Contra o Mundo Brasileira

Autor(a): Petter Royal


Volume I

Capítulo 18: Condessa de Rosa Vermelha

A primeira luz da manhã encontrou Peppe e Sara encolhidos no fundo bote salva-vidas. 

Fez frio a noite inteira. O que deixou o rapaz puto e a moça tremendo. 

Eles balançavam para lá e para cá, com uma suavidade enganadora contra as rochas de um pequeno ancoradouro natural. 

Floquinho se encolheu para dentro da alma de Peppe, desaparecendo. Parecia ser uma habilidade de um espírito ancestral ter tanto uma forma física quanto uma etérea.

— Eu preciso dormir. Não ousem me acordar sem motivo — ameaçou a criaturinha. 

Eles não entendiam a razão, mas desde a noite anterior ao motim, Gal Floquinho parecia bem cansado. Embora de ressaca, seu humor estava péssimo também. Peppe e Sara não faziam ideia de quanto tempo um ser demoníaco precisava para descansar, contudo não pagariam para ver. 

A brisa passou, tocando-lhes a face. 

O ar não carregava apenas o cheiro úmido do rio, mas um fundo inesperado de perfume doce e terroso — o aroma característico de rosas, mesmo ali, à beira da água. 

O som dos gritos e do metal contra metal ainda ecoava na mente de Peppe, aos poucos sendo substituído pelo cacarejar de galinhas e o vozear distante de uma vila que despertava.

— Parece um lugar tranquilo — sussurrou Sara, pálida, segurando a coxa na parte onde foi ferida.

A dor do dardo ainda a afligia.

Ela não conseguiu dormir, tamanha a aflição. O sangue parou de escorrer com o tempo. Ajudou o fato de terem estancado o ferimento logo após descerem ao bote.

— Todo lugar parece tranquilo depois de uma foda bruta, Sara — resmungou Peppe, remando com vigor residual em direção à praia de pedras. 

Seu corpo doía em lugares que ele nem sabia que existiam, e o pijama de linho que ele tanto gostava estava agora encharcado, rasgado e encardido. Ele era a definição viva de "fim de festa".

"Eu deveria ter colocado a porra da armadura, igual fez Sara", suspirou internamente. "Se bem que quem ficou toda fudida foi ela, né..."

A urgência os movia. Sara mancava visivelmente, nem conseguia ficar de pé. O medo de um veneno qualquer correr por suas veias era um fantasma pairando para assombrá-los.

Eles precisavam de ajuda, e rápido.

Com isso em mente, desatracaram no cais da vila. 

Peppe carregou-a nas costas, ignorando o protesto dos próprios músculos. Depois seguiu o cheiro de fumaça de lareira e o caminho batido até o coração da vila pesqueira.

Era mediana em tamanho, porém bem movimentada. 

Pescadores descarregavam o peixe da madrugada, mercadores montavam suas barracas e o ar úmido se misturava com o cheiro de pão fresco e flores. 

Mesmo sendo um assentamento humilde, toques do Império das Rosas estavam por toda parte: pequenos canteiros de rosas vermelhas flanqueavam a entrada das casas, das mais humildes até as mais ricas. 

Grinaldas de flores secas penduradas em portais balançavam na brisa marinha. A dupla, no entanto, era um espetáculo à parte: um homem alto e absurdamente bonito, mesmo de rosto sujo e cabelos desgrenhados, vestindo um pijama ridículo, carregando uma moça ferida.

— Médico! Onde diabos eu encontro um caralho de um médico?! — perguntou Peppe, sua voz áspera, a um vendedor de redes que os olhava com curiosidade. 

Foi o primeiro homem que os viu sem desviar o caminho.

O homem apontou para uma casinha simples, com uma placa de madeira onde se lia "Ervas e Curativos". Um robusto roseiral vermelho, já florindo apesar da estação, crescia vigoroso ao lado da porta, suas pétalas aveludadas contrastando com a simplicidade da construção.

A consulta foi rápida. O médico, um homem idoso de mãos calosas, examinou o ferimento de Sara com cuidado.

— A ponta do dardo perfurou a lateral do músculo. Sangrou bastante, mas não atingiu nada vital — disse ele, limpando a ferida com um líquido que fez a garota cerrar os dentes. 

— E o veneno? — a voz de Peppe saiu mais fraca do que ele gostaria.

O médico cheirou o pedaço de metal que extraiu, observou a cor da pele ao redor do ferimento e balançou a cabeça.

— Nenhum. Não há sinal de toxina. A dor e a fraqueza são da perfuração em si e também uma decorrência da perda de sangue. Apenas tome esse remédio para aliviar um pouco a dor e limpe a ferida algumas vezes ao dia.

Um suspiro de alívio escapou de Sara. 

Peppe franziu a testa.

"Que assassina estranha...", pensou ele, observando o dardo inocente. "Será que ela só queria incapacitar? Ou é tão confiante que não precisa de veneno?"

A lembrança dos olhos vidrados de prazer daquela mulher o fez estremecer. Talvez a motivação dela fosse tão distorcida que veneno fosse... dispensável.

"Vai saber", concluiu.

Pagou o médico com algumas moedas que levava na pequena bolsinha amarrada à cintura — sua única fortuna agora. O peso dela estava visivelmente menor.

Por sorte, sempre a levava no corpo, até dormia com ela. Tanto a bolsinha, quanto seu broche e identificações reais como príncipe de Tullis. Ele imaginou que essa fosse como uma espécie de carteira de identidade naquele mundo. Não se podia viver sem essas coisas na Terra. 

O próximo passo foi o mercado. Ter perdido praticamente todas as coisas que comprou antes foi um baque grande. 

Ele estava começando a ficar preocupado com o futuro. 

Claro, o dinheiro que tinha ainda seria suficiente para chegar até Rochedo e viver alguns meses bem, talvez. Ainda assim, tinham que economizar. 

Dessa forma, com o dinheiro que restava, comprou duas mudas de roupas simples de linho — um conjunto marrom para ele, um vestido azul claro para Sara —, uma capa de lã para se protegerem do frio noturno e um saco com provisões básicas: pão, queijo seco e um pouco de carne curada. 

Por sorte, levou a espada consigo. Não que fosse de muita valia. Afinal, ele não sabia manejá-la e ela ficou um pouco lascada após a luta contra a assassina. 

Mesmo assim, ainda era sua única proteção tangível agora que a armadura estava no fundo daquele navio a vapor, junto com qualquer outra tralha que possuíam. A espada e a capoeira, embora esta última não seja muito útil quando o oponente usa armas cortantes ou ataques a distância com magia.

Àquela altura Sara já estava no chão, caminhando com o apoio dos braços de Peppe. Isso os fez atrasar um pouco a caminhada, principalmente porque a garota insistia em andar com as prórpias pernas. Aceitar o apoio já foi um milagre, e isso apenas porque seu mestre mandou.

Enquanto negociava com um vendedor qualquer, os olhares de ambos foram atraídos por uma cerca viva de rosas vermelhas que demarcava a praça do mercado, um lembrete sutil de em qual nação eles realmente estavam.

O cheiro lá era mesmo muito bom. 

Não que Tullis ou Amoris fedessem. Embora se comparado ao Império das Rosas, eram praticamente um esgoto ambulante. 

— Parece até que vamos recitar alguma coisa brega em alguma porra de sarau universitário — ironizou Peppe, vestindo a roupa de linho rústica. O tecido coçava sua pele sensível, e o narcisista dentro dele chorou um pouco.

Na Terra, ele só usava roupas de marca, tecido de qualidade. Era um modelo rico, afinal. 

Foi ao perguntar sobre a rota mais rápida para Rochedo que a sorte, finalmente, sorriu para eles. 

— Itens mágicos! Tenho itens mágicos de Rochedo! Vindos direto da academia dos magos. Venham ver!  

Um dos mercadores, um homem falante e ganancioso que por acaso tinha voltado de Rochedo recentemente, não só confirmou que os testes de admissão da Academia seriam em algumas semanas, talvez dias, como apontou para as redondezas da vila. 

Tudo isso por três moedas de prata, claro. 

— Se querem chegar a tempo, esqueçam a estrada. A viagem por terra é cheia de curvas e ladrões. Também ouvi que teve uma espécie de enchente recente. Muitos corpos foram encontrados boiando a norte daqui. Isso foi hoje cedo. Provavelmente o Império vai suspender a rota fluvial do norte por alguns dias. 

"Enchente, em... Que filhos da puta", pensou Peppe, notando como a política também manipulava as notícias naquele mundo. 

Em certos sentidos, eram muito parecidos com a Terra. 

— Bom, ouvi dizer que a Condessa Rosetta, lider de Rosa Vermelha, está justamente partindo para Rochedo hoje. Ela tem um heliporto particular ali na colina. Usa aqueles engenhos voadores a vapor, sabe? Coisa de nobre muito, muito rico. Acho que chamam de dirimóvel, dirigimotor... dirigível, ou algo assim.

"A propriedade dela é aquela, toda cercada por aqueles muros brancos. Vai lá, jovem. Quem sabe ela não se interessa por vocês e não os aceita em sua bugiganga voadora.

"Coincidências assim não acontecem todo dia, afinal". 

Peppe sentiu o olhar de desdém do vendedor. Parecia que queria se livrar deles rápido agora que obteve as moedas e só falou qualquer coisa para afastá-los dali.

— Soube que ela toma amantes novinhos — completou. 

 Desta vez foi Sara quem olhou feio para o comerciante.

Heliporto? Engenhos voadores? Ele devia estar se referindo aos balões. 

Bom, aquela era a sua chance. 

Segurando Sara pelo braço, ele seguiu as indicações até uma propriedade murada no topo de uma colina. O mercador não exagerou: diante do portão de ferro trabalhado, estendia-se um vasto jardim onde centenas, talhares milhares de rosas vermelhas floresciam em perfeita simetria, criando um tapete vibrante e aromático que parecia pulsar sob o sol da manhã. 

Do lado de fora já conseguiam ver uma estrutura metálica grotesca e barulhenta, com hélices que giravam lentamente e partes que pareciam ser feitas de tecido — um dirigível pessoal, ornamentado e pintado de rosa claro, bem impressionante.

Os guardas na entrada os barraram.

— Afastem-se. A Senhora Condessa não recebe plebeus e nem mendigos.

Peppe achou aquilo curioso. Ele não estava acostumado a ser barrado daquela forma. Nas festas e eventos que frequentava enquanto modelo, ele normalmente entrava de penetra e ainda furava a fila, e nada acontecia. 

Naquele mundo ele era um príncipe, ou um ex-príncipe. Ainda assim, não era comum ser barrado. Talvez fossem sua aparência e roupas anteriores. 

Agora, apesar do rosto angelical e do corpo trabalhado, ele vestia roupas de plebeu. Estava sujo também, com o cabelo longo e a barba por fazer. Sara não estava muito melhor, e mancava que nem uma velha deficiente.

A saída para estes casos era simples: Peppe começaria uma briga e exigiria a presença da condessa. Era um plano improvisado, impulsivo e com altas chances de falhar, bem ao estilo Peppe.

Ele, inclusive, estava armando o primeiro soco, quando uma figura apareceu no jardim interno, caminhando por uma alameda ladeada por seus preciosos rosais. 

Uma mulher de meia-idade, vestida com elegância discreta mas inegavelmente cara, observava a cena. Seus olhos passaram pelo casal de jovens. 

— Quem são estes visitantes, Arnald? — perguntou a condessa ao guarda chefe. 

Ele fez que não sabia com o rosto. A madame condessa então passou a encará-los, como que fazendo uma avaliação.

E então, algo mudou em sua expressão. Foi um leve estreitar dos lhos, um reconhecimento.

Peppe, num ato de desespero, lembrou-se do único símbolo de sua identidade real que ainda possuía. Abotoou a capa nova e, com cuidado, tirou de dentro da camisa um pequeno broche de prata, cravejado com uma safira azul-celeste — o emblema da realeza de Tullis.

Ele não disse uma palavra. Apenas segurou o broche para que a condessa visse.

Os olhos da mulher se arregalaram por um instante. Ela se aproximou do portão, o perfume intenso das rosas envolvendo-a como uma nuvem.

— Esse broche... — ela sussurrou, sua voz suave como seda. — Onde você o conseguiu, jovem?

— Como assim? — questionou. — Isso aqui é minha identidade, caralho.

De imediato, os guardas o olharam com hostilidade. Contudo, antes que pudessem sacar suas espadas foram contidos pela Condessa, que sinalizou com a mão.

— B-bom, desculpa pelo palavreado. Estamos morrendo de fome e cansados — disse. — Isso aqui foi um presente dos meus pais, um símbolo da família Pistorius, de Tullis — respondeu novamente, escolhendo as palavras com uma cautela incomum para ele. 

A condessa fitou-o por um longo momento, como se estivesse decifrando um código em seu rosto. Seu olhar pareceu perder-se por um instante nas pétalas vermelhas mais próximas, como se buscasse uma resposta ali.

— Enfim — continuou o rapaz. — "Olá, tia Evelyn. A quanto tempo". Acho que era assim que eu deveria ter começado, perdão.

Ao ser chamada pelo nome de forma tão espontanea e natural, ela se lembrou.

— Petrus! — Ela correu para ele, como que para encará-lo de perto. 

Notando os traços, e olhando ainda mais perto para o broche, ela teve algum sentimento. 

— É você mesmo, minhas desculpas! — Adiantou-se ainda mais perto. — A rainha Elara..., sua mãe!, era uma amiga muito querida, em tempos mais pacíficos — disse, finalmente, sua voz carregada de uma nostalgia súbita. — Os tempos mudaram, mas a lealdade não precisa mudar com eles. 

Ela voltou-se para os guardas. 

— Deixem-nos entrar. E avise ao piloto que iremos atrasar a partida. Vou conversar com o jovem príncipe primeiro. 

Os guardas engoliram seco. 

"Príncipe" era uma palavra muito forte. Jamais pensariam que alguém com um título tão imponente usasse roupas de plebeu e não tivesse ao menos uma caravana e centenas de guarda-costas consigo. 

A sensação de alívio foi instantânea. Peppe ficou surpreso. A carteirada deu tão certo que ele duvidou se ainda não estaria na Terra.

Ele olhou para Sara, que parecia ainda mais surpresa quanto ele. Havia, é claro, um milhão de perguntas. O que sabia sobre sua mãe? Que "tempos mudados" eram esses? Que relações haviam entre a condessa e sua família?

Mas por ora, nenhuma delas importava. 

Eles tinham um passeio de helicóptero a vapor para pegar. Primeiro precisariam convencer a condessa a ajudá-los. Depois ir até Rochedo e ainda se estabelecerem lá. E após tudo isso ainda teriam que ir até a Academia de Magia e providenciar a inscrição. 

Eram muitas coisas a fazer, e pouco tempo. Peppe estava animado; Sara, com dor e medo. 

Apoie a Novel Mania

Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.

Novas traduções

Novels originais

Experiência sem anúncios

Doar agora