Volume 1

Capítulo 15: Uma última vista

O clima esfriava rapidamente. Bale correu o máximo que suas pernas aguentaram antes de ceder. Nuvens de poeira já eram visíveis, movendo-se na direção em que Sasha corria. Seja qual fosse o deus dela, eu esperava que ela tivesse fé.

O chão começou a tremer à medida que a horda se aproximava. A sede de sangue daquelas aberrações podia ser sentida por todos os lados, aumentando a pressão em todo o lugar. As aberrações se aproximaram tanto que seus rostos tornaram-se visíveis. E não se moviam apenas em horda; eram organizados, formando uma lua crescente.

Forcei minha visão, buscando algo que parecesse um líder. Vários Pesadelos bestiais trotavam com todo o vigor. Alguns humanoides montavam em outras aberrações, mas havia um diferente: chifres vermelhos brotavam dos olhos, corpo escuro e algo que parecia ser um livro em sua cintura.

Conseguimos deixar os Pesadelos para trás. Nem mesmo sua nuvem de fumaça era mais visível; provavelmente desapareceram na floresta. Esperava que a menina fosse boa em se esconder. Perdi a conta de quanto tempo estávamos naquele deserto cinza e sem graça. Mesmo no escuro, tudo era cinza para nós, elfos. Aquele lugar, porém, era diferente. O cinza era monótono e constante, cansativo e difícil de enxergar como o sol. Talvez eu estivesse começando a enlouquecer.

Atravessamos outra colina e, em vez de mais mares cinzentos e sem graça, havia algo diferente no horizonte. Demorei a notar, mas era uma tenda iluminada por tênues luzes. Cerrei os olhos, tentando identificar armadilhas, mas Bale foi mais rápido. Deslizando pela duna de terra cinza, senti a dificuldade em me equilibrar com nosso peso extra. Mesmo assim, ele se manteve firme, postura reta, expressão rígida e orgulhosa. Tal firmeza só se perdia quando ele encarava Kron imóvel.

Bale se aproximou a passos apressados, confiante de que a camuflagem durasse tempo suficiente. Próximos da tenda, pude enxergar duas figuras iluminadas por pequenas esferas amarelas brilhantes. Uma delas tinha a pele escura. Senti uma pontada no peito e a vontade de correr apareceu em um piscar de olhos, mas ele não era o inimigo, ainda. Sondando melhor pela escuridão da noite, percebi que sua pele era cor de ferrugem, com cabelos curtos e uma estatura diminuta coberta por uma barba suja e preta. Era um anão corpulento, apoiado em um machado quase do seu tamanho.

Ao seu lado, uma silhueta torta e trêmula. Um humano, provavelmente de cabelos loiros. Rugas profundas marcavam sua pele como um campo de batalha. O velho tremia de frio e amaldiçoava em uma língua estranha. Não havia armas em sua cintura, mas havia um símbolo claro como o sol: uma cruz vermelha.

— Curandeiro, ajude — disse, quebrando nossa furtividade.

— Haha, boa piada, Leonel — o anão ergueu lentamente seu machado.

— Q-q-quem quer que seja, a-a-apareça! — o velho se pôs atrás do anão.

— Somos amigos, apenas escondidos com magia — falei, esperando que não fossem do tipo que mata primeiro.

— Q-q-que tipo de “amigos” se escondem? — perguntou a figura alta.

— Do tipo que passaram por uma horda de Pesadelos — ambos se olharam.

— Certo, saiam da magia e nos olhem cara a cara — o anão pôs-se vigilante, buscando aos arredores, mas sem perder a atenção de onde vinha nossa voz.

Bale colocou Kron no chão com cuidado. As runas verdes piscavam e ameaçavam apagar. Esperava que ele não tivesse se forçado demais. Quando foi minha vez, ele apenas me deixou escorregar para o chão. Ainda escondido, caí de cara na terra cinza. Me apoiei e saímos da bolha de camuflagem. O anão coçou a barba. Fazia tempo desde que lidei com esse tipo. Encarei minhas dog-tags e observei o velho.

O homem alto apenas suspirou ao me olhar e se levantou, revelando uma corcunda torta. Ele enxugou a poeira de uma roupa fina demais para um soldado, encaixou um monóculo no olho esquerdo e olhou para minhas pernas de cima, com as mãos cruzadas nas costas. Alguns minutos de silêncio insuportável passaram até ele falar. Seus dentes tremiam, como se tivesse visto a própria morte.

— M-m-magia de amador — Bale rosnou baixinho. — Usou magia demais, a dor deve ter sido excruciante.
— Nada de mais — ainda podia sentir meus ossos se mexerem.
— Mas, pelo lado bom, os ossos estão quase todos no lugar — o homem entoou um cântico: — langsam reparieren, was einmal fertig war [restauração menor].
— Nosso amigo desmaiou pelo uso de magia. Está bem ali — apontei para trás.

O velho caminhou até a bolha de camuflagem. Quando vista de perto, era facilmente visível, sua forma oscilava constantemente como um rio agitado. O velho se ergueu, proporcionando um estalo na coluna. Seu rosto ficou pálido e os tremores cessaram.

— Isso é mesmo um humano? — ele puxou sua gola e engoliu seco.
— Nosso amigo elfo tem uma cor diferente, mas qual é o estado dele?
— P-p-perda lasciva de magia — o velho retirou seu monóculo e o limpou.
— Agora que acabamos com as preliminares, vamos ao importante — o anão nos olhou com um largo sorriso no rosto.

Por minutos arrastados, contei nossa história. Bale desmaiou no chão, próximo a Kron, que não dava sinal de acordar. Expliquei nossos motivos para estarmos próximos a essa floresta e o que encontramos.

— Então vocês foram outras vítimas do teste? — o anão me encarou com espanto, retirando uma insígnia da ordem.
— Qual teste? — soquei o cascalho cinza.
— Preparávamos nosso teste de admissão aqui, mas, neste ano, tudo deu errado.
— Que grande piada. Espero que tenham um bom pedido de desculpas pelas vidas tiradas — cerrei os punhos, esperando que os velhos estivessem bem.
— Mas esse seu machado… onde conseguiu?
— Como pode saber que não é meu? — passei meus dedos por seu fio.
— A escritura anã no cabo significa presente de casamento, algo dado somente a amigos dos anões.
— Peguei de um capitão morto, Kruger, se não me engano.
— Tá brincando? O infame capitão Kruger? Ele se aposentou há muito tempo. Ei, não quer trocar de arma? Posso até comprar esse seu machado, o que me diz? — Então era isso que Kron sentia.
— Não está à venda. Me diga, o que faremos agora?
— Vamos esperar nosso tenente voltar da ronda e voltaremos ao acampamento.
— Sabe se alguém já passou por aqui? Tipo uns idosos, umas crianças e talvez um elfo.
— Vocês são os únicos — senti-me mal, mas tinha certeza de que Erwan iria protegê-los.
— Sou Dain, e o esquisito do meu lado é o Pipe — o humano alto não pareceu ligar.
— Kenshu… Bale e Kron — comecei a olhar as estrelas.

Fiquei encarando as estrelas, um tempo para respirar, e tudo isso logo iria acabar. Esperava que Kron e Sasha pudessem se encontrar em meio a tudo isso. Teria que ajudar enquanto isso, seria irresponsável não o fazer.

— Como foi sobreviver lá dentro? — as palavras do anão secaram o silêncio.
— Intenso, teve momentos em que achei que iria morrer.
— Pretende se juntar à ordem? Os sobreviventes são sempre bem-vindos — o anão sorriu, olhando para o machado. — Quem sabe podemos apostar algumas coisas.
— Talvez…
— A-a-a pele do seu amigo — Pipe gaguejou ao longe.
— O que tem ele?
— Achei única.
— Será que a ordem pode recusar ele por isso?
— Justamente o contrário, deveria tomar cuidado com os lagartos da ordem.
— Já ouvi falar.
— S-s-saiba que não são simples boatos — o homem alto abriu um cantil e tomou um longo gole. — Kirishima é um dos quais deve evitar.
— Esse nome, não reconheço a origem — estendi minha mão, pedindo um gole.
— N-n-ninguém sabe, nunca o viram por baixo da máscara — relutante, ele me entregou a bebida.
— Que tipo ele é? — tomei um longo gole e o arrependimento bateu.
— Dizem que desenvolveu uma cura para a maldição — o velho disse, pegando o cantil e bebendo tudo em um só movimento. — M-m-mas a mantém longe até dos nobres.
— Talvez valha a pena o perigo de conhecê-lo — lambi os lábios, agradecendo pela cerveja.

O silêncio foi quebrado quando dois humanos apareceram. Um homem ruivo, coberto por um líquido escuro, possuía um olhar calmo e nobre. Ele segurava uma espada longa e brilhante, que refletia a luz das esferas amarelas. Seus olhos, tão vermelhos quanto seu cabelo, varriam o acampamento…

O outro homem usava roupas de couro, sujas de mais líquido escuro e terra. Nas costas, carregava um arco longo e tinha duas adagas amarradas nas coxas. Minha mão desceu para o machado, mas, pela forma como o anão e o homem alto os olhavam, esses ainda não eram inimigos.

— Perdoem minha chegada abrupta — falou o ruivo, diminuindo a tensão.
— Leonel! Arthur! O que aconteceu? — Impaciente, Dain bateu seu machado no chão.
— Encontramos uma peleja difícil — o homem ruivo limpou o líquido escuro de suas vestes. — E nossos convidados? Foram bem tratados? Não é todo dia que…
— Poderia ir direto ao assunto? — falei ansioso. Então era assim que Kron me via?
— Que bárbaro. Pois bem, acabamos de retornar da floresta e encontramos os grupos 5 e 6 destruídos.
— Pesadelos…
— Nada além deles poderia desaparecer com tantos homens. É só deixar o metal.
— Nós avisamos — Bale disse, estalando o corpo.
— Vocês possuem reforços? — perguntei, encarando Kron.
— Temos um acampamento ao norte — o anão bateu o machado no chão.
— Então, o que faremos, tenente? — perguntei, cruzando os braços. — Uma horda ainda maior está vindo e não vai sobrar nada.
— Vamos recuar até nosso acampamento e espero que vocês possam nos auxiliar nisso.

Em poucos minutos, os soldados nos colocaram em posição. Estiquei minhas pernas e caminhei sozinho. Nos agrupamos com Pipe carregando Kron junto ao arqueiro no centro, Bale na retaguarda, eu e o ruivo nas pontas e o anão na frente. Uma formação bem sólida feita em pouco tempo.

Nossa marcha começou. Quase não pude acompanhar o ritmo intenso, mas algo estava errado. Um barulho suave no meio da brisa me fez suar frio. Olhei rapidamente para cima; uma pequena sombra voava camuflada na noite cinza.

Antes que eu pudesse avisar, algo preencheu o horizonte. Um turbilhão de chamas engolia uma fortaleza de pedras escuras. Nos campos de terra cinza, diversas figuras escuras e grotescas rasgavam soldados com um simples ataque.

Senti o ambiente ser invadido por uma sensação familiar. O homem de cabelos ruivos cerrou os dentes e caminhou impecável e sem medo para a batalha. Dain o puxou pelo braço e, entre xingamentos, um som de ar sendo cortado foi seguido por um grito abafado.

Arthur engasgava com o próprio sangue na garganta, uma flecha negra cheia de espinhos a atravessava. Virei-me com o machado em mãos e vi uma figura familiar em nossas costas. Um Pesadelo com olhos verdes brilhantes, um arco que mais parecia uma arma de cerco na mão direita. Quase tão alto quanto árvores, revestido por placas ósseas e espinhos longos.

Ao seu lado, quatro lobos negros começavam a nos cercar. Olhei para cima, procurando o corvo; ele continuava pairando sobre nossas cabeças. Isso significava que o pior… não era tempo de pensar nisso. Expandi meu sonho e endireitei minha postura.

Dain saltou sobre um dos lobos da ponta, arrancando sua cabeça com um impacto brutal. Outro Pesadelo correu, babando, e saltou mirando o pescoço de Dain, mas com um soco o anão jogou a aberração no chão.

Uma flecha do tamanho de um braço voou mirando a cabeça do anão, mas Leonel surgiu como uma sombra vermelha, defletindo a flecha com um golpe de espada. Dain segurou seu machado com as duas mãos e o cravou profundamente no lobo que ainda se levantava. O pesadelo arqueiro deu um passo pesado para trás e apontou para Kron e Pipe.

Bale retirou uma adaga do arqueiro. O médico estranho estava ajoelhado, pálido e trêmulo ao lado de seu companheiro caído. Sem piedade, os lobos avançaram. Um dos lobos saltou em Bale, que recebeu a investida de frente, parando a mandíbula da aberração com sua espada. Com a adaga em mãos, apunhalou a criatura diversas vezes. Uma troca de rugidos bestiais começou entre os dois.

Corri, preparando minhas reservas de sonho, mas algo me atacou no ponto cego, silencioso e veloz. Duas garras seguraram meus braços e me levantaram. Impotente, assisti enquanto o lobo pulava em Kron, ainda desacordado.



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