Volume 1

Capítulo 16: Conjurador

O salto pareceu durar horas. Fechei os olhos até que um grito me fez abri-los. Pipe estava de pé, com o braço na mandíbula do lobo escuro. Seus olhos tremiam loucamente. O velho berrou enquanto sangue escorria de seu braço.

Comecei a me mexer desesperadamente; não poderia me deixar levar sem resistir. As garras me apertaram forte à medida que o chão ficava longe, mas uma fagulha de ideia me fez queimar o sonho.

— Y tân yn amddiffyn [armadura de agathys] — murmurei, e chamas me abraçaram, rasgando as patas do corvo.

Antes que eu começasse a despencar, agarrei uma das patas do Pesadelo, que grasnava com raiva. Com um movimento rápido, joguei o machado certeiramente no lobo que mordia Pipe. Quase pude ouvir seu suspiro de alívio quando a criatura começou a vacilar.

Com as mãos livres, subi no corpo gosmento do corvo e agarrei sua asa. Mesmo desse tamanho, ainda era frágil. Tentei puxá-la para trás, mas a aberração lutou, tentando subir. Logo, ele vacilou e começamos a cair. Socava suas costas até meus punhos sangrarem, e o corvo se desfez em várias versões menores.

Caí de costas no chão, com o pouco da armadura de agathys absorvendo o impacto e desaparecendo logo em seguida. O combate parecia ganho. Rapidamente, Bale lidou com os dois lobos que sobraram, enquanto o ruivo e o anão avançaram contra o arqueiro.

Todos os sons sumiram. A batalha ao lado parecia uma noite morta. Algo estava lá, atrás do arqueiro: um sorriso vermelho, sangue, pele como carvão, chifres brotando de onde deveriam estar seus olhos. Em uma mão, um livro; na outra, uma faca.

Senti meu corpo pesar e logo me ajoelhei. Parecia que eu estava cansado até mesmo para pensar. Cerrei os dentes, tentando levantar a cabeça e olhar ao redor. O arqueiro recuou, dando espaço para o chifrudo.

Todos estavam caídos, menos o ruivo. Ele manteve sua postura limpa. Sem nem hesitar, disse com sua voz calma e paciente:

— Deixem esse pra mim. Fujam quando eu quebrar sua concentração — Ele desapareceu como um raio, reaparecendo atrás do Pesadelo.

Uma grande explosão nos cegou. O ruivo foi jogado para longe e o chifrudo permaneceu imóvel, rindo lentamente. O arqueiro começou a se mover em direção a Kron. Tentei me mexer, mas a magia apenas me jogava mais para baixo.

Antes que pudesse se aproximar mais, o anão saltou, golpeando o Pesadelo com seu machado. O impacto atingiu o rosto da aberração, fincando o machado em sua cabeça, mas a criatura socou o anão para longe.

— Ei, Leonel, poderia ir mais rápido aí? — O anão se levantou com dificuldade.

— Minhas condolências — O ruivo desapareceu e foi novamente recebido com uma explosão.

A magia que nos prendia não parecia fraquejar. Bale e Pipe não mostravam nenhum sinal de resistência. Sons de marcha podiam ser ouvidos à distância, e todo meu otimismo me dizia que esses eram os reforços inimigos.

O ruivo se colocou novamente em postura. Suas roupas estavam chamuscadas e rasgadas. Ele respirava com dificuldade, lutando para ficar de pé. O Pesadelo conjurador apenas ria. O arqueiro lentamente foi até Dain, que rosnava como um cão raivoso.

— Rastline te zaprejo! [Constrição] — A voz de Kron foi como música para meus ouvidos.

Vinhas brotaram do chão, prendendo o Pesadelo chifrudo. Antes que pudéssemos nos recuperar direito, o ruivo gritou para fugirmos. Cerrei os punhos e corri, agarrei meu machado jogado e ajudei Kron a se levantar. Bale colocou Pipe nas costas e corremos o máximo que podíamos.

O arqueiro havia corrido com passos pesados para onde o conjurador estava preso, mas o anão e o humano se colocaram entre eles. Ambos nos olharam, e eu pude sentir toda a determinação de um soldado de verdade.

Tentei expandir meu sonho, mas não restava nada. Kron tossia sangue a cada passo, como uma criança sortuda brincando com a magia dessa forma. Segurei seu braço, gritando para que se mantivesse firme, mas para onde estávamos indo? À nossa frente, uma guerra, e atrás, mais Pesadelos.

— Bale? Kenshu? — Kron falou entre cuspidas de sangue. — O que...
— Não se esforce — Bale disse, preocupado.
— Me-me-me desculpe por ser inútil hoje — a voz fraca de Pipe quase foi abafada por nossas respirações pesadas.

Minhas pernas se moviam apenas por instinto. A cada passo, eu tinha uma real noção do campo de batalha: todas as direções eram preenchidas por amontoados de soldados e Pesadelos. Nossa única esperança era cruzar aquilo sem sermos pisoteados.

Senti um arrepio familiar quando um enorme corvo desceu com um rasante brutal, derrubando todos nós. A criatura fixou seus olhos em Kron e, com um movimento suave, desceu cortando o ar. Bale se colocou entre eles, rosnando como um cão selvagem, mas a criatura avançou sem se importar, colidindo de frente. O impacto foi brutal, estilhaçando a espada de Bale.

Ele foi jogado na terra cinza, e sangue começou a jorrar de seu ombro. O Pesadelo novamente foi ao céu, com as garras abertas, descendo em direção a Kron. Segurei meu machado firmemente, busquei sonho inutilmente e me preparei para queimar sonho, mesmo que isso me matasse. O corvo desceu, girando como um tornado.

— Cubra os olhos — senti Kron segurar minha perna.

Sem questionar, cobri meus olhos com meus braços. Em poucos segundos, minha visão foi iluminada por uma luz calma. O Pesadelo grasnou e ouvi seu corpo se chocar com o chão. Sem perder tempo, arremessei meu machado em sua cabeça.

Diversos corvos debandaram, voando de forma torta e se chocando contra outros. O corpo maior continuou caindo e se contorcendo. Sem pensar duas vezes, saltei e arranquei meu machado de seu corpo. A aberração começou a grasnar de forma incontrolável. Sem pensar, apenas a golpeei até virar um amontoado de gosma escura.

Terminei ofegante. Seja lá o que Kron havia feito, nos salvou. Contudo, quando olhei para ele, seus olhos estavam arregalados, nariz sangrando, estático, olhando para a batalha. Algo emergia do caos e destruição.

Do fogo e da morte, uma figura quadrúpede se ergueu, com olhos vermelhos e predatórios, suja de sangue e carne de soldados. Uma cauda serpenteava de um lado para o outro, revestida de placas ósseas, apenas com uma única trinca em seu rosto. Poderia ser qualquer uma, mas esse andar arrogante e esse olhar eram de outro mundo.

Por que aqui? Por que agora? Olhei para Bale, sem espada, ofegante e ferido. Pipe estava pálido. Kron estava caído ainda; seria perigoso ele usar mais magias. Então, todo o trabalho ficou para o exímio caçador. Eu não ia perder de novo.

— Ei! Bale, leve-os para longe! — Drenei meu sonho, me levando ao limite. — Y tân yn amddiffyn [armadura de agathys].
— Kenshu, eu... — Mal pude entender o que Kron havia dito.

— Vamos — Bale ajudou Pipe e Kron a se levantarem.

Minha lua, por favor, me dê forças. Senti meu coração martelar de fúria, minhas dog tags balançando em meu braço. Avancei freneticamente contra a manticora. Um chiado despertou meus sentidos e pulei para frente, esquivando por pouco do ferrão.

Desferi um corte rápido na perna da frente, mal consegui feri-la. A aberração me olhou com um sorriso afiado e, girando seu corpo, golpeou com a cauda. Saltei para o lado mais uma vez, esquivando por pouco. Senti meu suor evaporar pela armadura de agathys.

A aberração avançou sem piedade, desferindo diversos ataques com sua cauda. Dancei entre seus golpes, mas a cada movimento, pude sentir minhas forças se esvaindo. Pisei em falso, caindo e sendo golpeado em cheio com uma chicotada brutal. Minha armadura se desfez, saltando sobre o Pesadelo, mas ela mal sentiu.

Rolei para longe e pude ver Kron e os outros fugindo. Pelo menos eu seria útil. Encarei aquele olhar arrogante de baixo para cima. Ela se aproximou lentamente, arrastando a cauda na terra, até que, subitamente, olhou para cima e se encolheu, cobrindo a cabeça com as patas.

Quase ri até entender o motivo desse comportamento súbito: uma nuvem de flechas cobria todo o céu. Isso era loucura; acertaria todos, amigos e inimigos.

As flechas assoviaram na descida. Tentei buscar qualquer coisa que pudesse usar para bloquear, mas nem mesmo minha armadura poderia me salvar daquela quantidade. Tive um último plano louco: corri para o Pesadelo e o usei como cobertura, cobrindo o máximo das minhas partes expostas com meus braços e meu machado.

A chuva de flechas caiu sem piedade. Não eram do tipo convencional; pareciam feitas de um tipo de metal brilhante. Uma atravessou minha perna, que demorou tanto para se recuperar. Busquei pelos outros em meio ao caos, enquanto gritos enchiam a noite.

Senti o sangue quente deixar meu corpo. Tentei ver Kron e os outros para verificar se estavam feridos, mas preferia não ter visto. Bale erguia o corpo de Pipe, que ainda parecia respirar, usando-o como escudo contra as flechas. As costas do pobre humano sangravam sem parar, sujando todo o chão cinza.

O rosto de Kron estava estático, em uma expressão de medo. Nenhuma flecha o atingiu. Bale estava coberto de sangue, parte era seu e parte de Pipe. Isso foi brutal. Senti um arrepio quando fui jogado para longe da aberração que se levantava.

Flechas caíam de suas costas e a besta rugiu de raiva. Rastejei para longe, assustado. A aberração me golpeou com as patas, mais sangue começou a escorrer. Com movimentos lentos, ela colocou suas garras no meu rosto, apertando-as lentamente contra mim. Minha força havia acabado. Fechei meus olhos, esperando pelo final.

Até que um urro poderoso me fez abrir os olhos. A aberração correu e saltou para longe. Olhei para trás e vi diversos soldados contra-atacando. Usavam armaduras brancas e impecáveis. Esses, sim, eram nossos reforços.

(...)

Tudo doía. A escuridão tomou conta de tudo. Eu morri? Se eu tiver vindo parar no limbo, acho que terei muito tempo para honrar nossa lua. O que será que os espíritos fazem para se divertir?

— Ele melhorou? — Uma voz estranha ressoou.
— Os médicos falaram que sim — Havia algo familiar nessa voz.
— Mr. Kron não vai partir? Já poderia estar na fortaleza de Crandall — Disse uma voz com um sotaque estranho.
— Prefiro esperar ele acordar; não suporto viajar sozinho — Reconheci, essa era a voz de Kron!
— Mr. Renshu deveria ser grato por um amigo tão leal.

Abri meus olhos com dificuldade, me acostumando à luz que entrava na tenda. Várias camas estavam dispostas lado a lado e, próximo à luz, duas figuras conversavam. Uma era Kron, com sua pele escura como a noite, revestido por sua capa cheia de gramas; seria impossível não notar.

Já o outro usava um chapéu estranho de três pontas, um pano preto cobria sua boca e usava um terno cinza todo engomadinho, ornamentado com botões prateados e uma gravata borboleta. O tipo de pessoa que eu não pensaria duas vezes antes de matar.

— Ei... tem algo pra comer? — perguntei com a boca seca.
— Kenshu! — Kron correu para me abraçar.
— Garoto, eu ainda tô todo dolorido — recebi o abraço de Kron, mesmo sentindo dor a cada aperto.
— Que felicidade, Mr. Renshu, estava precisando falar com você — a pessoa estranha se aproximou e, quando saiu da luz, pude ver que era um humano.
— Quem é você? — Pensei em forçar um sorriso, mas ele não merecia.
— Croes, e represento a Ordem do Sol Sagrado — o homem retirou um pingente com um sol e estendeu a mão. — Parabéns, você e Mr. Kron foram aprovados no teste.
— Não quero essa porcaria — Kron abaixou a cabeça, meu sangue ferveu enquanto olhava para essa cara esnobe.
— Entendo, imaginávamos que alguém que passou por tudo isso iria relutar, mas gostaria de lembrar da sua maldição.
— Como...
— Mr. Renshu ficou aqui por muito tempo, examinado por nossos médicos. Seu tempo está acabando.
— E como vocês poderiam me ajudar?
— Bem, sou um dos mentores que busca criar um remédio contra os efeitos da maldição. Com toda a infraestrutura da Ordem, junto às suas... habilidades, podemos ter sucesso — sua expressão estava sendo escondida por um pano, mas senti um olhar predatório.
— Eu... eu... aceito, mas não sou seu escravo — cocei minhas cicatrizes e me levantei.
— Que legal, Kenshu! Agora somos membros da Ordem! — Kron abriu um grande sorriso brilhante.
— Perfeito, irei falar com seus amigos sobre sua decisão.
— Espera, eu quero fazer algumas perguntas.
— Claro, mas seja breve.
— O que causou todo esse caos?
— Alguns Pesadelos muito mais poderosos foram colocados na área do teste por alguém desconhecido.
— O que acontece agora?
— Você irá para o centro de treinamento da Ordem, a fortaleza de Crandall. Lá poderá melhorar suas habilidades e aceitar missões para exterminar Pesadelos.
— Alguém viu um Pesadelo que falava? Ele também usava um suéter laranja.
— Sim, logo você irá conhecê-lo — senti seu sorriso predatório sob a máscara.
— Quero 25 peças de ouro por tudo que passei — o humano me encarou e logo retirou um saco de moedas de seu bolso.
— Aqui tem 52 peças. Mais alguma coisa? — Fiquei branco e paralisado.
— Não... — Deveria ter pedido mais.
— Adeus, Mr. Renshu — o humano estranho saiu da tenda. Segurei as moedas de ouro com força, cerrei os dentes, encarei a luz e me preparei para sair.

 



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