Volume 1
Capitulo 14: terra de ninguem
Uma esfera de energia verde preencheu nossos arredores; tudo fora dela se distorcia como uma cachoeira. Aquela magia! Como? Kron, você é incrível! Sangue jorrava da boca de Kron, e runas verdes iluminavam seu rosto.
— Kron… — A carranca de Bale se quebrou, dando lugar a uma expressão assustada.
— Vamos, você carrega ele — cerrei meus punhos.
— Ele não está em condições! — O rosto de Sasha se fechou em raiva.
— Se quiser desperdiçar a oportunidade que Kron nos deu e o sonho gasto…
— Tá tudo bem... — ele falou com sua voz rouca.
— Mas...
Uma marcha de pesadelos encheu a floresta de sons de murmúrios distorcidos. A pequena halfling cerrou os punhos, e a discussão foi encerrada. Minha visão transformou a noite em penumbra, e os pesadelos foram vistos à distância. Eles usavam armaduras ósseas e portavam espadas, farejando o ar, buscando algo.
Bale segurou Kron em seus braços, e eu me arrastei com dificuldade. A bolha de camuflagem se moveu com Kron. Contornamos a horda, e nenhum pesadelo sequer nos olhou. Contudo, no centro dela havia um arqueiro, o mesmo que vimos anteriormente, alto e nojento, apenas observando.
Após alguns minutos de um arrastar lento, as aberrações sumiram da vista. Respirei freneticamente, tentando me recompor.
— Como ele está? — Sasha passou a mão pelos cabelos, loucamente.
— Ele vai ficar bem — Bale falou com seu rosto rígido de sempre.
— Continue guiando o caminho. Não sabemos quanto tempo a magia vai durar — falei ofegante, enquanto minhas pernas latejavam de dor.
— Monte nas minhas costas — Bale disse, olhando para mim.
— O quê?
— Não vou repetir.
Me ajeitei nas duras costas de Bale. Pude sentir sua aura fria através do grosso sobretudo vermelho. Mantive-me em silêncio enquanto Sasha continuava a nos guiar.
Expandi minha aura, buscando um pouco do calor confortável. Senti-me melhor, porém, à medida que seguíamos, minha tensão só aumentava. Ser carregado me tornava ainda mais inútil ali.
A paisagem se transformava lentamente. As árvores foram ficando cada vez mais espaçadas, dando lugar a uma paisagem cheia de colinas, onde nada crescia e a terra era cinza. Nada podia ser visto no horizonte.
Finalmente, pude suspirar aliviado. Sentia a fraqueza tomando conta de mim. A fome e a fadiga se juntavam, mas me forcei a não desmaiar. Sem perder tempo, começamos a atravessar aquele mar de morte cinza; nem mesmo insetos rastejavam por aquele chão podre.
Um barulho de tosse quase me fez cair para trás. Kron acordou cuspindo um pouco de sangue, com os olhos arregalados e brilhantes. As runas em seu rosto diminuíram a intensidade, mas ainda brilhavam.
— Você está bem? — Eu e Sasha perguntamos em choque.
— Nunca mais faça isso — Bale rosnou e logo após sorriu de canto.
— Conseguimos? — Kron sorriu, respirando com dificuldade.
— Vamos descansar — falei, olhando para Kron e cerrando os punhos.
— Não temos tempo — Kron falou com uma voz rouca.
Andamos agachados, respirando lentamente, nos esforçando para não sermos identificados. Mantive minhas orelhas e olhos bem abertos. Com dificuldade, Kron mantinha seus olhos abertos, e, logo à frente, Bale mantinha sua postura rígida. Contudo, ele havia ganhado um novo tom, algo bestial e protetor.
Nos escondemos em um grande tronco oco. Mesmo batendo a cabeça, respirei como se um peso fosse removido do meu peito. Bale colocou Kron no chão e retirou um cantil do bolso; esperava que fosse apenas água.
As runas se apagaram, sumindo na pele escura. Sentei-me, segurando meu machado e sentindo o sono me envolver. Bale se levantou e se esgueirou para fora dos arbustos. Senti vontade de perguntar o que ele faria, mas me contive.
— Eu não sabia que podia usar essa magia — comentei.
— Nem... eu! — Kron tentou responder, mas sua voz estava fraca.
— Foi incrivelmente apressado. Você se desgastou tanto contra aquele maldito corvo — a pequena halfling deitou-se e xingou baixinho.
— Estou ótimo... — a tosse o interrompeu — Ainda tô cheio de energia!
— Só vamos descansar um pouco, por favor — deitei-me e não resisti à vontade de fechar os olhos.
(...)
Estava caindo, adentrando cada vez mais em um mar de escuridão, descendo para o fim do infinito. Não sentia meu corpo, quase como se nada existisse. Enquanto era rodeado por um mar de nada, não lembrava meu nome. Quem sou eu? Como cheguei aqui? Por quê? Por quê? Por quê?
Um rosto estranho despertou em mim um ódio profundo. Uma chave para o desconhecido abriu a porta para um pesadelo sem fim do qual jamais poderia fugir. Porém, finalmente, pude encontrar pessoas interessantes, do tipo raro. Quais eram seus nomes? Kodrak e Sekushi? Não, esses já se foram.
Precisava lembrar. Um deles era infantil e irritante, mas me perdoou mesmo após eu ser extremamente rude. Sei que ele tinha um bom coração.
O outro? Era alguém com uma grande carranca, quase tinha medo ao lembrar dele. Me repreendeu quando errei e tentou esquecer desses erros, mas tive que jogar isso no lixo.
Uma junção de luzes roxas e vermelhas fez com que eu tivesse esperança em algo, mesmo não sabendo ao certo. Kron, Bale e Sasha, o que o futuro nos aguarda?
(...)
Acordei com areia nos olhos, ainda segurava meu machado com firmeza. Se ainda conseguia me mexer, devia estar vivo. Uma conversa ao fundo chamou minha atenção, e minha audição se focou pouco a pouco.
— Que magia você usou contra o corvo? — ouvi Sasha perguntar.
— Foi coisa básica. Golau é a palavra de poder e não precisa de sinais de mão ou componentes — respondeu Kron.
— Sinais?
— Espera! Você não sabe o que é isso? Como usou suas últimas magias? Como as aprendeu? Como…
— Ahhh! Pare, por favor! — Uma leve fumaça subiu da cabeça de Kron.
— Então… não tem mais frutinhas? — a pequena falou envergonhada.
— Mais? Você comeu todas.
— Desculpe…
— Não precisa ficar triste. Continue falando sobre o que te motivou a vir à ordem.
— Bem… nossa vila foi atacada por pesadelos, seria nosso fim — sua voz fraquejou e ela engoliu seco — Mas um caçador chamado Hatto e seu grupo estavam por perto.
— E depois? — seus grandes olhos brilharam.
— Muitas pessoas decidiram se tornar caçadores. Eu e alguns amigos formamos um grupo.
— Como eles eram?
— Corajosos, fortes e melhores do que eu jamais poderia sonhar em ser — lágrimas rolaram de seus olhos.
— Ah! Desculpe, não quis trazer essas lembranças — Kron tateou seus bolsos e retirou um pedaço de biscoito e farelo — Aqui, eu estava guardando para mais tarde.
— Não posso aceitar, eu devo controlar meu estômago, assim como em meu treinamento — Sasha falou, mastigando o biscoito e os farelos.
— Mas você acabou de comer tudo.
— Falhei… o que Bilbo pensaria? — ela continuava a mastigar com uma expressão triste.
— Quem é esse Bilbo?
— Apenas o maior herói dos halflings, o maior aventureiro de todos os tempos, nas histórias pelo menos.
— Que legal! Me conta essas histórias?
— Quando tivermos mais tempo, claro — ela limpou o farelo e lambeu os beiços — Mas eu gostaria de saber mais dos seus motivos para vir aqui.
— Bem… estou buscando uma amiga da minha mãe — Kron se encolheu no chão, abraçando suas pernas.
— Imagino que ela seja da Ordem do Sol, mas por que precisa encontrá-la? — perguntei.
— Foi o último pedido da minha mãe antes de ela desaparecer… — A expressão de Kron ficou mais carregada.
— Sinto muito… Seus amigos sabem sobre isso?
— Agora que você é o Kenshu, ouviram sim. — Um arrepio percorreu meu corpo.
— Mas ele não estava dormindo? — Sasha questionou.
— Desculpe, acordei faz uns minutos. Não queria interromper nem escutar a conversa — expliquei.
— Meio que fez os dois — ela respondeu.
— Aproveitando, quem seria essa amiga? Posso ajudar a procurar, caso queira minha ajuda.
— Assim que sairmos desse inferno, conte com meus contatos.
— Meio que… eu esqueci o nome dela — Kron confessou, nos fazendo arregalar os olhos.
— Teremos um longo trabalho — suspirei.
— Estão prontos? — Bale surgiu junto a uma brisa fria.
— Ah! — Sasha e eu gritamos baixinho.
— Pelo amor de Bilbo… — a pequena xingou com palavras estranhas.
— Sem tempo a perder. — Ele me levantou e eu me ajeitei em suas costas.
(...)
Passei por muitas coisas horríveis durante as guerras, mas ser carregado nas costas pela minha própria invalidez me fez desejar uma morte rápida. O terreno havia mudado rapidamente. Apenas algumas árvores secas e colinas eram o que poderíamos usar para nos esconder. O suave barulho de passos na grama virou um áspero barulho de cascalho e areia.
Me senti exposto; fazia anos que não sentia a falta de um ambiente florestal. O único ponto positivo era que, se nós estávamos expostos, o inimigo também estava. Uma pontada de desespero cutucou minha mente à medida que a floresta sumia em nossas costas. Meu desconforto ficou mais forte. Isso não foi fácil, mas eu esperava mais.
Paramos quando Kron congelou. Ele tremeu e lentamente olhou para cima. Imediatamente, olhei também. O céu estava limpo, ainda obscurecido pela noite tão fria que me fazia tremer. Precisei apertar minha visão para notar um ponto escuro se movendo no céu. Eles nos acharam.
— Por que ainda não atacaram? — Kron falou com uma voz cansada.
— Estamos sendo cercados ou no mínimo indo para uma armadilha — tentei expandir meu sonho, buscando conforto, mas a noite fria o esmagou.
— Temos que sair daqui.
— Para onde? Estamos na mira dos Pesadelos e sem recursos! — Engoli seco e meu coração começou a martelar contra meu peito.
— Quer sentar e morrer? — Kenshu.
— Melhor que fugir, ao menos lutarei com honra — Bale.
— Kron… Você consegue usar magia?
— Acho que não — Kron se contorceu.
— Então vamos analisar a situação! Calem a boca vocês dois — tudo ficou em silêncio — Bale, você e eu vamos descobrir de onde esses pesadelos vêm ou onde estão. Kron e Kenshu ficam aqui.
Antes que suas ordens fossem questionadas, a pequena saiu em disparada. Seguindo seu exemplo, Bale rosnou e me jogou no chão. Kron tentou questionar, mas os dois já estavam longe. Poucos minutos se passaram, e Kron quase abriu um buraco no chão de tanto andar de um lado para o outro. Cerrei meus punhos, segurando meu machado. Todos os meus planos malucos envolviam um sacrifício heroico e patético, e nenhuma das opções me agradava.
O barulho de cascalho sendo pisoteado vigorosamente foi ouvido. Me preparei para o ataque, porém, era apenas Bale, suado e respirando pesadamente. Logo depois, Sasha surgiu, encharcando o chão com suor.
— Tem uma nuvem de poeira se aproximando à nossa esquerda — Sasha falou ofegante.
— Outra à direita — Bale adicionou.
— Então só nos resta voltar ou continuar — falei, mordendo as unhas.
— De qualquer forma, eles podem nos alcançar.
— Então precisamos decidir rápido!
— Outro plano para quebrar suas pernas?
— Talvez...
— Ei, Kron, você não consegue mesmo usar magia?
— Acho que não... mal consigo sentir fluindo de mim.
— Nem se for em uma área menor e por menos tempo?
— O que você está querendo...
— Só me responda, por favor.
— Talvez, mas...
— Perfeito! Vocês dois, já tenho um plano — fiquei em silêncio, esperando que ele explicasse.
— Kron vai nos camuflar até que a horda passe.
— Não — Bale rosnou como um animal faminto. — Ele já deve estar no limite após a última magia. Essa pode ser fatal! — lembrei, pensando nos limites que já ultrapassamos.
— Vai ser menor e por menos tempo.
— Deveríamos nos dividir assim… — Kron tentou argumentar, mas foi interrompido.
— Estamos sendo observados pelo corvo. Se ele continuar, vai nos achar — Sasha apertou os punhos. — Eu serei a isca. Irei para a floresta enquanto vocês somem dessa terra de ninguém.
— Vocês não precisam fazer isso! — Bale rosnou e cerrou os punhos.
— Nos encontraremos outra vez. — Sasha correu, com lágrimas misturadas ao suor, sumindo na noite.
(...)
O maldito corvo continuava planando sobre nossas cabeças. O amaldiçoei enquanto nos aproximávamos. Bale arrastou Kron, com uma expressão rígida como pedra. Quando finalmente estávamos juntos, Kron cantou as palavras no idioma élfico.
— Verschmelzen Sie mit der Natur [Camuflagem]. — Sangue escorreu por seus olhos e ele desmaiou, enquanto a esfera translúcida tomava forma e nos envolvia.
— Ele…
— Apenas desmaiou — Bale murmurou baixinho.
Sem perder tempo, Bale pegou Kron em seus braços e eu me ajeitei em suas costas. Forcei meus olhos para enxergar. O corvo parecia confuso e planou para onde Sasha correu. Eu gostaria de esperar o melhor, mas nunca fui otimista.
Esse silêncio desgraçado ameaçou me deixar louco. Não aguentava andar sem rumo, perdido nesse inferno, e agora, para piorar, estava sendo carregado como um maldito inválido. Duas pessoas muito melhores que eu estavam correndo riscos maiores. Eu preciso garantir que isso nunca mais aconteça.
A cada passo, minha mente revisitava a última visão de Sasha desaparecendo na escuridão. Eu sabia que tínhamos que continuar, mas a culpa e o medo pesavam. Bale, apesar de sua expressão endurecida, também mostrava sinais de fadiga. Cada movimento seu era um lembrete de nossa fragilidade.
— Precisamos encontrar um lugar seguro — murmurei, tentando manter a voz firme.
— Vamos continuar — respondeu Bale, sem olhar para trás.
Minhas mãos apertaram o machado. Se algo acontecesse, eu queria estar preparado, mesmo que mal pudesse me mover. Precisávamos sobreviver, por nós mesmos e por Sasha. Era a única coisa que importava agora.