Volume 1

Capítulo 6: Sobrevivência do mais Forte

A luz dourada do sol foi gradativamente engolida pela densa floresta que nos sufocava por todos os lados. A pouca luz que passava pelas copas das árvores deixava o lugar mais assustador do que quando era o cinza soberano da nossa visão élfica, contudo era bem ver algumas cores para variar.

Em minha frente, meu novo aliado e sua companheira chata. Andávamos seguindo uma trilha de terra batida, não havia indicações de caminhos, porem era certo que as pessoas dessa vila pegariam água no lugar mais próximo.   

— Humm, Kenshu? — disse Kron me esperando e ficando ao meu lado.

— O que foi? — falei ainda sentindo o cheiro do algo em minha boca.

— Nossa… que bafo horrível! — disse ele tampando o nariz. — Por que era tao importante ter uma arma reserva? — ele disse com uma voz anasalada.

— Você não precisa dessas coisas, pode ser transformar em um urso e ainda lançar magias

— Entendi! Mas… então eu deveria me desfazer disso? — Kron retirou uma pequena adaga prateada de um dos seus vários bolsos.

— Você tem uma arma reserva? — perguntei enquanto me expressão se tornou rígida.

— Bem… foi um presente e meio que não sei usar — Kron encarou a adaga, o brilho em seus grandes olhos havia sumido.

— É melhor manter ela por perto, nunca se sabe quando vai precisar — Meus olhos recaíram no símbolo da lua azul talhada na bainha da faca.

— Algum problema? — Disse enquanto guardava a adaga em um de seus muitos bolsos.

— Você é um seguidor da nossa lua?

— Lua? 

— Esquece…

(...)

O barulho repetitivo dos passos quase pareceu sempre estar la, até que Bale parou. Um enorme rio se estendia em nossa frente, o barulho da forte corredeira foi um alívio em meio a esse silêncio.

Bale se abaixou próximo ao rio e encheu um cantil rustico de couro, Kron rapidamente se colocou ao seu lado, movendo a cabeça loucamente, na busca de algo. Do outro lado do rio havia uma floresta com árvores vermelhas, o solo era branco e seco.

— Beba Kron, não pode ficar desidratado — Falou Bale entregando seu cantil.

— Não estou vendo nenhum peixe… — Kron parou e começou a beber a água.

— Sem carne, então — meu estomago roncou.

— Vamos seguir o rio — disse Bale pegando e enchendo seu cantil logo em seguida.

— Certo! Acha que vamos ver alguns peixes? — perguntou Kron com brilho em seu olhar.

— Não deveria ficar muito otimista — falei após tomar uma boa golada do meu cantil.

— Por quê? — Ele me encarou franzindo as sobrancelhas.

— Ficar animado demais pode acabar te deixando frustrado

— Ignore ele — Disse Bale começando a se mover. — Venha Kron devemos achar alguma vila.

— Só espero que não seja igual a essa — Kron sussurrou.

(...)

Nos colocamos a marchar, seguindo o rio, o suave barulho da corredeira se tornou em uma melodia confortável, algo que contrastava com o silêncio brutal da floresta.

— Sabe, eu estava pensando… — falei coçando meu ombro.

— Você consegue fazer isso? — Bale me cortou.

— Engraçadinha, serio, pelo que vocês falaram, esse lugar deveria ser um teste, mas pessoas moravam aqui, pessoas morreram… — encostei onde havia guardado o desenho.

— O que quer dizer? — Perguntou Kron

— Talvez tenhamos sido jogados aqui para morrer — falei com seri

— Com certeza tem algo errado aqui

— Que novidade você concordar comigo

— Hum, Isso é o básico para se entender

— Quer compartilhar seus pensamentos? Talvez uma luz no final desse túnel? — respirei e contive minhas perguntas.

— Não — Ela respondeu de forma seca.

— Ei! Olhem olhem! — Kron ficou paralisado.

— Pesadelos? — Empunhei minha lança e olhei ao redor.

— Uma borboleta-azul! Elas são extremamente raras — Kron olhou estático para seu dedo, onde uma borboleta havia pousado. — Anda! Assopra e faz um pedido.

— Serio isso? Estamos no meio do nada, se baixarmos a guarda para fazer uma brincadeira de criança… — antes que eu pudesse terminar de falar, Bale assoprou a borboleta.

— Qual seu pedido?

— Bobao, se eu contar ele não vai se realizar

— Mas é se você contar baixinho?

— Sem chances

— Haha! Vocês são muito peculiares — Bati em meu rosto, e comecei a rir.

— Ei… o que é aquilo na água? — Kron encarou uma algo na margem do rio.

Uma figura escura se encontrava presa entre algumas pedras, com um espasmo desordenado ela saiu do rio, se levantando e ficando corcunda, água suja pingava do seu corpo.

O sol laranja do meio-dia ofuscou minha visão, a passos incertos a figura se aproximava. Tentei inutilmente expandir minha aura. Minhas mãos tremeram, e meu coração começou a martelar contra meu peito.

Bale se colocou em posição protegendo Kron. Em uma última arrastada descoordenada a figura caiu. Suei frio e dei um passo pra frente, puxei uma das lanças em minhas costas, porem elas foram ao chão.

— Merda! Ei Kron, segura essas lanças pra mim? — avancei até a criatura, com minhas mãos suando.

— Ok! — Prontamente ele agarrou as lanças, as colocando debaixo do seu braço.

— Soldado em — Bale me ultrapassou com sua espada curta em mãos.

A medida que nos aproximávamos, nossa visão ficou clara, um elfo vestindo uma armadura negra, encharcado e com vários espinhos fincados em seu corpo. 

— Kron! Cura! Agora! — Bale saltou até o corpo, colocando sua cabeça no peito do elfo.

— Mae'r ysbrydion yn dawnsio [bom espirito] — Kron correu e uma luz esverdeada tomou conta do dia, uma sensação de vigor me inundou.

O soldado começou a cuspir sangue, seus olhos se arregalaram e em um último espasmo desesperado de vida, ele gritou.

— Capitão… Kruger! — em um piscar de olhos ele foi ao chão.

— Ele… morreu? — perguntou Kron com a voz fraca.

— Sim — falei cerrando os punhos — isso é mais um sinal, tem algo muito errado aqui, e esse nome estava em uma carta e eu já ouvi em algum lugar.

— Kruger, o assassino da ceda — Disse Bale fechando os olhos do soldado.

— Isso eu sabia que… — fui interrompido por Kron.

— Ei, vocês estão sentindo esse cheiro? — disse Kron tampando o nariz.

— Que coisa feia para falar quando um morto… — tentei falar, porem algo prendeu minha atenção.

A água do riacho começou a ficar escura, olhei para o lado e uma enorme nuvem negra veio junto da água, ameaçando engolir o dia. Um fedor de carniça me fez lacrimejar, o odor me abateu, porem senti algo puxar a cola da minha camisa.

— CORRAM! — Bale falou me puxando para a floresta.

— Mas que merda é essa? — Falei ainda com os olhos lacrimejando.

— O soldado nos vamos deixar… — um forte estrondo calou a Kron.

Algo fez a terra estremecer, em um ato de curiosidade e pavor eu olhei para trás enquanto corria o máximo que podia, a fumaça engolia a tudo, contudo uma silhueta brilhando em verde me deixa um vislumbre de sua forma, ela abocanhou o cadáver e o arrastou para o rio. 

(...)

Forcei minhas pernas ao limite, passei de Kron que ainda olhava para trás, fiquei lado a lado com Bale que mantinha seu rosto neutro e impassível, minhas pernas cederam e eu caí ajoelhado.

Ofegante eu encarei a copa das árvores, a floresta sempre me acalmava. Se não fosse esse silencio macabro e a situação em que me encontrava, quem sabe seria um bom lugar para relaxar.

— Você viu a sombra dele? — Perguntou Kron com as pernas tremendo.

— Sim sim… — Fiquei em silêncio tentando me recompor.

— Sem tempo a perder, vamos voltar a andar.

O simples ato de mexer minhas pernas se tornou um desafio, me forcei o máximo que pude, porem apenas terminei no mesmo lugar e ofegante. Kron me encarou com seus grandes olhos brilhantes.

— Podemos descansar? Minhas pernas estão tremendo um pouco — disse Kron se sentando e abraçando suas pernas.

— Claro. — Falou Bale me encarando e sumindo floresta adentro.

— Ei, Kron… obrigado…

— Não se preocupe — ele me olhou com seu sorriso sincero — Quer frutinhas?

— Claro — disse pegando um punhado — Espero que tenha pegado o suficiente para um bando de halflings.

— Enchi 10 bolsos! Com frutinhas dessa qualidade seria um erro desperdiçar

— Fazia tempo que eu não comia coisas gostosas, durante a guerra era ração e agora era só cerais sem gosto.

— Nessa… guerra, vocês não comiam coisas gostosas por quê?

— Precisávamos abdicar dos nossos gostos pessoais para levar mais comida.

— Que horror!

— Isso por que você não viu quando fomos cercados e tivemos que comer carne de cavalo

— O quê?!!! Mas cavalos são tão fofos, isso é cruel!

— Um pouco, mas foram tempos de necessidade, e se serve de consolo a carne era muito dura — Kron me encarou com seus grandes olhos arregalados

— Você nunca mais vai comer carne nê?

— Olhar se existir algo gostoso e pratico de consumir, eu juro que nunca mais como carne — 

— Sério? Vai ter que manter isso em, como um pacto! — disse Kron estendendo sua mão.

— Haha! Claro — apertei sua mão, com um leve sorriso no rosto.

— Espero que mantenha sua promessa!

Um sorriso bobo se formou em meu rosto, uma sensação que não sentia fazia seculos se espalhou por meu corpo, algo quente e familiar. Kron me olhou com suas bochechas cheias de frutinhas, senti uma pontada no estômago. 

— Ei… poderia me dar mais algumas? 

— Cla… ro! — disse Kron cuspindo alguns pedaços de frutas. 

Peguei um grande punhado de frutinhas vermelhas e brilhantes, as mandei para dentro, enchendo minha barriga por um tempo. Balancei meu cantil, o abri e comecei a beber o líquido quente cortante. Fui bombardeado pelos olhares de Kron.

— O que é isso? Tem um cheiro forte — Ele falou, torcendo o nariz.

— Ah! Sabe só água mesmo, com um gosto engraçado

— Me dê um pouco então!

— Melhor não, você é novo demais para isso.

— Qual é! Por que vocês dois ficam falando isso? — Kron falou, batendo o pé no chão.

— Haha! Um dia podemos beber juntos e talvez sua amiga também

— Bale? Você gosta desse tipo de bebida? — Um pequeno calafrio escorreu por minha espinha.

Virei para trás e em minhas costas, a figura inerte e pensativa de Bale me encarava, encostado em uma árvore próxima. Saltei em desespero, tentei expandir meu sonho, porem não havia nada para ser queimado.

— Você me assustou

— Já podemos ir? — Ela falou após um longo suspiro.

— Desde quando…

— O suficiente — Bale me interrompeu e foi até Kron. — Não aceite bebidas de estranhos como eu te ensinei.

— Mas o Kenshu não é um estranho

— Deixa quieto Kron — falei me levantando — Já to pronto para voltar a caminhar, mas para onde vamos? 

— Seguiremos a trilha — Disse Bale retirando um x talhado em uma casca de árvore.

— Assim? E se for uma armadilha? Talvez… — mordi minha linguá.

— Fique a vontade para ir embora. — Ela falou me dando as costas e indo até Kron. — quantas magias sobraram?

— Só duas… e estou sem formas selvagens — ele falou me encarando.

— Ótimo, guarde elas o máximo que puder — Disse Bale dando tapinhas no ombro de Kron.

Me levantei e uma tontura me acometeu. Formamos uma fila, Bale avançou mais a frente, Kron e eu ficamos atrás, peguei uma das lanças com Kron e a segurei com firmeza e testei sua ponta.

Começamos a caminhar seguindo as estranhas marcas nas árvores, uma atitude tola e apressada. Expandi minha aura de Sonho, nada era suficiente para nada, porem o calor era acolhedor. Balancei o cantil e virei o resto, minha garganta queimou e eu quase quis gritar.

O silêncio batia contra minha cabeça a cada segundo, passo atrás de passo, tudo era igual e monótono, comecei a cocar meu braço até arder. 

— Ei Bale — me aproximei levemente. — Clima bacana, nê?

— Volte para a sua posição — Ela disse sem nem me encarar.

— Claro, claro, mas você não precisa me dar ordens como se eu fosse um dos seus soldados — Bale parou e cerrou os punhos — Sabe, como eramos soldados deveríamos compartilhar nossas experiências e planos, que tal…

Como um raio, Bale saltou sobre mim, engoli seco. Cai desajeitado ao chão, uma figura escura e levemente humanoide desceu das árvores; possuía uma máscara tribal com olhos verdes brilhantes, garras ósseas se projetavam de suas mãos e pés, semelhantes a de um leão.

Antes que pudesse pensar, Bale se levantou sacando sua espada e desferindo um golpe limpo no Pescoço do Pesadelo. Me levantei com destreza e saltei atravessando a lança nas costas do monstro.

— Boa! Agora… — fui interrompido por um grito de Kron.

— Tem mais nas árvores! — disse Kron recuando

Com uma forte batida, uma aberração vagamente humana caiu próximo a Kron; Possuía um enorme casco em suas costas, seu corpo era robusto e blindado por diversas placas ósseas. Ele bateu no peito repetidas vezes e gritou.

— Venham humanos!

Meus ossos congelaram.



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