Volume 1

Capitulo 10: Labirinto

Meus dentes batiam loucamente, e minha respiração saía congelada. Ao longe, as pessoas que passavam jogavam pedra e cuspiam em mim. Caí sem entender o porquê. Busquei meu sonho, porém nada havia. Tentei gritar, mas o som não saiu. Por fim, olhei para os lados tentando achar alguém que me ajudasse. Vi meu reflexo em um espelho trincado, uma pele escura como a noite e olhos brancos e brilhantes como tochas. Fiquei estático, observando esse reflexo macabro. Virei tudo que um dia eu já amaldiçoei, um genérico…

— Haha! Pobre Kenshu — Uma voz estranha e familiar ao mesmo tempo, falou.

(...)

Minha cabeça e meu corpo doíam; senti o machucado em minhas palmas sangrar e minha maldição arder de puro rancor. Abri meus olhos levemente.

— Acho que ele morreu — Disse uma das crianças humanas.

— Não deveríamos falar com o Erwan?

— Ivo falou, batendo os dentes de medo.

— Espera… Por que ele tá com a machadinha do tio Kruger? — a outra criança humana falou, tentando puxar a machadinha da minha cintura. Me levantei, agarrando a machadinha por puro instinto.

A criança catarrenta caiu para trás, pigarreando. Olhei seus rostos cheios de sentimentos de confusão e medo. Suspirei e fui até a beira do lago, me abaixei e joguei um pouco de água no meu rosto. Os três me seguiram, suando frio.

— Ladrão! — A criança falou quase rosnando — Por que está com o machado do tio?

— Erwan não contou para vocês? — Sorri levemente — Kruger… me deu esse machado após ter vencido uma horda de Pesadelos.

— Sério? — Ivo pulou de alegria.

— Ficou preocupado à toa — Disse a criança com um olhar arrogante

— Imbecil! Foi você que tava querendo ir com o Erwan procurar o tio! Encarei as crianças se batendo e se xingando, algo que eu adoraria ver, mas agora estava diferente, Ivo tentava fazer os dois pararem, porém, eles apenas continuavam rolando pelo chão frio da caverna.

— Senhor Kenshu… — Ivo hesitou — O que aconteceu com o tio Kruger?

— Ora, ele venceu a horda de Pesadelos, mas continuou limpando o caminho para nós.

— Mas… com esse monstro que falava, não é perigoso lá fora? Um Pesadelo que podia falar, esses são os mais perigosos. Cocei meu ombro e lembrei da aberração que nos derrotou. Se existe algo mais forte que esse monstro…

A voz poderosa de Erwan quebrou meus pensamentos e fez com que as crianças parassem imediatamente. Em minha frente, o elfo loiro e de vestes verdes me olhou com uma expressão indiferente.

— Corina quer saber se dormiu bem — Ele falou, olhando para as crianças.

— Claro, minha pedra era a mais macia entre os reinos — forcei um sorriso.

— Vamos nos mover logo, estejam prontos — Disse com sua voz imponente.

Erwan voltou para o velho Noah que desmontava o acampamento. Eles riam, provavelmente de uma piada sem graça. Senti uma pontada de confusão e inveja.

Do outro lado da caverna, Corina e Kron pareciam recolher alguns cogumelos roxos, semelhantes a jarros. O olhar de Kron sempre me animava, tão… inocente.

As crianças conversavam sobre o quanto Erwan era incrível ou discutiam sobre a tropa do valor, o que quase sempre acabava com eles gritando um com o outro, menos Ivo, que sempre tentava acalmá-los.

— Isso me lembra, onde está a Bale?

— O esquisitão foi vigiar a entrada.

— Não deveria chamá-la assim.

— Ela? — Os três se olharam confusos.

— Sim? A mulher alta e de vermelho? Deveria imaginar que crianças teriam essa dificuldade — Falei confuso.

— Mas, senhor Kenshu, ela, na verdade, é homem — O pequeno Ivo falou com firmeza na voz.

— Agora que ele falou, ele tem uma aparência meio estranha — Jewel falou com um olhar pensativo.

Se eles estão falando a verdade, eu vou precisar me desculpar seriamente com Bale, mas que seja. Agora preciso aproveitar minha situação e juntar algumas informações.

Erwan me encarava do outro lado da caverna, com as orelhas agitadas, apontadas para mim, quanta confiança. Cocei meu rosto e apertei meus olhos.

— Bem, depois vou ter que me desculpar com nossa senhorita — Falei ainda confuso — Mas aproveitando isso, Ivo, quantos anos você tem?

— Eu? Bem… 52.

— Nunca vou me acostumar com ele sendo quase tão velho quanto Noah e Corina — Jewel falou e logo após mordeu um cogumelo roxo.

— Vocês podem comer isso?

— Todos os cogumelos aqui são comestíveis, por isso escolhemos essa caverna.

— Uma boa tática — Falei, enchendo meu cantil de água — Garotos… sei que foi um evento traumático, mas o que aconteceu com a vila de vocês?

— Nós não vimos muita coisa — disse Jewel serrando os punhos.

— Se pudéssemos ter lutado — Gael falou batendo na pedra.

— Névoa… vi uma fumaça escura vindo do rio — a voz de Ivo tremeu por alguns instantes.

— Venham! — A imponente voz de Erwan ecoou pela caverna — Peguem suas coisas, hora de sair daqui.

(...)

Meu corpo ainda doía levemente; dormir na pedra não era tão ruim quanto eu pensava. Erwan guiou o caminho pelo labirinto de rochas, seguindo Noah, Corina, Kron, as crianças e eu no final. As malditas partes afiadas ainda me cortavam a cada passo, contudo não senti minha maldição queimar, mesmo quando meu braço foi acertado diretamente. Era de certa forma gratificante e estranho, pois já havia me acostumado com tal sensação. Mesmo com minha visão superior, eu não conseguia me manter afastado dessas lâminas rochosas.

Em minha frente, as crianças e Corina se moviam perfeitamente, mesmo quase sem luz ou destreza élfica. Suspirei e continuei firme, ouvindo Kron falar sobre receitas usando cogumelos.

— Como vocês conseguem? — minha voz ecoou infinitamente.

— O que foi, meu filho? — Corina disse se virando para trás.

— Andar por aí sem se machucar nessas pedras afiadas — Perguntei, sentindo os pequenos cortes.

— Afiadas? Eu nunca havia notado serem perigosas — Sua voz ecoava pelo labirinto.

— Mas são! E muito irritantes — Algumas acertaram novamente meus braços.

— Talvez deveria tentar se mover com mais calma, em vez de força bruta — Erwan falou.

Cerrei meus punhos com força, e mal pude sentir minha maldição. Esse elfo andando com humanos assim, eu deveria sentir ódio dele, mas… não sinto. Respirei profundamente e esqueci de tudo, a conversa de Kron e as crianças sobre quem era mais forte, Corina e suas novas receitas sem carne; eu apenas me esgueirei pelas pedras, sem me cortar.

Chegamos à nossa saída e, ao entrar, Bale estava sentada… sentado no canto, com suas espadas em mãos, e sua expressão quase morta em seu rosto, uma linha solitária e um olhar vazio.

— Para onde vamos? — Bale se levantou e esticou suas pernas.

— Vamos tentar sair dessa floresta — Noah abriu um mapa e se aproximou de nós.

— Vamos levar as crianças? — Encarei o labirinto e meus braços logo em seguida.

— Não pretendemos voltar, então é nossa melhor opção, além disso, com dois conjuradores não será problema — Noah falou, olhando para Kron e Erwan.

— Vamos seguir para a ravina do eco e depois vamos continuar pelo rio, até sairmos da floresta — O rosto de Noah ficou sombrio — em uns 2 dias de viagem devemos achar uma vila com pessoas.

— As crianças ficaram no centro comigo enquanto conjuro minha camuflagem. Noah, Corina e Bale vão à frente, e Kron e Kenshu atrás, tomando cuidado com inimigos, certo? — Erwan falou liderando como um verdadeiro comandante.

— Certo — todos falaram, tomando suas posições.

(...)

Saímos da caverna pelo pequeno buraco, coberto por uma placa de madeira camuflada por gramas e folhas. As orelhas de Erwan se moveram freneticamente, tentando buscar qualquer sinal de perigo.

Ele fez um sinal de silêncio, sussurrando e ativando sua magia, moldando o sonho ao nosso redor, como uma bolha verde e volátil. Assumimos nossas posições e começamos a andar.

— Verschmelzen Sie mit der Natur [Camuflagem] — À medida que a bolha nos envolvia, os olhos de Erwan brilharam em verde.

— Que magia legal! — Kron gritou baixinho.

— As minhas são melhores...

— O que disse?

— Você deveria manter suas orelhas atentas a qualquer perigo.

Kron sorriu suavemente e mexeu as orelhas loucamente, empolgado mesmo em uma situação de vida ou morte. Saquei meu machado, admirando seu peso, um perfeito machado barbado, feito para arrancar as armas de meus inimigos.

Expandi minha reserva de sonho e senti o suficiente para apenas uma magia, como sempre. Esse remédio maldito criou muitas expectativas, porém a maldição não queima como antes… preciso conseguir mais.

— Ei Kenshu, esse rio que vamos seguir… — Kron parou abruptamente e encarou algo na escuridão da floresta — Não era nada, o rio é onde encontramos a fumaça?

— Deveríamos informar sobre isso a Noah, evitar problemas, embora com 4 elfos não teríamos grandes desafios.

— O que ser elfo muda?

— Somos melhores que a maioria das raças, destreza superior, reflexos, vivemos mais que qualquer outra raça, visão no escuro e alguns, como eu, nascem com magias inatas. — Me perdi em minhas falas e pude ver os olhos de Kron girando e uma leve fumaça saindo de sua cabeça.

— Mas ainda somos pessoas, certo? — Concordei com a cabeça — Isso me parece errado, minha mãe sempre falava sobre sermos iguais.

— Eu diria que somos parecidos… porem diferentes de nossa própria forma, e ainda assim continuamos superiores em tudo.

— Mesmo contra Ennio Carvalho? Afinal, ele é a pessoa mais forte.

— Quem te falou isso?

— Jewel e Gael, achei incríveis as histórias sobre a tropa do valor.

— Deveria mostrar mais apreço pela sua cultura, garanto que nenhum deles é mais forte que o rei élfico.

— Gostaria de ver uma batalha entre eles.

— Isso simbolizaria uma guerra, bem quando tivermos tempo vou te contar mais sobre ele.

— Certo! Vou preparar um ensopado de cogumelos para você — Kron gritou baixinho.

(...)

O silêncio macabro da floresta foi substituído pelos passos desajeitados de nosso grupo e das conversas sussurradas. Erwan parou com as pernas trêmulas, seu ofegar poderia ser ouvido a quilômetros. Noah rapidamente retirou um mapa de sua mochila, e seus olhos corriam freneticamente pelo mapa, buscando por algo. Poucos segundos passaram e ele voltou à nossa realidade.

— Vamos descansar, devemos estar próximos da ravina.

— Não, Noah, eu consigo andar mais.

— Ficará cansado demais, se desgastou tanto sem nem me avisar... — Ele cerrou os punhos e nos liderou junto a Corina e Bale.

A bolha verde que nos escondia parecia incerta, expandindo-se e ameaçando estourar a qualquer segundo. Segurei meu machado com firmeza e expandi meu sonho, buscando a sensação de calor reconfortante. Meu coração começou a martelar quando Kron apontou em silêncio para alguns Pesadelos ao longe. Contudo, ao longo do caminho, vários outros pequenos grupos foram aparecendo.

A bolha de camuflagem tremia cada vez mais, e Erwan gemia baixinho, tentando não chamar atenção desnecessária. Essa magia era boa, porém chegar perto demais ou fazer barulhos altos nos condenaria. Passamos horas parados e nos movendo pouco, esperando que esses Pesadelos fossem burros o suficiente para não perceber a distorção em suas visões. Gotas de suor caíam do rosto de Erwan, e, à medida que as aberrações sumiam de vista, um sorriso se formava em seu rosto.

A bolha foi desfeita quando o último Pesadelo sumiu de nossa visão. Erwan caiu ao chão e foi levado por Bale, com Corina e Noah atrás, segurando suas lanças para parar qualquer perigo. Andamos por alguns minutos tentando buscar um lugar seguro. Em uma pequena caverna mapeada por Noah, montamos um pequeno acampamento.

Me sentei cansado mesmo após não ter feito nada. Corina rapidamente se colocou ao lado de Erwan, oferecendo-lhe algumas carnes secas. Noah suspirou e se sentou ao meu lado, e eu pude ouvir seus ossos estralarem.

— Forçaram um senhor a andar por horas, esses Pesadelos não têm compaixão.

— Claro, seria estranho eles te oferecerem chá antes de te matar cruelmente.

— Acho que faz sentido. Usou o remédio?

— Sim, o gosto era horrível, porém não sinto minha maldição queimar como antes — falei mexendo meu braço amaldiçoado — Você que fez? Tem mais por acaso? Se eu tomar o resto, minha magia poderia voltar ao normal?

— Ahhh — Kron caiu subitamente, com os olhos rodando em espirais e uma fumaça saindo de sua cabeça.

— Por G, garoto, poderia se acalmar só um pouco?

— Claro.

— Você ainda sente? A sensação de que tudo vai piorar.

— Desde que sobrevivi à guerra, tudo ficou vazio.

— Erwin, meu irmão, foi quem criou esse remédio — O velho retirou um cantil e o bebeu em poucos segundos — Ele morava em Dragon Claw quando trabalhava para a Ordem do Sol Sagrado.

— Esse nome...

— Faz anos desde que não falamos, desde um certo incidente… — O velho apertou sua lança com força — Esse frasco foi tudo que sobrou, se quiser o buscar, Dragon Claw é a melhor alternativa.

— Obrigado, Noah, farei meu melhor para te recompensar!

— Kenshu! Noah! Peguem as armas! — A voz de Bale ecoou pela caverna.

Fora da caverna, havia dezenas de Pesadelos humanoides, placas ósseas saltavam de seus corpos. Diferentes dos anteriores, esses seguravam espadas ósseas de duas mãos, quase como se fossem brinquedos. O pequeno grupo formou um semicírculo ao nosso redor, nos cercando. Contudo, outra aberração saiu da escuridão da floresta, seus passos ressoavam pela floresta, a criatura tinha uma cabeça de coruja com olhos verdes e brilhantes como um farol.

Logo depois, um corpo grande de urso, cheio de penas negras, com duas patas dianteiras que se assemelhavam a asas e laminas, a criatura rugiu. Meu machado em mãos e meu inimigo em minha visão. Que comece.

 
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