Contra o Mundo Brasileira

Autor(a): Petter Royal


Volume II

Capítulo 20: Primo Giuseppe

— Que fila longa do cacete — murmurou.

Peppe observava aquele monte de jovens nobres e burgueses de todos os lugares do mundo, vestidos com todo tipo de roupas espalhafatosas, e se perguntava se não tinha cometido um erro ao ir para aquele lugar. 

"Celestria": A cidade sede da Academia de Magia de Rochedo. Dali saiam a maioria dos magos do mundo.

Soava até como um conto de fadas, mas na prática era uma fila de banco num dia de pagamento, só que ao invés de velhos querendo receber o benefício no final do mês, estavam jovens afeminados e arrogantes.

— Próximo! — A voz da atendente era mais seca e dura que pão de queijo do dia anterior.

Ele avançou até o guichê, um balcão de mármore tão brilhante que dava para ver o reflexo de sua própria expressão. Ainda possuía a mesma beleza de antes, só que agora fez a barba. Os cabelos continuavam longos, pareceu combinar mais com aquele corpo. 

— Nome? — A atendente perguntou sem levantar os olhos da pilha de papéis.

— Giuseppe Moretti.

— Origem?

— Tullis. Sou primo do príncipe Petrus Pistorius Magnus.

A mulher parou. Ergueu o rosto e o encarou com um misto de curiosidade e desdém. Foi quando ele jogou a bomba. Uma carta de recomendação, que possuía o selo da família real. 

— Meu primo é o último herdeiro direto da linhagem Pistorius — declarou, tentando soar dramático. — Em seu nome, venho até esta academia, para que possa lhe ser útil no futuro, quando ele for rei.

A mulher pegou o selo, virando-o entre os dedos finos e ágeis. Em seguida, murmurou uma espécie de encanamento. Finas bolas de luz saíram de suas mãos e foram até o item, piscando, assim que o tocaram.

— Hmm. O selo é autêntico — murmurou, quase para si mesma. — Muito bem, senhor nobre. Preencha estes formulários. A taxa de inscrição é de uma moeda de ouro.

Ele pagou. Ela carimbou um documento e entregou-lhe um broche de bronze com o símbolo da Academia — uma torre envolvida por um redemoinho.

— Sua matrícula está condicionada. Os testes de nivelamento serão em uma semana. 

Peppe achou curioso. Ele pensou que os testes seriam juntamente com a matrícula, de forma imediata. Mas parecia que precisavam separar aqueles que tinham indicações autênticas dos que não as tinham.

— Lembrando que você precisa ter aptidão para a magia, ou vai embora, sem reembolso da taxa — ela continuou. — Os alojamentos ficam na Ala Leste, tem um espaço de uso provisório dos candidatos que farão o teste. O pagamento dos alojamentos é semestral: cinco moedas de ouro. Como você ainda é um candidato, pode pagar apenas uma moeda de ouro pelo uso do alojamento provisório.

Peppe quase engasgou.

— Quê? Cinco ouros? Só pra morar? E eu tenho que pagar um ouro se quiser ficar lá até os testes?!

— Os aposentos são mobiliados e possuem banho aquecido por runas, querido — explicou ela, como se isso justificasse assaltar um banco. — E a taxa anual de matrícula é de cinquenta moedas de ouro.

Cinquenta moedas de ouro por ano. Cinquenta moedas de ouro! E ainda precisava comprar livros, materiais, roupas... Ele fez as contas rapidamente. Era o equivalente a comprar um apartamento de luxo na orla de Copacabana. Todo ano.

— E eu posso levar... hóspedes? — perguntou, pensando em Sara.

Ela o olhou como se ele tivesse cuspido no chão.

— Nos alojamentos oficiais? Absolutamente não. A menos que sejam serviçais registrados, e ainda assim, só têm permissão durante o dia.

"Que merda", xingou internamente. Ele não ia largar Sara sozinha num cativeiro qualquer. E mesmo que se enfiasse naquele cubículo de ouro, ainda precisaria de grana para sobreviver.

Não lhe rendendo mais nem um minuto sequer de atenção, a atendente chamou o próximo. Peppe então se viu obrigado a sair. O sonho de ser mago começava a cheirar mais a pesadelo financeiro.

Isso porque ele nem sabia quanto custam esses materiais de estudo ainda. E ainda teria que fazer os testes.

Suspirou, indo ao encontro de Sara, para informá-la das circunstâncias. Parecia que eles teriam que se adaptar.

*** 

A Academia em si era um espetáculo. Fazia o Castelo de Versalhes parecer um barraco na favela. 

Torres que rasgavam o céu, jardins floridos e vividos, como os que a Condessa tinha em sua casa. Fontes que cuspiam água uma água translúcida, tão pura que era quase difícil de enxergar à luz do dia. Havia até umas mini bugigangas voadoras — ou seriam professores? — cruzando os céus. Parecia Hogwarts, só que com uma estética mais "rei francês depravado".

Mas toda aquela beleza não enchia seu bolso. E o bolso estava mais vazio que estádio em dia de futebol feminino.

Peppe então foi andando sem rumo pelos mercados adjacentes à Academia, mais para a periferia da cidade. Ele queria encontrar uma espécie de atalho até o centro, onde ficava o hotel, mas no caminho algo chamou sua atenção. 

Num beco escuro, quase escondido atrás de uma loja de componentes mágicos, havia uma pichação na parede, bem discreta: uma mão pintada de negro.

Do lado, havia um bar. Na placa, que ficava em cima da porta, estava escrito: Mão Sombria. O nome era tão sutil quanto um tiro de bazuca. 

Sem nada para fazer, decidiu entrar e investigar. Talvez conseguisse uma bebida para afastar suas frustrações.  

Entrou. Lá dentro, o clima era bem diferente: escuro, fedorento e cheio de caras que pareciam ter saído de um álbum de figurinhas dos "Mais Procurados". 

Peppe os ignorou. Pediu duas cervejas.

— Aqui está. 

Ele agradeceu. Depois de um tempo, um homem grandalhão, com mais cicatrizes que rosto, começou a olhar para ele. Em troca, também o encarou.

— O que quer, novinho?

— Dinheiro — disse Peppe, tentando esconder a frustração. — Preciso de dinheiro pra bancar uma mulher sem família que eu arrastei comigo, um cachorro ganancioso e também pra sobreviver nessa cidade de merda. 

O brutamontes ergueu a sobrancelha em espanto diante do relato sincero daquele rapaz. Olhando melhor, o jovem à sua frente parecia um nobre em desgraça ou então um comerciante falido. Ele tinha feições muito leves, muito belas, quase divinas. Também era bem pálido, mas parecia ter os músculos de um guerreiro treinado, ao menos olhando de longe. 

Isso significava que ele deveria ser o terceiro ou quarto filho de uma pequena família nobre, de um barão, talvez, ou então o filho bastardo de um mercador, que não pôde ser assumido pelo pai e teve que buscar trabalho em outro lugar depois de mais velho. 

Ao menos essa foi a narrativa que montou na mente, antes de continuar a conversa com o rapaz. 

— Bom, infelizmente você não pode continuar aqui, rapaz. Termine sua bebida e saia — ordenou o brutamontes.  

Agora foi a vez de Peppe de erguer as sobrancelhas. Ele não sabia onde estava, mas já havia notado que não era aberto a qualquer um, apesar da faixada de "buteco de esquina".

— É sempre assim, garoto. Mulheres rápidas e cavalos lentos... Sempre a mesma coisa, pra qualquer um — disse um velho ao fundo, intervindo. 

— Velho Jasper, esse daí não merece nossa prenda. 

— Acalme-se, Derik. Este velho sempre teve tino pra essas coisas. Ou vai negar? Já se esqueceu daquele garoto que tiramos da sarjeta uns anos atrás. 

— Aquele garoto era eu, velho — respondeu o brutamontes, com um olhar de "agora entedi". 

O velho então sorriu. Derik ficou calado. 

Peppe, por sua vez, estava confuso. Ele olhou para as paredes de concreto, depois para o teto de madeira caindo aos pedaços, depois voltou para encarar os homens à sua frente. 

Naquele momento, era como se o mundo tivesse parado. Todas as atenções estavam voltadas para aquelas três figuras. O jovem escorado em um banco, sobre a mesa do bar. O homem forte em pé ao seu lado. E o velho, que acabara de puxar um outro banco para perto do rapaz. 

— Vamos supor que nos tem uma maneira de ganhar dinheiro rápido por aqui, garoto. Só suposição. Estaria interessado? 

Peppe refletiu. Parecia que estavam o aliciando para o crime organizado. Ele não sabia que essas coisas existiam aqui também. Parecia mesmo que se aproveitavam da fraqueza dos jovens para explorá-los para o mal. O diabo realmente oferece pão para os famintos, quando eles mais precisam.

De qualquer modo, da forma como as coisas estavam, parecia ser uma boa opção.

Ele até poderia tentar arranjar trabalho na guilda, mas ainda era um aventureiro de rank E. Ninguém nunca lhe daria um trabalho que pagasse tão bem ao ponto de conseguir mantê-lo na Academia de Magia de Rochedo, lugar onde os nobres mais ricos do continente mandavam seus filhos e pupilos mais prodigiosos. 

Ele atualmente tinha algo como vinte e cinco moedas de ouro e uns quebrados, e teria de arranjar pelo menos outras vinte e cinco até a data da matrícula, depois dos testes. E isso sem contar o dinheiro para moradia, comida e os materiais. Fora que ainda tinha que sustentar Sara. 

Talvez nem os aventureiros top de linha conseguissem juntar tamanha quantia nesse curto período de tempo. 

Ele precisa pensar em formas de ganhar dinheiro. Parecia que havia superestimado o tamanho de sua riqueza. E, pensando bem, na bolsinha original tinham exatamente cinquenta moedas de ouro, apenas o suficiente para a matrícula. 

"Caraca. Eu fui burro pra cecete em gastar daquele jeito. Fiz igual uma patricinha no shopping. Que cacete", xingou-se internamente. 

— Não tem nada a ver comigo, ou com o Derik aqui, mas eu ouvi dizer que pagam bem — disse o velho, tirando o rapaz de seus devaneios. 

— Todo mundo quer entrar. Poucos têm o que é preciso — adicionou o fortão mal encarado. 

Peppe suspirou.

— Quer saber, que se foda. Eu tenho.

O homem riu, mostrando dentes podres.

— Tá bom. Prova —  disse, aproximando-se um pouco mais do rapaz. — O Bartholomeu, um mercador de escravos que opera aqui perto, tem um anel. Um rubi do tamanho de uma uva. Traga-o pra mim. Se conseguir, você entra. Se for pego, nunca esteve aqui e nós não te conhecemos. 

— E quanto é o pagamento? 

O homem riu. 

— Você é rápido, garoto. Gosto assim. Derik, quanto nosso garoto merece pelo trabalho?

Dessa vez foi o brutamontes a falar:

— Que tal uma prata, caso o anel valha alguma coisa. cem cobres, se não valer nada. 

Peppe gostou daquilo. Uma prata era o suficiente para comprar insumos e provisões para um mês, se ele e Sara fossem econômicos. Era um trabalho lucrativo. 

Esse era apenas o primeiro trabalho, parecia haver margem para mais ganhos no futuro. Talvez se tornar um ladrão fosse um caminho lucrativo para se manter ali e conseguir aprender magia. 

A missão era clara: roubar um filho da puta que provavelmente merecia ser roubado. Até que ia com a sua cara.

Peppe não perdeu tempo. Seguiu o tal Bartholomeu pela cidade. Não foi dificil encontrá-lo. O cara era um barrigudo vermelho, cheio de anéis e rodeado de guardas. Mas ele tinha um vício: parava em todos os botequins pelo caminho.

Num desses, o homem foi se aliviar num beco. Foi a chance de Peppe.

Deslizou para dentro do bar, fingindo ser um bêbado qualquer. Quando Bartholomeu voltou, distraído, Peppe se aproximou com uma ginga de capoeira, tropeçou levemente nele e, num movimento fluido, passou a mão em seu bolso.

— Perdão, meu bom homem — murmurou, com um sorriso idiota.

O mercador o empurrou, xingando, e seguiu seu caminho. Nem percebeu que o anel havia sumido.

— Olha por onde anda, seu moleque de merda! 

Peppe voltou para a Mão Sombria em dez minutos. Jogou o rubi na mesa, diante do grandalhão.

O homem pegou o anel, examinou-o e então... sorriu. Era a primeira vez que alguém naquela cidade não encarava Peppe com olhar de desconfiança.

— Bem-vindo à família, garoto — disse, enfiando umas três moedas de prata na mão do rapaz, duas moedas a mais do que prometeu mais cedo. — Apareça amanhã. Temos mais trabalho.

O rapaz ficou confuso pelas moedas a mais, mas um velho ladrão jamais se enganaria na hora do troco. Provavelmente foi um "extra" pela agilidade do serviço, ou algo assim. 

Peppe saiu dali com um peso a menos nas costas e um peso a mais no bolso. Não era uma fortuna, mas era um começo. 

Ele ainda tinha uns dezoito dias de hospedagem no hotel. Iria aproveitá-los e guardar o máximo de dinheiro que pudesse nesse meio tempo. Também "trabalharia" feito um louco para Derik e o velho, para conseguir dinheiro. 

A meta era levantar vinte e cinco moedas de ouro até o dia da matrícula. Era como tentar juntar o suficiente para comprar uma casa à vista em uma semana. Alguns o chamariam de louco; outros, de visionário.

Quando voltou para o quarto, no hotel, viu Sara sentada no sofá. A cumprimentou e foi direto para a própria cama.

Depois deitou, olhando para o teto. O primo Giuseppe Moretti, aventureiro de rank baixo e sublime ladrão, conseguiu seu primeiro emprego em Rochedo, com o qual pagaria seus estudos para se tornar mago. O príncipe Petrus, se estivesse vivo, teria um treco.

Mas pelo menos ele não estava mais na merda. Só até o joelho.

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