Volume 1
Capítulo 9 - Nas entranhas da besta
Meu braço esquerdo foi levemente cortado; minha maldição ardia e pulsava. Expandi minha aura, tentando buscar o calor reconfortante. No entanto, meu ânimo estava baixo. Cocei meu ombro e continuei seguindo em frente.
Erwan se esgueirava pelos estreitos corredores de pedra com destreza invejável, enquanto algumas pedras afiadas arranhavam minha perna.
— Ei... Erwan? Por que você continua com esses humanos? — perguntei, ignorando a queimação em minha mão.
— Por que você falhou em proteger seu grupo? — Ele mudou de assunto.
— O que quer dizer? Venci o Pesadelo junto a eles — forcei um sorriso por instinto.
— Sim, mas entrou em pânico pouco tempo depois.
— Isso...
— Não busque desculpas. Eu já vi isso acontecer com bons soldados — Erwan falou com uma voz profunda. — A maldição está te consumindo, certo?
— E que...
— Você vai morrer e matar seus amigos se isso acontecer novamente, ou pior...
— Virar um genérico... — Um arrepio percorreu minha espinha.
— O motivo de estar aqui é porque eles são meu grupo, me acolheram e foram gentis.
— Como pode ter tanta simpatia por simples humanos... Eles nos humilharam por séculos — Tentei desesperadamente alcançar a cicatriz em minhas costelas.
— Eles não estavam vivos nessa época.
— Vivem menos que insetos...
— Por isso todos os meus momentos com eles são preciosos e únicos — Erwan me interrompeu, e sua voz ecoou pelos corredores.
Meu ódio ao ver minha terra queimada se juntou às lembranças da guerra. Contudo, um humano que eu já chamei de amigo veio à minha mente. Resolvi refletir em silêncio.
Finalmente, me libertei dessa prisão de pedra. Respirei aliviado, olhei ao redor e agradeci por os corredores terem desaparecido. Uma silhueta se delineava pelos tons de cinza da minha visão noturna.
— Noah? — Erwan falou com uma voz pesada.
— Garoto? Eu... entrou um cisco no meu olho — O velho se apressou.
— Velhote... o jantar está pronto, eu vou sair em patrulha.
— Vai tentar achar o que resta do corpo do Kruger? Se o que falou é verdade, não restou nada... — Noah limpou seus olhos vermelhos.
— Preciso ao menos tentar. Eles não devoram metais, talvez tenha... mais um frasco — Erwan disse, dirigindo-se à saída.
— Vou junto — O velho segurou Erwan pelo braço.
— Não tenho mais sonho para nos camuflar. Terei que fazer isso à moda antiga.
— Se eu fosse um pouco mais jovem...
— Posso te acompanhar? Vou te mostrar meu valor! — Cocei a cicatriz em minha costela.
— Sei que isso é você tentando ser útil, porém só iria me atrasar.
— Certo, eu irei junto — A voz de Bale arrepiou minha espinha.
— Desde quando... — Noah se calou.
— Só não seja inútil — Erwan abriu a passagem e saltou para a floresta.
— Mas... — as palavras me escaparam.
— Avise o Kron que volto logo.
— Mas... mas...
— Garoto? — Noah perguntou.
— Que seja, vamos voltar. Quero comer alguma coisa.
— Claro, a sopa de legumes de Corina é magnífica! — ele disse com um sorriso no rosto.
(...)
Pequenos ferimentos em meu braço e pernas começaram a sangrar novamente assim que retornei a esse maldito corredor, e novos surgiram na metade do caminho. O velho Noah me guiava, segurando um lampião e cantarolando uma melodia nem alegre, nem triste, que ecoava pelas paredes apertadas.
Meu braço esquerdo ardia pela maldição; qualquer toque o fazia doer. Mordi a língua para não gritar. Jamais demonstrei fraqueza perto de humanos; eles podem sentir esses momentos.
— Kenshu, né? — o velhote falou, parando com a canção.
— Sim... — tentei não demonstrar minha dor.
— Qual seu legume preferido?
— Não deveria se concentrar em seguir o caminho? Para alguém da sua idade, pode ser bem desgastante — forcei um sorriso falso.
— Mapeio esses túneis desde pequeno — O velho alisou as paredes — De fato, estou cansado disso, mas ao menos não tenho cortado meus braços em cada pedra.
— Precisava disso? — Senti uma ferida abrir em meu braço.
— Talvez, porém, para lidar com a velha arrogância élfica, sempre preciso responder à altura — Noah falou com voz de superioridade.
— Isso não tem nada a ver com meu lado élfico.
— Então de onde vem? Sua maldição te fez perder a educação?
— É só que… — me calei e segui em frente.
(…)
Luzes fracas tremeluzentes anunciaram o final dessa caminhada maldita. O pequeno acampamento se ergueu próximo ao lago subterrâneo. Cada passo abria um pouco das pequenas feridas. Noah me olhou de cima a baixo e retirou um pequeno recipiente de seu casaco.
— Passe um pouco nas feridas, não quero você desmaiando — Ele apagou o lampião e rapidamente se dirigiu para a sopa.
— Espero que tenha outra saída desse lugar infernal.
— Kenshu! Ajudei Vovó Corina a cozinhar a sopa! E também peguei cogumelos! — Kron disse, com o rosto sujo de um líquido roxo.
— É sempre bom ter uma criança tão energética — Corina falou, provando a sopa.
— Que tipo de cogumelo? Isso no seu rosto é... — freiei minhas perguntas.
— Do tipo comestível — Noah falou, pegando uma tigela de sopa.
— Onde estão Erwan e seu amigo de cabelo branco?
— Amigo? — Perguntei curioso.
— Eles saíram para olhar os arredores — Noah falou com expressão sombria.
— Quando o tio Kruger volta? — A criança élfica perguntou.
— Meu pequeno, já provou minha famosa sopa de cogumelos?
— Vamos comer! — Uma das crianças humanas gritou.
— Certo…
Todos se sentaram ao redor da fogueira e se serviram de uma autêntica sopa de cogumelos. O gosto era meio roxo, mas poderia ter sido pior. Entre colheres de madeira raspando nas tigelas, observei a fogueira no centro do acampamento.
Não havia madeira para queimar e nem mesmo um círculo de pedras ao seu redor. É magia, eu pensei, o que também explicava a falta de fumaça. Curioso e muito útil.
— Você não conhece a tropa do valor? — A criança humana de óculos falou.
— Gael, pare de incomodar Kron com essas histórias bobas — Noah disse logo após limpar sua tigela.
— Mas isso é verdade! A tropa do valor são os melhores dos melhores.
— Se eu não tivesse sido acertado no meu joelho quando mais novo, eu venceria todos eles! — ele disse, tentando fazer uma pose imponente.
— Tudo bem, senhor Noah, eu quero saber mais sobre essa tropa — Kron anotou algo em um papel.
— Gael é um bobão que acha que Ennio Carvalho teria chance contra Jacques Demolay — falou a outra criança humana.
— Calado, Jewel, seu feio!
— Sem brigar — Disse Corina, batendo nos dois com sua colher de madeira.
— Desculpe vovó… — os dois falaram juntos.
— Ivo! Quem é o mais forte? — Gael se virou para o pequeno elfo que tomava sopa.
— Isso aí! Jacques ou Ennio? — Jewel falou ansioso.
— Acho que nenhum deles é o mais forte — o pequeno elfo falou com voz tímida — O mais forte é o rei élfico.
Essas palavras me atingiram como uma flecha. O rei da lança, o unificador da Floresta de Prata… Voltei minha atenção para essa discussão.
As duas crianças humanas e Kron se olharam confusas. Obviamente, não o conheciam. São poucos os elfos que ainda mantinham reverência por seu nome.
— Quem? — Kron perguntou confuso.
— Meus pais… contavam sobre a lenda do rei — O pequeno elfo encarou o chão e ficou vermelho — Ele unificou a Floresta de Prata e nunca perdeu uma única batalha.
— Que besteira!
— Se ele é tão forte, por que nunca ouvimos nada sobre ele?
— Poucos são os dignos de conhecer a lenda do rei élfico — me juntei à conversa.
— Será que Erwan e o tio Kruger conheciam esse tal rei? — Noah ficou cabisbaixo.
As três crianças e Kron se juntaram para discutir quem era o mais forte. Corina me olhou e sorriu honestamente, algo que eu quase esqueci.
— Não baixe sua guarda, Kenshu — uma voz familiar sussurrou em meu ouvido.
— Quem disse isso? — Olhei loucamente para todos os lados.
Expandi minha aura de sonho e a queimei, invocando minha espada de sombras. Noah me olhou com espanto, mordi a língua e a desfiz.
— O que foi, filho? — Noah me olhou, com os olhos arregalados.
— Não me chame assim...
— Você tem ouvido vozes, não é?
— Tinha alguém aqui.
— Uma das últimas fases da maldição, mas isso você já sabia. — O velho vasculhou uma bolsa e retirou um frasco com um líquido roxo. — Pegue, tome um gole.
— Veneno? Por enquanto, suicídio não é uma opção — Falei desabando no chão.
— Isso vai retardar o efeito da maldição.
— Haha! Boa, velho, mas eu prefiro não acreditar em contos de fadas.
— Elas falam a verdade, e eu também — Ele estendeu o frasco em minha direção. — Tome um pouco e vai se sentir melhor.
Peguei o frasco para não ser rude, mesmo que fosse inútil; eu poderia quebrá-lo na cabeça de algum Pesadelo. Me recostei em um tronco, e Corina trouxe uma tigela de sopa para mim.
Noah afiava algumas armas ao longe, frequentemente se distraindo com os risos alegres das crianças e Kron, que contava ou inventava histórias.
— Eu vi boas pessoas corrompidas pela maldição, o que elas viravam depois... me congela os ossos, só de imaginar — A velha sentou-se em minha frente.
— Vocês estão levando isso a sério? Se existisse cura, já a teriam comercializado. Como têm tanta certeza de que funciona?
— Eu tenho fé no que Noah diz e tenho ainda mais em seu irmão, o homem que fez o remédio, Erwin.
— Esse nome... me é familiar.
— Claro que é, ele criou vestiários para lutar contra diversos monstros — Corina se levantou e partiu para seu caldeirão. — Não posso te forçar, você já é mais velho que eu.
(...)
Me deitei e descansei um pouco, digerindo um pouco da sopa; ela estava ótima... Passei o frasco entre meus dedos, o líquido roxo e viscoso quase parecia borbulhar.
Antes que eu pudesse pensar, sons e passos ecoaram na distância. Erwan e Bale mancavam para fora do labirinto natural. Ambos se sentaram próximos à fogueira, a luz os iluminava, destacando um líquido escuro que lentamente evaporava junto com o sangue.
— Erwan! — Corina largou tudo e se ajoelhou próximo a ele.
— Bale! — Kron saltou sobre Bale; as três crianças o imitaram, se jogando sobre Erwan.
— Ei, ei! — Noah gritou de forma imponente. — Abram espaço aí!
Com essas palavras, Noah se atirou junto às crianças. Corina olhou com uma mistura de horror e alívio, o mesmo que eu sentia muitas vezes: era o sentimento de ver que seu filho estava vivo...
A visão de dois sorrisos virarem carrancas sem expressão manchadas de sangue-frio me fez cerrar os punhos e morder a língua; só parei quando o sangue começou a escorrer.
— Extermine todos! — Uma voz familiar martelou minha mente.
— Kenshu? Tudo bem? — Kron perguntou, encarando-me com seus grandes olhos brilhantes.
— Claro? Por que não estaria? E você, como está? — Falei, esboçando algo que deveria ser um sorriso.
— Mas você está chorando... — Limpei as lágrimas que caíram. — Não é nada...
— Pare de forçar esse sorriso — Erwan falou, retirando as crianças e Noah de cima dele.
— Do que está falando?
— Estamos entre amigos, não precisa forçar nada.
— Eu estou normal! — Levantei-me e fui até o pequeno lago.
(...)
Sentei-me na margem do lago, retirei meus sapatos e levantei as calças até a altura do joelho. Molhei meus pés, e a água morna me deixou mais calmo. Encarei meu reflexo, xingando-o em silêncio.
Algumas vezes, Kron ou Corina se aproximavam, mas eu apenas os ignorei. Novamente olhei para o frasco de líquido roxo, o abri e bebi metade do conteúdo; o gosto era meio roxo, junto a peixe podre.
O que eu esperava? Nada mudou em mim, minha reserva de sonho continuava a mesma, e minha maldição ainda ardia. Encarei meu reflexo novamente, mas algo novo chamou minha atenção: uma pequena passagem escondida por musgos, quase tão pequena quanto a da entrada; ótimo, outro lugar apertado para me esgueirar.
— Como está? — A voz de Bale me deu um arrepio na espinha.
— Há quanto tempo você está me olhando? — Perguntei, olhando para nossos reflexos.
— O suficiente.
— E então? Algum tipo de sermão?
— Lembra sobre o que eu falei?
— Que eu sou um soldado nato?
— Não faça besteira, ou eu te deixo
— Ela falou quase rindo.
Fui deixado mais uma vez, encarando meu reflexo; pude jurar que o vi me julgar. Meus olhos ficaram pesados e desmaiei em sono.
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