "Agora, vamos ao que interessa, o pagamento..."

Peppe estranhou aquilo. Por que Floquinho estava falando de pagamento?

A visão da Loja da Ganância explodiu em sua mente, dourada e tentadora. E ele viu. O "Pacote de Conhecimento Alquímico Básico" agora brilhava, acessível. "Preço: 5 almas".

"Aceita? É só dizer sim."

Peppe olhou para suas mãos tremendo. 

— Mas não era pra eu receber só depois das vinte e cinco almas? Por que está me vendendo isso agora?

"Eu nunca disse isso. Disse apenas que estava fazendo uma promoção, o 'Conhecimento Alquímico Básico' custa 5 almas. Vai querer ou não?" 

— Sim — a palavra saiu como um sopro, um acordo com o diabo que já estava selado há muito tempo.

A dor foi instantânea e avassaladora. Não a dor física do teste, mas uma inundação de informação. Símbolos arcanos, fórmulas alquímicas, herbologia, materiais e propriedades de inúmeros ingredientes — tudo despejado em seu cérebro como cimento quente. 

Peppe caiu de joelhos no meio da sujeira e do sangue, as mãos na cabeça enquanto o conhecimento, comprado com vidas, era forjado em sua mente.

E então, tão rápido quanto veio, a dor cessou. E o silêncio voltou. Um silêncio diferente.

"Até logo, humano." A voz de Floquinho era fraca, distante, embriagada. "Vou digerir meu banquete. Vá arranjando as outras almas e depois volte a falar comigo".

E se foi. O vazio que deixou era aterrador. Peppe estava sozinho. De novo.

Ele se levantou, cambaleante. O corpo doía, a mente zumbia com conhecimentos recém-adquiridos, mas o beco ainda era um beco, e os mortos ainda estavam mortos.

Caminhou até a saída, sem olhar para trás. Havia sangue no seu rosto, nas suas roupas. Ele precisava se limpar, sumir antes que a guarda aparecesse.

Mas um pensamento o perseguia, mais assustador que qualquer fantasma. Ele matou a empregada, e Floquinho matou os três assassinos controlando o seu corpo, então essas mortes podiam ser debitadas em sua conta. Agora mais três morreram. Ao todo, mal havia cinco meses que transmigrara para este mundo, e já tinha matado humanos sete vezes, fora os goblins.

E o pior de tudo? No fundo, no lugar mais negro e ganancioso do seu ser, dessa vez tinha sido... fácil.

Ele saiu do beco e se misturou às sombras da noite, um estudante, um príncipe, um assassino. E a fome por mais, ele sabia, só tinha começado.

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