Contra o Mundo Brasileira

Autor(a): Petter Royal


Volume I

Capítulo 3: De ex-modelo a ex-príncipe (parte III)

Na mesma noite em que Peppe adormeceu, um incidente misterioso aconteceu. O corpo estava quente, ardendo em febre. Para piorar, estava encharcado e com feridas graves no corpo, além da hemorragia da flechada. 

Era questão de horas até que necroses e infecções começassem a aparecer por seu corpo doente e anêmico. Choque hipovolêmico, infecções generalizadas, hipoglicemia, disfunção renal e paradas respiratórias disputavam para causas prováveis de sua morte. 

A situação não era nada boa. 

Em certo momento, o sangue que escorria da coxa entrou em contato com um pequeno objeto que estava ainda preso sob as vestes. E algo mágico aconteceu.

A pequena caixinha preta rasgou a roupa de Peppe, indo direto em linha reta até o teto da caverna. Então desceu devagar até o rosto febril do rapaz adormecido e circundou-o três vezes. 

O sangue que estava espalhado pelo chão frio ignorou a lei da gravidade, enquanto recolhia-se ao entorno da caixinha. Quando toda a poça foi sugada, o objeto de cor obsidiana começou a sugar o suor e a água que molhavam o rapaz. 

Ao deixá-lo seco, a caixinha foi até a porta da caverna e fez o mesmo com a água da chuva espalhada pelos arredores. Tudo num raio de duzentos metros ficou seco. As gotas do céu daquela área eram atraídas para o objeto. 

Se houvesse alguém ali, o paradeiro do príncipe adormecido seria certamente descoberto. 

Como que para acelerar a coleta, o objeto subiu. Foi rápido e muito alto, muito alto mesmo. Ao atingir as nuvens, ele girou. Ao girar, a nuvem inteira foi sugada para dentro. 

Era de tirar o fôlego. 

Todo o cinza dos céus estava se recolhendo naquele pequeno objeto. Não fosse noite, seria a visão mais bela de todas. Mas, não fosse noite, talvez os conspiradores sentir-se-iam afoitos e receosos, iniciando investigações mais ferrenhas, que prejudicariam o fugitivo. 

Mas, se se olhasse bem, perceberia que um arbusto se mexeu. Um ser escondido percebeu o fenômeno, levantando a cabeça sobre o pequeno esconderijo em direção ao sudoeste.

Em questão de minutos, a lua surgiu forte. A tempestade cessou. 

A caixinha obsidiana enfim desceu, retornando veloz à caverna escondida e parando em frente à Peppe, ainda em coma profundo. 

Subitamente, ela se abriu. E o que saiu de lá foram três bolinhas azuis-ciano, do mesmo formato da estampa frontal. 

Elas circundaram o rapaz e pararam em frente ao rosto, mais uma vez. Entretanto agora decidiram entrar. Dirigiram-se até as narinas e a boca, cada uma invadindo por um destes orifícios faciais. 

No instante seguinte, um vendaval azul de partículas circundou o corpo do ex-príncipe, fazendo-o flutuar. E mais partículas surgiram, desta vez negras, para se misturarem com as azuis numa dança magnífica. 

A caverna se iluminou. 

O baile parou depois de um tempo. E cada partícula foi se encaixando em seu devido lugar ao longo da superfície epidérmica do rapaz. A luz então diminuiu, até cessar. 

Ele então voltou ao solo, carregado gentilmente pela gravidade. Era como se fosse um filho pequeno sendo colocado de volta na cama pela mãe. 

Foi naquele momento que a figura misteriosa adentrou o local.  

***

— Puta que o pariu! — Acordou, de súpeto. 

Peppe estava um tanto zonzo ainda. Dormiu por muito tempo e, de modo inconsciente, sabia disso. Teve um sonho bizarro, do qual os detalhes não mais se lembrara. Do pouco que lhe vinha à mente, parecia que estava em um mundo mágico, fugindo de cavaleiros que o queriam eliminar por uma questão sucessória complexa. 

Até tinha caído do cavalo. 

Só começou a se dar conta da realidade quando notou o ser de sobretudo e orelhas pontudas de pé na entrada do esconderijo. 

— O quê?!

Ele se assustou, mas manteve-se sentado, olhando. 

Era uma mulher de pele clara e cabelos loiros, na altura do ombro. Apesar do sobretudo de couro que a cobria, era possível de ver que era detentora de belas curvas, bem como de uma elevada beleza. Na verdade, ele nunca vira nada tão belo antes. 

O rosto fino e os lábios avermelhados da moça eram capazes de enfeitiçar até o mais simplório dos homens. E Peppe no fundo era muito simplório. 

A arma em formato de arco e as flechas reluzentes que tinha, entretanto, acordaram-no do encanto. Ela estava mirando-o na cabeça, pronta para disparar ao menor sinal de movimento que fizesse.

— Quem és tu e de onde vieste? Como parastes aqui? 

A onda de perguntas carregadas de sotaque deu a Peppe a lembrança de estar falando com alguém de outra cultura próxima, como um brasileiro escutando um português. 

— Bom dia, lady formosa. Seu pai é padeiro? — Sorriu.

Em resposta, só escutou um chiado de metal. Era a flecha, que voou rápido, trespassando-o de raspão pela bochecha esquerda. 

A tez dela estava séria. Aquele era um aviso de que ela não estava para brincadeiras. Realmente o mataria sem hesitar. 

Recuperando um pouco da compostura, o rapaz se ajeitou de leve, tentando responder às perguntas da elfa. Ele não sabia se contava a versão da Terra ou a versão daquele mundo. 

Raciocinou um pouco, chegando à conclusão que aquela arqueira dificilmente fosse uma de suas perseguidoras. Se ela não lhe queria o mal, não havia porquê para esconder-lhe essas informações. 

Ele ajeitou o cabelo. Depois abriu a boca para falar. 

—  Sou uma pessoa que vive do corpo... sabe? — Ela ergueu novamente a tez. — Tive que fazer de tudo para conseguir viver bem e até conseguir um certo sucesso na vida. 

— Não estou a entender-te — Ela interrompeu —, sejas mais claro.  

Suspirou. 

— Bom, eu trabalhava fazendo "posições", se é que me entende. E fiz uma boa fama com isso. No início praticava todo dia, e em vários locais diferentes, para me testar. Compreende?

Ela fez que sim, desta vez sem esconder a cara de perplexidade.

Até o momento, nada era mentira. Como um modelo super badalado da Terra, ele efetivamente vivia do corpo e trabalhava fazendo várias poses e posições diferentes e em diferentes lugares para as câmeras. Só esqueceu-se de contar a ela os detalhes, embora duvidasse que uma elfa arqueira de outro mundo pudesse compreender o conceito de modelo. 

Ela mandou-o parar a explicação, dizendo com um gesto que "compreendia" aquilo tudo, mas que a poupasse das minúcias. 

— Devido à minha profissão, fui obrigado a deixar a cidade. Só que acabei sendo pego pela chuva e estava muito doente e cansado, aí vim parar aqui. — Desta vez ele falava da trajetória neste mundo. 

Se ela havia ou não acreditado naquilo, não demonstrou. 

A explicação era convincente, ao menos. Pois ele de fato era detentor de uma aparência singular, com traços extremamente atraentes. E ela olhou para suas mãos enquanto ele dormia; aquelas não eram mãos de quem trabalhasse duro para sobreviver. 

Juntando tudo isso, podia ser que de fato ele estivesse sendo sincero. Ao menos foi com base nisso que a elfa resolveu abaixar o arco. 

— Satisfeita?

Ela fez que sim, constrangida.

— Desculpa-me, não queria que se expusesse tanto, mas precisava saber quem eras e...

— O que há pra pedir desculpas? — Ele interrompeu. — Não tenho motivo nenhum pra sentir vergonha da minha profissão, nem do que fiz na vida. Sou muito bem sucedido. Bom... eu era. 

Ele riu.

Se Peppe fosse bom em entender duplo sentido, talvez fosse ele a ficar constrangido com aquela situação. 

— Sim, caro senhor. Mas agradeceria se pudesse calçar umas vestes. Deves estar com frio agora, independente da "profissão". 

Ao prestar atenção sobre o próprio estado, e após sentir um leve gelar nas partes sensíveis, ele notou que estava completamente pelado. Embora fosse de fato uma situação desconfortável ficar exposto daquela maneira na frente de uma mulher séria munida com um objeto perfuro-cortante, aquele não parecia ser o problema de Peppe.

Notou algo mais importante e que merecia a atenção.  

— Caraca, eu tô no shape! Se liga… 

O abdômen tanquinho e os bíceps definidos eram de forma literal a maior conquista que tivera até aquele momento. E tudo sem fazer nada, apenas dormindo.  Ele ficou um tempo se autoanalisando, sem esconder a felicidade no olhar.

A elfa ficou sem palavras para aquilo, levantando novamente o arco. 

— V-você... Você ficou excitado com o próprio corpo!? Seu prostituto imundo!

Ele parou para encará-la ao ouvir aquilo. 

— Prostituto, não! Sou ex-modelo e ex-príncipe, sua piranha! Olha lá como fala... Você é muito bonita pra falar coisas tão feias assim. 

Uma outra flecha foi disparada, desta vez em direção às partes do rapaz. 

Sentiu de leve o vento batendo ali. Fosse ele um milésimo mais lento, ou um centímetro mais dotado, uma tragédia horrível aconteceria naquele momento. 

"Deus sabe o que faz", pensou, agradecendo aos céus enquanto encarava novamente aquela região específica, antes de voltar-se novamente para a elfa. 

— Espera. Ex-príncipe? — Ela perguntou. 

— Hum? 

 



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