Volume I
Capítulo 5: Mendigo dourado
Quando os goblins emparedaram Peppe, ele não sentiu medo, nem nervosismo. Ao contrário, algo que nunca tinha experimentado aconteceu.
Uma sensação de calma extrema diante da morte certa. Era como se o tempo tivesse desacelerado. Ele viu com clareza as garras e lanças das criaturas mirando suas partes vitais.
Reparando melhor, aqueles eram movimentos rudes e desengonçados, fáceis de evitar. Ele só precisava ir um pouco pra esquerda para fugir do primeiro. Depois para a direita, para ludibriar as lanças. Dar um pulinho para evitar a flecha. Em seguida, rolar no chão para escapar das espadas.
Pronto.
Quando se deu conta, estava fora do círculo de goblins, a uma distância segura. Os aventureiros ao lado não disfarçaram o ar de surpresa. Mas não perderam mais do que meio segundo com isso, antes de voltar à ação e eliminar os pequeninos verdes.
O combate não durou muito. Em questão de minutos, dezenas de goblins estavam estirados no chão, sem vida. O restante fugiu.
O mago então se aproximou de Peppe, enquanto o resto do grupo ia de cadáver em cadáver para pilhar objetos de valor.
— Você tem habilidade.
Ele agradeceu com a cabeça, satisfeito consigo mesmo por ter evitado a morte.
Na verdade, também foi uma boa surpresa para Peppe. Pelo que parecia, não foi só a estética de seu corpo que mudou. Aquele sono rejuvenescedor não só o curou por completo, como também lhe deu as habilidades físicas de um atleta olímpico de alto rendimento.
Quanto a quais eram os novos limites, ainda não sabia.
— Caso se junte aos aventureiros, considere entrar em meu grupo. Me chamo Rudeus, aventureiro de rank B. Se der o nome "Flor-Vermelha" na guilda, conseguirá me encontrar.
Com os cumprimentos finais, eles se despediram e Peppe voltou ao seu caminho rumo à filial da guilda em Amoris.
Lembrando-se vagamente da geografia local, percebeu que havia uma cidade fronteiriça de porte médio na região, chamada Vila Verde. Ela já estava no lado Amoris da fronteira, de modo que não teria problemas.
"Deve ter alguma filial lá", pensou.
E assim se foi mais um dia e meio.
***
A primeira coisa que notou em Vila Verde foi a estética simples da pequena cidade. Ela era toda de madeira e pedra.
As muralhas eram feitas de estacas esticadas sobre uma base de pedregulhos, com dois portões relativamente espaçosos, para a passagem de comerciantes e transeuntes.
Peppe foi parado pelos guardas da alfandega local, que o liberaram após um grande suborno de uma moeda de ouro das que tinha. Um absurdo, até mesmo para um ex-príncipe.
Como estava começando o dia e ele não portava armas, apenas o liberaram para entrar. Ninguém liga como um mendigo conseguiu uma moeda de ouro. E ele não parecia ter mais nada que valesse o tempo e o risco de uma punição do sargento da guarda.
Ao adentrar pelo muro, viu que as casas e lojas seguiam a mesma arquitetura dos muros: pedra e madeira. A diferença era que muitas delas tinham palha nos telhados.
Pequenas placas fixadas nas portas diferenciavam quais eram estabelecimentos comerciais das casas dos residentes. Olhando para elas, notou uma que tinha como símbolo duas espadas e um capacete, com os dizeres: "Loja de Armas e Armaduras".
Vendo como estava seu estado, bem como considerando seu objetivo de entrar para a guilda, resolveu que deixaria mais algumas moedas de ouro ali.
"Mas que arma escolher", esse pensamento começou a o afligir. Embora praticasse artes marciais por esporte na Terra, ele não sabia nada de como balançar uma espada ou de como atirar com um arco.
— Bem-vindo! — O comerciante o atendia, virando as costas para recebê-lo. — Em que posso... Ei, o que está fazendo aqui? Não damos esmolas. Xô! Xô! Vá pedir em outro lugar.
Desperto dos pensamentos por um atendente infeliz, Peppe ficou resignado.
— Mas eu posso pagar, disgraça — disse, já de frente para a porta da rua, com o atendente o segurando pelo braço.
— Tenho certeza que pode. Agora vá embora!
Estressado pelo mal atendimento, seu próximo passo seria fazer uma queixa no Procon. Ocorre que, até onde ele sabia, não existiam promotores ali, nem delegados de polícia ou Poder Judiciário.
Não poderia fazer nada.
Extremamente puto, decidiu procurar outra loja, só para ser enxotado de novo. E mais uma vez assim.
Antes que pudesse sacar suas moedas, já o expulsavam do lugar.
Ele até poderia voltar já com o ouro em mãos, mas o orgulho de homem não o permitia bater duas vezes na porta de onde fora expulso.
Caminhando até o que parecia ser o centro da cidade, viu alguns feirantes organizando barraquinhas.
Estava com fome, só que não poderia dar uma moeda de ouro toda vez que quisesse comer, ou sua fortuna acabaria em algumas dezenas de refeições. E, até onde se lembrava, com 5 moedas dessas se podia comprar uma casa.
Observando o movimento aumentar, ele notou um jovem muito alto e muito forte, que parecia ter idade semelhante à sua, andando desengonçadamente com uma pilha de metal nas mãos.
Esse jovem jogou a pilha no chão, próximo a um tapete estirado em um dos cantos da praça. Em seguida começou a organizar as peças.
Três espadas de tamanhos diversos. Um conjunto de peitoral, braceletes e botas feitos com ferro e couro. Vários colares e braceletes de metal. Um capacete de ferro. Um capuz de tecido. Alguns retalhos e peças de manutenção.
Pareciam bem leves de se usar, comparando-se com os trajes de aço puro que viu de alguns guerreiros enquanto andava pelas ruas mais cedo.
— Ei, parceirão — chamou Peppe, aproximando-se. — Por quanto tá vendendo isso daí?
— Bom, meu senhor. Ainda sou pouco experiente e meu mestre não deixa vender na loja. Então é bem barato. Tenho certeza que até mesmo o senhor consegue comparar alguma peça — respondeu com presteza.
A humildade do aprendiz de ferreiro o surpreendeu. Foi o primeiro, e o único, que não o expulsou de cara, apresentando-lhe opções de compra.
— Vou levar o conjunto do peitoral com a braçadeira e as botas. Quero essa espada também. Pode arrumar uma bainha para ela?
— M-meu senhor, creio que talvez esse conjunto fique um pouco aquém, mesmo com o desconto que vou te oferecer. Mas talvez o bracelete sozinho seja possível e...
Ele tirou uma moeda e entregou ao rapaz, interrompendo a fala desengonçada e a enrolação.
— Isso dá?
O aprendiz quase caiu no chão com a situação.
— N-não! Não pode. Isso é muito. Muito dinheiro.
— Não dá? Quanto então? Três moedas?
— Não! Sim! Quer dizer... Ehr...
Peppe se preparava para tirar mais moedas do bolso, o que deixou o rapaz mais desnorteado ainda.
— Meia prata! É o que vale esse conjunto. Não posso aceitar mais do que isso. Quer dizer... Não tenho troco pra mais do que isso.
Ele sorriu.
— Então nós temos um problema, pangaré. Pois eu não tenho nada além de moedas de ouro.
A expressão de "queeee" ficou forte na face do aprendiz de ferreiro. Ele não sabia o que fazer diante de uma situação daquela. Não queria perder a venda, mas também não queria enganar um morador de rua.
— Não estou sendo enganado. Você está me dizendo que isso vale meia prata. Bom, eu acho que vale um ouro. Aceita logo e me passa essa caceta. Pelo amor de Deus! Olha, tá vendo? As pessoas tão encarando a gente…
— D-desculpa!
— Desculpa é o cacete! Pega logo essa porra e me passa aí o conjunto, caralho.
Foi um tanto desconcertante, porém a troca foi feita. Sentindo-se mal, o aprendiz de ferreiro ofereceu todas as peças em sua posse ao rapaz, só para vê-lo as negando ferrenhamente.
— Me arranja só uma bainha pra colocar essa espada — disse. — Aliás, como que você pode vender uma espada sem bainha?
— E-eu não tinha parado pra pensar nisso, meu senhor. Até agora ninguém nunca comprou minhas espadas.
— E você fala isso pra alguém que acabou de comprar seus produtos? Que maravilha... — disse, pensando: "Puta merda! Eu não entendo nada de espadas. Mas esse moleque é uma porra como vendedor de espadas. Tadinho".
Ao arranjar um canto para se trocar, Peppe despediu-se do vendedor.
— Desculpa aí qualquer coisa — disse para o rapaz, percebendo que talvez tivesse passado do limite com ele. — Seu produto é ótimo. Se continuar vendendo por aqui, voltarei no futuro.
O vendedor sorriu, acenando e agradecendo novamente.
O próximo passo foi encontrar uma loja de roupas, para usar por debaixo da armadura e no dia a dia, de modo geral. Saiu de lá com três peças de blusas de lã e duas calças de linho, mais um par de meias secas. Foi obrigado a pegar as peças mais caras do lugar, para que o vendedor tivesse como lhe dar o troco.
O que lhe foi muito útil por sinal. Àquela altura, já estavam rolando boatos de um ser místico, vestido de trapos e com mal cheiro, que distribuía moedas de ouro para os feirantes que tinham a humildade de o receber: O Mendigo Dourado.
E assim, com os bolsos cheios de peças de prata e cobre, e uma alcunha nada bonita, nosso mendigo dourado — agora menos mendigo, e menos dourado — foi numa casa de banhos, fazer a barba e se limpar de modo minimamente decente, para não mais o confundirem com um morador de rua.
Depois arranjou uma hospedagem simples, porém limpa, onde pudesse ficar por alguns dias. Meio dia se passou com essas atividades, quando enfim teve tempo de ir até a filial da guilda fazer o cadastro como aventureiro.
Estava ansioso por aquilo.