Volume 1

Capitulo 13: Olhos famintos

Meus olhos faiscavam, e a tensão ameaçava explodir dentro de mim. Com uma quebra de silêncio, o Corvo mergulhou no ar, mirando em Kron com seu bico afiado. Tentei me afastar da parede, mas minhas pernas tremeram e desabaram. Bale prontamente se colocou entre eles, defendendo o bico com sua espada. O som de duas espadas pesadas se chocando alimentou a noite. Suas veias quase saltavam para fora da testa enquanto era empurrado gradativamente contra a parede.

Joguei-me desajeitadamente, mal conseguindo ficar de pé. Cerrei os dentes e ignorei a dor. Meu golpe seria certeiro na asa dessa aberração, contudo, o lugar apenas se separou em líquido escuro. Caí no chão, sujando-me de terra. Por sorte, ninguém viu essa cena patética. Olhei para cima, e o Pesadelo se lançou para o céu novamente. Bale tentou aproveitar a oportunidade desferindo um golpe, mas o mesmo aconteceu: seu corpo se dividiu em líquido escuro, anulando o ataque.

A noite fria nos engolia com sua escuridão. O Pesadelo desapareceu em meio ao limbo. Meus olhos correram pela vasta escuridão, tentando achar um mínimo resquício de sua presença, até que ele mesmo se revelou. Seu bater de asas e um forte zunido prenunciaram sua chegada. Sem reação, Bale recebeu um rasante tentando defender Kron; seu braço sangrava, colorindo o chão.

Maldição! Não podia lutar assim, mas... Uma ideia maluca se formou em minha mente; talvez eu servisse como isca. Comecei a me arrastar para longe, raspando meus braços nas pedras afiadas. Senti o sangue quente pingando de algum ferimento, mas ignorei.

— Kron! Prepare sua magia! — O Corvo desapareceu na escuridão.
— Pra onde esse maldito foi? — Meus olhos corriam de um lado para o outro.

Um zunido seguido por um corte certeiro em minha perna revelou o Pesadelo. Tudo em meu corpo reagiu, golpeando com meu machado; porém, ele foi mais rápido. Caí com a perna sangrando, e logo ele desapareceu no céu.

Bale fechou os olhos e respirou fundo, como se rezar naquele momento fosse ajudar. O corvo surgiu seguido pelo vento, suas garras mirando em meu pescoço. Contudo, Bale arremessou sua espada, forçando-os a se dividirem em grupos menores. Mesmo caído, girei meu machado, fazendo com que alguns virassem uma poça de líquido preto.

O bando sumiu no céu, reunindo-se novamente em outro lugar na escuridão.

— Merda, como… — A voz fria de Bale me congelou.
— Pare de lutar como humano — Ele recolheu sua espada e fechou novamente os olhos.
— O que eu faço? — Kron perguntou, posicionando-se entre nós.
— Jogue sua magia ao redor de mim, já! — Comecei a me arrastar para longe.

Fechei meus olhos, pude sentir o sangue escorrendo e a leve brisa soprando. O mais importante era o súbito arranque de vento vindo de cima. Berrei para Kron e fui envolvido por vinhas que me protegeram como uma esfera. Logo após, garras se fincaram nas duras vinhas.

Grasnados de confusão podiam ser ouvidos enquanto suas unhas se mexiam loucamente. Antes que eu precisasse falar, senti o impacto de uma espada acertando o Pesadelo e, logo após, vários barulhos de algo caindo. Berrei para Kron desfazer a magia assim que as unhas saíram.

Uma poça de líquido escuro estava no chão; a vitória parecia clara, até que o corvo explodiu em um enxame de minúsculos corvos. Protegi meus olhos por instinto, e eles passaram rasgando por nós. Tudo doía para mexer, e sangue pingava dos meus membros.

Parecia um enxame infinito de escuridão, até que uma explosão de luz encheu meus olhos. Tudo foi lentamente voltando ao normal. Kron e Bale se encontravam tão confusos quanto eu. Pisquei várias vezes, tentando enxergar direito.

— Boa, Kron. — Sorri sem jeito.
— Não fui eu… — Um barulho de rochas caindo junto a uma silhueta confusa acima nos chamou a atenção.
— Mae'r ysbrydion yn dawnsio [bom espírito] — Antes que pudéssemos reagir, Kron invocou sua magia.

Aliviados e com o fôlego renovado, subimos o caminho montanhoso. Não havia do que reclamar; a vista seria linda se estivéssemos em outras circunstâncias. Embora a trilha estivesse sugando nosso vigor, pude sentir a energia da magia me renovando lentamente, mesmo que Kron estivesse mais ofegante e atrás do que de costume.

Bale ainda se mantinha em alerta, mesmo me auxiliando a andar. Mantivemos nossa posição, pisando lentamente no chão de cascalho. Era bom poder ouvir outra coisa além da grama, ao mesmo tempo que era estranho quebrar o padrão.

(…)

Esperávamos ver qualquer coisa, talvez outro Pesadelo supostamente amigável ou um soldado aliado. Porém, encontramos algo melhor: uma pequena halfling, vestida em trapos escuros, apenas com uma mecha de cabelo loiro e dois olhos azuis visíveis. A pequena exibia um olhar triunfante, jogando e pegando uma pequena pedra. No entanto, sua pose confiante deu lugar ao medo; suas pernas bambeavam e seus dentes batiam freneticamente.

— P-p-pesadelos! — Seus olhos se fixaram em Kron.

Antes que pudéssemos dizer qualquer coisa, a pequena gritou e desmaiou. Kron olhava para baixo; quase pude dizer que ele estava corado de vergonha. Sentamo-nos próximos à nossa pequena salvadora; havia vários papéis de ração e carne seca jogados por ali. Quem sabe fosse uma soldada.

Nenhum de nós teve interesse em desarmá-la ou procurar algo útil em seu corpo. Assim, na minha humilde posição, permaneci em silêncio, apoiado em uma pedra, aguardando que ela acordasse.

— Como você está se sentindo? — Kron me perguntou com um sorriso tímido no rosto.
— Agora que a tensão da batalha passou, continua doendo muito. — Movi minhas pernas e pude sentir meus ossos.
— Quer que eu tente curar de novo?
— Não! Obrigado, mas vamos deixar o tempo agir.
— Certo…
— Isso é comum? — perguntei sem jeito.
— Às vezes… dizem que sou um mau presságio.
— Humanos… Eu queria poder fazê-los sofrer apenas a metade, só para entenderem.
— Nem sempre são humanos. Elfos, anões e draconatos também não parecem gostar da minha pele.
— Sinto muito.
— Por quê? Você não é culpado por nada disso.
— Será… — Coloquei as mãos no bolso e senti um arrepio, congelando minha espinha.

O frasco que Noah me entregou desapareceu! Claro, seu grande idiota de orelhas pontudas, após tudo isso, por que pensei que o frasco ficaria no mesmo lugar? Merda, nem mesmo posso voltar e procurar por ele.

Um grito baixo chamou minha atenção; meus olhos se fixaram na pequena halfling que fingia dormir. Suas mãos tremiam e lentamente iam em direção à sua adaga. Kron saltou como um animal na frente da pequena, com um sorriso fofo e assustador. Seus olhos brilhavam como o céu estrelado; já a pobre halfling estava pálida e revirando os olhos, sem forças para pegar a adaga.

— Pelo amor de Bilbo, não me coma. — As palavras atravessaram Kron como uma lança. — Sei que você é um Pesadelo mais inteligente e eu te auxiliei na disputa com o corvo!
— Não sou um Pesadelo!
— Sim, senhor Pesadelo!
— Silêncio — A voz de Bale congelou o clima.

— Olha, esse inocente garotinho elfo não vai te fazer mal. Estamos todos no mesmo barco aqui — abri um sorriso falso e falei suavemente, sem movimentos bruscos.
— Isso aí... — os olhos de Kron caíram sobre mim.
— Ok... pelo amor de Bilbo, quem são vocês?
— Apenas buscando uma saída — Bale falou com seu olhar distante.
— Eu sou o Kron — ele sorriu gentilmente, diferente de mim.
— Sou Kenshu, e o outro é Bale — me curvei em saudação — minha cara pé-peludo, o que pode nos falar sobre esse lugar?
— Bem... é vergonhoso falar isso... mas teria algo para comer? — meu rosto se torceu em confusão — juro que falarei depois, é que faz tempo que estou aqui parada.
— Tenho frutinhas — Kron retirou um punhado de frutas meio murchas de um bolso.

A pequena comeu vorazmente, sujando o rosto e lambendo os dedos. Após essa pausa, ela se sentou como se nada tivesse acontecido.

— Meu nome é Sasha Underlake. Eu vim para o teste — ela mordeu o dedo, com o rosto tenso — Mas quando estávamos sendo transportados, fomos atacados.
— Esse teste... — O rosto de Bale se contorceu em uma carranca.
— Que tipo de Aberração os atacou? — perguntei pensativo.
— Um Pesadelo. Uma manticora nos emboscou, matou dois guardas em um ataque saindo da terra.
— De onde surgiram Pesadelos tão fortes assim? — perguntou Kron.
— Não sei, mas durante o combate, fomos cercados por vários Pesadelos de classe peão — lágrimas mancharam o chão ao seu redor — Meu irmão se sacrificou para que eu fugisse.
— Tem mais algum detalhe que possa ser útil? — mordi minha unha freneticamente.
— Um arqueiro parecia comandar todos os outros, provavelmente classe bispo.
— O que seria isso? — Kron me cutucou, com uma expressão curiosa.
— Bem, poderia explicar para nosso jovem elfo o que é um bispo? — Bale e Sasha me encararam como se eu tivesse cometido um crime.
— Me admira vocês ainda estarem vivos mesmo sem saber o básico — ela colocou as mãos no queixo e pensou — Existem seis classes de Pesadelos, e nós os catalogamos pelos seus comportamentos. Bispos lideram pequenas hordas de Pesadelos.
— E os outros? — Kron escreveu isso com um carvão em um pedaço de papel.
— Embora eu adorasse dar uma aula sobre o tema, acho que nosso tempo está acabando. — Seu estômago roncou.
— Com esse corvo solto, temo que ficar parados e expostos seja uma péssima ideia — falei, me sentando com a ajuda de Kron.
— Então vamos partir. Eu os guiarei para fora dessa floresta — o estômago de Sasha roncou baixinho.

(...)

Kron alimentou Sasha, dividindo mais algumas das suas frutinhas. Meu estômago se remexia violentamente, mas eu não seria útil de barriga cheia. Bale olhava para frente de forma quase morta; imagino que ele seja um morto-vivo que não precisa comer. Será que Kron é um necromante?

Balancei minha cabeça, dispersando essas ideias trazidas pela fome. Queria poder provar a sopa de Corina novamente; as comidas humanas sempre tinham algo diferente.

Assumimos nossas posições. Bale cobriu nossas costas, orelhas e olhos a postos. Kron me forneceu apoio, e Sasha, que havia tomado a frente, se movia furtivamente de modo que apenas os olhos afiados de Kron a pudessem perceber.

Já estava farto de andar por aí; esperava que essa fosse a última vez que marcharíamos por essa floresta silenciosa. Nossa descida foi tranquila; andamos o mais próximo da parede que conseguíamos. O único barulho era das pedras sob nossos pés; felizmente, isso não nos denunciou.

(...)

Finalmente, alcançamos a floresta. O silêncio dominava o lugar com punho de ferro. Garanti que minhas orelhas estariam atentas a qualquer sinal de perigo. Mesmo que eu não pudesse andar, lutaria até o último suspiro. Kron levantou a mão, o sinal para pararmos. Sasha iria à frente investigar o terreno, uma tarefa que antes era de Bale. Porém, alguém menor com certeza faria isso melhor.

— Temos problemas — Sasha surgiu das sombras, suas mãos tremiam enquanto segurava adagas.
— O que foi? — minha garganta secou.
— Vários grupos de Pesadelos Peão logo à frente — seus olhos foram de um lado para o outro, buscando algo.
— Podemos passar por eles?
— Com você nesse estado? Impossível.
— Me deixem.
— Certo.
— Não vou abandonar ninguém!
— Ele está certo, estamos sem tempo, logo eles vão chegar aqui.
— Ninguém está me abandonando, eu quero fazer isso!
— Ninguém vai fazer escolhas burras! — os olhos de Kron se encheram de luz — Verschmelzen Sie mit der Natur [Camuflagem].

Em um instante, senti a magia de Kron envolver nossos corpos, fazendo-nos parecer parte da própria floresta. Sasha, ainda tremendo, assentiu e começou a se mover lentamente, liderando o caminho. Bale se colocou em alerta máximo, seus olhos atentos a qualquer movimento suspeito.

Seguimos em silêncio, cada passo calculado. A magia de Kron parecia segurar nossa respiração, abafando qualquer som que pudéssemos fazer. Meus músculos estavam tensos, e o ferimento latejava, mas não podia me permitir demonstrar fraqueza. Olhei para Kron, que mantinha uma expressão concentrada, o suor escorrendo por sua testa enquanto sustentava a magia.

Sasha parou de repente, levantando a mão em sinal de alerta. Todos congelamos. Os Pesadelos Peão estavam a poucos metros de nós, suas formas horrendas se movendo na penumbra. Podíamos ouvir seus grunhidos e o arranhar de suas garras no chão. Eu segurava minha respiração, sentindo o peso do momento.

Após o que pareceram horas, os Pesadelos finalmente começaram a se afastar, seguindo na direção oposta. Sasha nos sinalizou para continuar, e recomeçamos nossa lenta marcha pela floresta. Cada passo nos aproximava da saída, mas a tensão ainda era palpável no ar.

Finalmente, a linha das árvores começou a se abrir, revelando uma clareira iluminada pela lua. Sasha se virou para nós, um sorriso cansado mas aliviado no rosto.

— Conseguimos — sussurrou ela.

Bale deu um passo à frente, erguendo a espada em um gesto de triunfo silencioso. Kron deixou a magia se dissipar, e a sensação de camuflagem se desvaneceu, deixando-nos visíveis novamente.

Eu me abaixei, sentindo o peso de tudo que havíamos passado. Mas, pelo menos, estávamos fora da floresta. Olhei para meus companheiros, sentindo uma nova onda de determinação. A jornada estava longe de terminar, mas juntos, sabíamos que poderíamos enfrentar qualquer desafio.



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