Contra o Mundo Brasileira

Autor(a): Petter Royal


Volume II

Capítulo 22: O valor de uma sopa quente

A realidade da Academia de Magia de Rochedo era como um banho de água gelada no ego de Peppe.

Para começar, foi obrigado a se mudar com Sara para uma espécie de casebre na periferia de Celestria. Era uma sentença clara de sua situação financeira. 

Não que fosse uma favela, ou um lugar perigoso, mas apenas um pouco melhor do que isso. As paredes eram de madeira e rangiam com o vento. O chão ao menos tinha acabamento, feito com uma espécie de madeira que parecia feita de algo semelhante a MDF. 

Aquele era um mundo de distância dos corredores de mármore e das torres de marfim que ele viu no centro durante sua hospedagem anterior.

— Você vai se sair bem, mestre — disse Sara, ajustando a gola simples de sua túnica nova, a melhor que tinham, mas que ainda assim parecia um trapo perto dos uniformes dos outros alunos.

Ela foi comprada em uma loja de artefatos mágicos, próxima ao "Mão Sombria". 

— Claro que vou, Sara. E o que breguice é isso de "mestre" — resmungou, mais por hábito do que por raiva real. Seu estômago estava em um nó. A fama de ter “quebrado o cristal” era um fardo pesado demais para seus ombros magicamente analfabetos.

A garota tentava se acostumar com a nova posição, mas às vezes se sentia estranha. O jovem à frente não a tratava como uma escrava tradicional. Apesar de ela ter cuidado dos afazeres domésticos ultimamente, era mais como se fosse uma diarista do que uma serva. 

Na realidade, ela parecia um pouco com uma "esposa". Ela corou com esse pensamento.

No dia anterior foi quando aconteceu a cerimônia de abertura e recepção dos calouros. Peppe não ficou muito. 

Quando estava saindo, entregaram-lhe uma carta. Nela, algumas coisas estavam explicadas. 

"Classe Especial", o refúgio dos “gênios”, era uma sala circular com teto abobadado, de número "000", onde, diziam, constelações cintilantes se moviam lentamente. 

Era composta de doze alunos. Aparentemente Peppe era um deles e deveria se apresentar no dia antes da aurora, antes de o sol alcançar a angulação das colinas ao sul — no caso, naquela manhã, até às oito horas.

E assim ele fez. 

Onze pares de olhos o seguiam quando ele entrou, carregando um misto de curiosidade e desdém, talvez pelas roupas simples que usava. No centro do grupo, como um pavão em meio a pombos, estava Oliver Oliveira. 

A túnica dele era de um branco imaculado, combinando com o restante das roupas. Tinha um brocado com fios de prata que formavam o emblema de sua casa – uma oliveira estilizada. Seus olhos percorreram Peppe da cabeça aos pés, e um sorriso afiado e condescendente surgiu em seus lábios.

— O prodígio de Tullis finalmente nos honra com sua presença — disse Oliver, sua voz um mel fluido e venenoso. — Estávamos curiosos para ver o talento que… quebrou o único instrumento de avaliação e impediu o restante dos testes.

Risos contidos ecoaram pelo grupo. Peppe sentiu o rosto esquentar. Ele se lembrou das passarelas, dos flashes, da admiração fácil. Aquilo era diferente. Era o desprezo da nobreza local, o tipo que não se comprava com um rosto bonito.

"Puta que o pariu, já começou assim?", questionou-se. Não que fizesse questão, entretanto gostaria de se dar bem com os futuros colegas, sendo possível.

Como esse não foi o caso, ele apenas ignorou a todos, à contragosto, e se sentou no funda da sala.

A primeira aula foi de “Fundamentos da Canalização de Mana”, ministrada pelo Mestre Corvus, um homem magro e severo como um corvo.

— A mana não é força bruta — explicou, andando entre as bancadas. — É uma extensão da vossa vontade. Sutil. Precisa. Vocês vão projetar uma única centelha de mana na ponta do dedo. Algo que qualquer noviço de cinco anos em uma casa nobre decente consegue fazer.

Peppe olhou para seu próprio dedo indicador. Vontade. Concentração. Ele fechou os olhos, tentou se lembrar da sensação no cristal, daquela dor excruciante e do poder avassalador. Aquilo ainda lhe causava calafrios.

— Evidentemente que o talento é necessário para fazer a mana tomar forma. Para que alguém possa moldar as partículas fundamentais, é necessário talento e percepção.

E foi assim que um dia inteiro se passou. Mestre Corvus falava de uma maneira muito pausada, monótica. No geral, os alunos precisariam de muito esforço para não dormir. Peppe, infelizmente, não conseguia se prestar a este esforço.

Ele "trabalhava" até tarde da madrugada, então sentia sono regularmente. 

Contudo, tudo o que o professor Corvus fez foi encarar amargamente, passar um "dever de casa" e sair, da mesma forma que entrou. 

Antes de se levantar, Peppe olhou ao redor.

Foi quando viu pequenos lampejos de luz começarem a surgir. Oliver produziu não uma centelha, mas uma chama controlada e constante, dançando na ponta de seu dedo como uma vela mágica. Parece que já havia feito o dever de casa. 

Ele sorriu para Peppe.

— Algum problema, senhor Moretti? — perguntou, alto o suficiente para que todos ouvissem. — Parece que em Tullis, ensinam mais a quebrar coisas do que a construí-las. Ou será que o seu ‘talento arcano’ é apenas… força bruta, como a de um camponês? É uma pena que a linhagem Pistorius tenha caído tão baixo.

A referência à sua suposta linhagem foi um golpe baixo e preciso. O narcisista dentro de Peppe rugiu. A raiva, sempre seu combustível, borbulhou.

— O problema não é o que ensinam em Tullis. É achar que um palhaço de roupa branca sabe do que tá falando. Você tá parecendo uma pomba, cara, se enxerga — Peppe retrucou, sua voz ácida, mostrando que o deboche do colega claramente o atingiu.

O sorriso de Oliver não chegou aos olhos.

— Palavras de um homem cujos dedos estão tão escuros quanto suas perspectivas. Talvez você precise de uma lição prática. Um ‘duelo de vontades’. Um teste simples, para ver se há algo além de… ar quente.

Era uma armadilha. Peppe sabia. Todo mundo na sala sabia. Mas recuar era se entregar. Era confirmar toda a inferioridade que Oliver atribuía a ele.

— Que se foda. Vamos — cuspiu Peppe, estendendo a mão sobre a bancada.

Oliver fez o mesmo. Suas mãos se encontraram no ar, palmas quase se tocando. O ar entre seus dedos começou a vibrar.

E então, a dor. Uma queimadura aguda e repentina, como tocar em um ferro em brasa. A mana de Oliver era uma agulha fina e gelada, perfurando a defesa caótica e inexistente de Peppe. Não houve luta, não houve disputa. Apenas uma invasão rápida e humilhante.

Pah!

Peppe puxou a mão para trás com um grunhido de dor, segurando o pulso. Um vermelho marcante queimava na palma de sua mão. A sala ficou em silêncio, e então as risadas começaram, abertas e cruéis.

— Como era previsível — Oliver secou a palma da mão em um lenço de seda que tirou do bolso. — Força bruta, de fato. Se eu fosse uma donzela, teria esmagado minha mão. Mas era só isso. Treine mais, caro Moretti. Treine mais.

Peppe saiu da sala com o rosto ardendo, mas não tinha o que pudesse fazer. A dor na mão era insignificante perto da ferida em seu orgulho. E mesmo assim, teria que suportar. 

Mal tinha chegado ao corredor quando um funcionário da Academia, vestindo robes cinzas, o abordou.

— Giuseppe Moretti. O Diretor solicita sua presença. Agora.

Aquilo não o deixou surpreso. Isso pois havia sido avisado pela maga avaliadora ainda no dia do teste que o chefão da escola iria querer falar com ele.

***

O gabinete do Diretor era o oposto da sala de aula. Escuro, repleto de estantes de madeira entalhada e o cheiro envelhecido de pergaminhos e poder. Muitos livros repousavam ali.

O homem atrás da mesa grande de carvalho era mais velho do que Peppe imaginara, com cabelos prateados e olhos que pareciam ver até mesmo através das mentiras mais profundas. 

— Petrus — o Diretor disse, sem rodeios, sua voz era grave e cansada.

Peppe estremeceu. Ninguém o chamava por aquele nome desde que fugira do forte.

— Diretor… — ele começou, tentando montar uma defesa. — E, eu... Petrus é meu primo e...

— Poupe-me — interrompeu, erguendo uma mão. — Eu sei que nem o rei e nem a rainha de Tullis tem irmãos, então é impossível pra você ter primos, Petrus. Além do mais, seus pais, Alexandrus e Elara, foram meus colegas nos tempos de Academia. Amigos de verdade, em tempos mais simples. Faz muito tempo, sim. Porém, eu sei quem você é.

Uma centelha de esperança acendeu no peito de Peppe. Se aquele velho, que mandava na única academia de magia do continente, fosse seu aliado, então talvez… talvez ele não estivesse tão sozinho.

Eles conversaram um pouco. O Diretor o contou sobre seus "pais", e do tempo que estudaram juntos. Eles riram. Depois foi a vez de Peppe tirar das lembranças do falecido príncipe os raros momentos em que vira seus pais.

Mais risadas.

— Bom, você é esperto, velho. Posso te chamar assim, de "velho"? É um apelido carinhoso.

— Não — a palavra cortou o ar como uma lâmina. 

O Diretor então se levantou, olhando pela janela para os belíssimos jardins na beirada de um dos vários pátios ao estilo francês que cercavam os prédios da Academia. 

— Este não é mais um refúgio seguro, príncipe Petrus. O Conselho de Magia está rasgado por facções. Algumas delas… bem, algumas têm ouvidos e bolsos abertos para meus inimigos. E, acredite em mim, não são poucos. 

Aquilo caiu como uma pedra no poço do estômago de Peppe. Foi como se tomasse um soco no esôfago.

— O fato de você estar aqui, na Classe Especial, é todo o risco que posso correr. É todo o “favor” que posso conceder à memória de seus pais. Se eu me mover abertamente para protegê-lo, serei removido, e você muito possivelmente será tratado como um estorvo. Pode ser expulso ou até eliminado. 

Aquilo chocou Peppe mais uma vez. A ideia de facções e de política o faziam se sentir num enorme tabuleiro de xadrez. E o pior, ele parecia tão insignificante que nem uma peça era neste tabuleiro. 

— O que quero dizer é que você precisa entender: está sozinho, Petrus. Sobreviva por seus próprios méritos. Ou não sobreviva. Essa é a sua realidade agora.

Era pior do que qualquer humilhação de Oliver. Era a frieza institucional, o abandono por cálculo político. A esperança que tinha nascido morreu ali mesmo, congelada.

Sentindo-se ameaçado, Peppe ainda tentou se agarrar a uma última tábua de salvação.

Floquinho? — ele chamou mentalmente, desesperado. — Ei, seu cachorro preguiçoso, acorda! Tô na merda até o pescoço aqui!

Houve um estremecimento, uma sensação de algo se revirando no fundo de sua alma. Então, uma voz arrastada e fraca, como um sinal de rádio prestes a sumir, ecoou em sua mente:

“Exijo que pare de me perturbar, humano! Minha mana está esgotada… o pacto… a escrava… Já lhe expliquei antes. O custo foi... caro… Dormir… Preciso… dormir…”

O contato se foi. Um silêncio absoluto e aterrorizante tomou seu lugar. Até seu parceiro sobrenatural, a fonte de seu poder emprestado, o havia abandonado.

Bom, era até compreensível. Depois de ter feito um pacto demoníaco e de transformar o espírito livre de alguém em escravo, até mesmo o próprio diabo iria querer descansar. 

— Tente não levantar suspeitas. Fique escondido, no máximo que puder. Não chame a atenção de ninguém importante e, sobretudo, não se envolver em intrigas políticas, príncipe Petrus. Apenas estude com afinco e construa seu poder aos poucos. Enquanto estiver aqui, estará protegido das ameaças externas. Ainda assim, ameaças internas ainda existem — explicou. — Considere isto um pedido pessoal meu, sim?

Ele assentiu, como se concordasse. Em seguida se virou para sair. 

— Só uma última coisa — ele interrompeu o caminhar de Peppe. — Pou alguma coincidência, alguém lhe falou de alguma profecia em algum lugar.

Ele não entendeu a pergunta. Respondeu que não.

— Perfeito. Não dê ouvidos para esses religiosos, rapaz. A ciência e a magia avançam tanto, a cada dia que se passa. E, ainda assim, há aqueles que preferem viver de profecias e crenças infundadas. 

— Pode deixar, velhote. 

E foi assim que deixou a sala do diretor, que bufou ao perceber que foi chamado de velho novamente. 

***

A caminhada de volta para a periferia foi um tanto monótona. A cidade mágica, com suas torres brilhantes e ruas de calcário, parecia zombar dele. Ele era um príncipe sem reino, um mago que ainda não sabia nada de magia.

Ao abrir a porta do casebre, a expressão de Sara mudou instantaneamente. Ela viu a vermelhidão na palma da mão e a postura pensativa, um tanto sombria.

— O que aconteceu?

Ele não respondeu. Deixou-se cair em uma cadeira de madeira crua, enterrou o rosto nas mãos. O cheiro de sopa simples que ela preparava encheu o ar, um contraste gritante com a frieza da Academia.

—  Bom. Parece que estou sofrendo bullyng por ser burro e não ter tido educação em magia. O Diretor é um velho cuzão. Em resumo, o dia foi foda, Sara. Mas a sopa tá boa pra caraca, obrigado.

Sara se aproximou, hesitante. Como escrava, seu lugar não era questionar, nem consolar. Mas ela se ajoelhou ao lado de sua cadeira.

— Você não está sozinho — ela sussurrou, sua voz um fio de som no crepúsculo que invadia a casa. — Você tem a mim.

Ela parecia mais amigável depois dos acontecimentos recentes. Ainda que não concordasse com as atividades noturnas do mestre, ainda tinha que admitir que ele cuidava bem dela. Tinham um lar, comida, e alguma segurança. 

De alguma forma, queria retribuir aquilo. Então se uma comida bem feita, uma casa e roupas limpas eram coisas que o ele precisava, ela se esforçaria para fazer aquilo de uma boa maneira. Durante toda aquela tarde ela testou os ingredientes e andou perguntando na vizinhança por formas de melhorar a receita. 

As vizinhas, que aparentemente também eram donas de casa, em sua maioria, a ajudaram bem. Acharam que ela era uma jovem esposa, esforçando-se para agradar ao marido. E, assim, era óbvio que iriam ajudar.

Aos poucos, a relação de Sara e Giuseppe estava se tornando mais próxima. A confiança um no outro estava crescendo, embora não tivessem percebido aquilo no momento. 

Ele a abraçou. Pelo que parecia, ela era a única âncora que tinha naquele mundo. Apesar de sua relação só ter se iniciado devido ao fato de ela o tentar assassinar por dinheiro, aos poucos aquilo ia ficando no passado.

Peppe ergueu a cabeça, olhando para ela. Pela primeira vez desde que transmigrara, ele se sentiu amparado de alguma forma por alguém. 

Aquilo era bom. Foi ali que ele finalmente entendeu o valor de um abraço feminino e de uma sopa quente. 

— Bom, Sara, obrigado. De verdade mesmo. Vou pro meu quarto agora, hoje não irei fazer nenhum bico. Veja se consegue dormir também.

Ela assentiu, como que aliviada.  

— Pode deixar, mestre, eu irei. 

Apoie a Novel Mania

Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.

Novas traduções

Novels originais

Experiência sem anúncios

Doar agora