Volume 1

Capítulo 17: Maldito silencio

O sol dourado iluminava tudo. Fora da tenda, tive uma visão privilegiada do topo de uma colina. Ao longe, havia um enorme acampamento; fumaça de várias fogueiras acesas no horizonte e soldados rondavam pelos arredores. Tudo era cercado por um muro de pedra escura.

Examinei melhor e vi um símbolo no topo da barraca: a lua azul do conhecimento. Espero que não haja clérigos por aqui.

Próximo à entrada, diversas carroças entravam, lotadas de cadáveres e pessoas. Que merda está acontecendo.

— Somos membros da ordem, né? — perguntei, tentando sorrir.

— Sim! Agora que você acordou, vai poder me ajudar em algumas coisas e à noite podemos ir para a fortaleza — Kron saltou alegre.

— Calma aí, garoto. Primeiro vamos comer alguma coisa. E cadê o Bale? Vocês nunca se desgrudam — seu sorriso diminuiu.

— Ele foi embora… — Ele encarou o chão com uma carranca no rosto.

— Por quê? Assim, do nada? Vai me dizer que ele fez isso tudo pra…

— Mandei ele ir…

— Você não faria isso sem um bom motivo. Poderia me contar? — Me abaixei e coloquei minha mão em seu ombro.

— Como ele pode usar Pipe dessa forma tão brutal? Mesmo estando vivo, foi usado como um escudo. Eu vi ele morrer engasgado com o próprio sangue… — Seu rosto se encheu de lágrimas. — E se… eu fosse o próximo?

Existiam poucas palavras que poderiam ajudá-lo. Para meu azar, eu não sabia nenhuma. Pelo menos sabia de uma ação que confortava a todos. Abracei-o, bati suavemente em suas costas e tentei lembrar o que mamãe sempre falava.

— Pronto, não precisa ficar assim. O que você queria fazer mesmo?

— Vamos… comer primeiro — ele falou, soluçando.

Voltamos a andar. Uma caminhada tranquila em um lugar de paz, sem nenhuma marcha forçada em meio a uma floresta silenciosa. As vozes substituíram o nada imenso e um cheiro de sopa familiar invadiu meus sentidos. Segui o aroma como se uma força maior me puxasse.

Kron andava logo atrás. Ele colocou seu capuz e entramos em uma tenda enorme. Diversos soldados e alguns camponeses bebiam barris de cerveja como se suas vidas dependessem desse estado de embriaguez.

Senti uma sensação estranha. As vozes foram lentamente se calando, e olhares curiosos se voltaram para mim. Seus olhos estavam quase tão brancos quanto os de um Pesadelo. Lentamente, todos pareciam me cortar com os olhares. Expandi meu sonho como um reflexo e me preparei para o pior.

Fomos para uma mesa isolada no canto. Os olhares foram diminuindo, mas nunca cessaram completamente. É claro que esses humanos iriam se ofender com minha presença. Sobrevivi a incontáveis perigos que esses invejosos nunca teriam chance.

Kron se sentou encolhido. Essa atmosfera não estava fazendo bem para ele. Eu iria pegar uma sopa e algumas canecas de cerveja; com isso ele deveria melhorar. Levantei-me da mesa e fui próximo do enorme caldeirão de sopa. Espero que seja quase tão boa quanto a de Corina.

Peguei duas tigelas e as enchi com sopa. O cheiro era bom, mas na fome tudo servia. Equilibrei as tigelas em uma mão e fui aos barris de cerveja. Com dificuldade, abri uma torneira e peguei duas canecas em uma só mão. Antes que pudesse tentar abrir a torneira, uma mão a abriu e, sem desperdiçar nem uma gota, enchi as canecas.

Bebendo um barril de vinho, um homem que quase encostava a cabeça no topo da tenda. Seu corpo era lotado de cicatrizes do tamanho do Kron. Em suas mãos, duas manoplas douradas e um rosto quadrado, que contrastava com seu olhar calmo e distante. Esse era assustador; com certeza tinha sangue de gigante.

Agradeci com uma pequena reverência, mesmo ele nem notando. Virei-me para ir para a mesa e senti que faltava algo. Os olhares sumiram. Não, eles nunca se foram, eu apenas não era o alvo. Todos estavam concentrados em Kron.

Caminhei rapidamente em sua direção. Não pude deixar de me sentir um tolo por o deixar sozinho assim. Bale teria me esganado. Um grito fez com que todos se voltassem para um humano sem um braço e com a pele escura.

— Alguém poderia explicar por que deixamos uma aberração comer conosco?! — O homem subiu na mesa e tomou um gole. — Essa coisa é um elfo? — Os humanos começaram a sussurrar olhando para Kron.

— Até onde sei, nós matamos Pesadelos, não jantamos com eles — Alguns elfos se levantaram e foram até Kron. — Vamos ensinar uma lição a essa aberração.

O refeitório começou a ficar agitado. Humanos malditos gritavam e batiam nas mesas. Kron estava encolhido e chocado. Os elfos e um humano loiro de vestes rasgadas se aproximaram lentamente.

— Merda… — Larguei tudo no chão e corri. Tentei pegar meu machado, mas não estava em minha cintura.

— Ei! Vocês estão incomodando essa criança? — O humano loiro nocauteou um dos elfos com um soco.

— Tá protegendo esse monstro?! — Disse o louco em cima da mesa.

Tentei me esgueirar pela multidão, mas não havia espaços. Todos se amontoaram, querendo ver sangue. Antes que pior pudesse acontecer, subi nas mesas e comecei a saltar como louco. Parei ao lado do loiro com roupas esfarrapadas.

— Meus senhores, não há necessidade de violência. Sejamos racionais.

— Sabe quantos amigos eu perdi?

— Essa aberração é um sinal da desgraça.

— Bem, se quiserem encostar nessa criança, vão ter que passar por mim e por esse elfo aqui.

— Tentei ser civilizado. Hora da violência — Expandi meu sonho, mas antes que pudesse conjurar algo, a terra tremeu.

Os berros da multidão foram silenciados quando seus passos pesados fizeram a terra tremer. Ele engoliu todo o vinho do barril e em seguida o quebrou. Se essa coisa viesse pra cima, seria um problema.

— Me digam, camaradas, por que essa algazarra? — O colosso falou com um sotaque Auraliano áspero.

— Senhor Vybite, essa aberração... — O louco se calou quando os olhos do Auraliano se abateram sobre ele.

— Hatto, não existem aberrações ou inimigos aqui — A multidão foi lentamente se dispersando, em passos apressados. — Todos somos aliados, me entendeu?

— Sim… — Ele desceu da mesa e saiu da tenda com o rabo entre as pernas.

— Maravilha! Enquanto vocês três voltam a comer — Seu sotaque Auraliano quase reabriu minhas velhas cicatrizes.

Finalmente respiramos aliviados enquanto o colosso saía da tenda. Os olhares desapareceram; nem mesmo ousavam nos encarar. Kron estava com as pernas bambas. Coloquei minhas mãos em suas costas e fomos até nossa mesa. Para minha infelicidade, esse humano loiro nos seguiu.

Nos sentamos e ele fez o mesmo, parecia quase como um reflexo irritante. Não tinha aspecto de um soldado, ainda mais descalço e com essas roupas rasgadas. O analisei, tentando entender o que levaria alguém a defender um elfo desconhecido e tão peculiar.

— Então, humano, agradeço pela sua ajuda — Abri um sorriso forçado. — Agora você já pode voltar para seus amigos humanos.

— Seus pais não te deram educação? Meio que acabei de chegar aqui e não conheço ninguém.

— Pode ficar conosco, senhor…

— Meu nome é Lion, não precisa me chamar de senhor. Assim eu me sinto velho.

— Que maravilha. Então, humano, o que está fazendo aqui?

— Atualmente buscando minha esposa e filha. Nos separamos em meio a toda essa loucura.

— Nossa, gostaria de ajuda para as procurar? — Kron disse.

— Claro, garotinho, mas antes vamos comer alguma coisa — disse ele, se levantando.

Fui pegar algumas canecas de cerveja. Após uma quase batalha vencida, eu merecia. Lidar com um Auraliano me salvando era algo que eu nunca imaginaria. E agora um humano bonzinho atrás da família? Curioso.

Voltei à mesa equilibrando canecas e sopas em meus braços. Coloquei uma caneca de cerveja bem amanteigada para Kron. Ele merecia. Bebi a minha em uma golada. Todos os nossos problemas pareciam ter valido apenas por esse doce presente da lua.

— Você acabou de oferecer bebida para uma criança?

— Sim, todos merecemos — Sorri e tomei um pouco de sopa.

— Acho melhor não — Kron afastou a caneca.

— Certo, mais pra mim — Bebi tudo em um gole ligeiro.

— Bem, Lion, para onde vai?

— Não sei ao certo, vou procurar qualquer pista da minha família.

— Também estou procurando algumas pessoas. Podemos fazer isso juntos, né, Bale? — O rosto de Kron se fechou.

— Certo, não precisa ficar assim. Quem você está procurando? — Lion, o humano chato, falou com um rosto odioso.

— Minha mãe. Ela tem olhos lindos e… — Kron quase engasgou com a sopa. — Mas aqui já faz uns dias que estou buscando nossa amiga halfling e um grupo de idosos, crianças e um elfo.

— Dias? Quanto tempo eu apaguei? — Perguntei, lambendo a tigela de sopa.

— Dois dias. Eu ajudei os clérigos da lua a cuidar de você e ganhei um medalhão — Ele retirou um medalhão com o símbolo da nossa lua.

— Mantenha este símbolo escondido. É uma longa história, mas esses clérigos são um problema.

— Certo… Ah, tenho que devolver sua machadinha.

— Obrigado, eu estava sentindo falta dela — Guardei em minha cintura. Me senti completo novamente.

— Bale falou que eu deveria vender isso quando me livrasse de você — Kron falou com um sorriso inocente.

— Que amigo, hein — Lion falou enquanto tomava sopa.

— Como vamos procurar por alguém aqui? — Perguntei, me acostumando com a machadinha.

— Temos que ir a dois lugares. O senhor Peter é quem cuida das pessoas recém-chegadas.

— Podemos nos dividir e agilizar o trabalho — Lion disse, terminando sua sopa.

— E o outro é no lado externo do acampamento, para ver os cadáveres — Kron olhou para baixo e o clima pesou.

— Gostaria de ir conhecer esse tal de Peter. Assim poderei reconhecer minha família.

— Isso se elas estiverem vivas.

— Elas estão vivas, eu garanto.

— Parem de discutir. Kenshu, você pode checar os mortos?

— Se por acaso eu encontrar, qual a aparência dessa sua “família”?

— Você não vai precisar, eu tenho certeza. Estou pronto pra ir — Ele se levantou e estalou o pescoço.

— Nos encontramos aqui quando acabarmos.

Saímos sem nenhum olhar de reprovação. Esses humanos finalmente descobriram seus lugares. Pena que não fui eu quem os ensinou, e pensar que fui ajudado por um Auraliano sujo. O sol começava a se intensificar.

Kron apontou para uma direção e disse que eu deveria procurar pelos “recém-chegados”. Nos separamos, e Kron e Lion foram para o outro lado do acampamento. Espero não encontrar nenhum clérigo da lua no caminho.

(...)

Um aroma peculiar infestava esse lugar, uma mistura de sangue e desespero. Choros baixos e murmúrios preenchiam o ar. Soldados com armaduras negras patrulhavam, andavam tortos, alguns quase se batiam de frente. Esses cabeças de balde são quem está nos protegendo?

Deixei isso de lado e fui para o outro lado do acampamento, um lugar lotado de enormes fogueiras que agora só queimavam em brasas. Clérigos da lua vestindo armaduras de um azul prateado e estranhos soldados de vestes escuras, usando máscaras de corvos. Muitos camponeses sujos se reuniam por aqui. Alguns choravam e outros pareciam secos demais para isso. Clérigos tentavam oferecer doces preces inúteis e vazias para seus corações em luto. Uma mãe chorava sobre um corpo quase sem forma. Isso é a maior cicatriz de uma batalha.

Suspirei quando meus olhos encontraram uma armadura branca com um símbolo da lua azul do conhecimento. Junto a ela, uma pessoa que vestia uma armadura negra leve e uma máscara de corvo. Mascarando meu sorriso falso, caminhei em sua direção. Era uma elfa de pele rosada e cabelos prateados, se ela não usasse essas vestes.

— Que a lua te guie — Fiz uma saudação com a mão próxima ao peito. — A senhorita poderia me auxiliar em uma busca?

— Ah! Q-que a lua te guie! Em que poderia ser útil? — Sua voz foi como uma brisa refrescante.

— Estou procurando alguns… amigos, por assim dizer. Procuro um elfo, dois idosos e três crianças.

— Nós não encontramos ninguém com essas características na floresta — a clériga pensou por um instante — a maioria dos corpos é de uma batalha recente. Se quiser, posso… — A interrompi educadamente.

— Não será necessário. Mal resta algo quando os Pesadelos finalizam. — Suspirei e caminhei de volta ao refeitório. Fiz meu trabalho, mereço outra cerveja.

— Espere, senhor! Havia me esquecido dos que chegaram hoje. Existe uma criança entre as vítimas — Ela falou, indo em direção a um verdadeiro cemitério ao ar livre.

— Merda, eu estava torcendo para você não falar isso — Cocei minhas cicatrizes e segui a doce elfa lunar.

Linhas e mais linhas de corpos se estendiam por todo o perímetro cercado. Seria um banquete para Pesadelos. Respirei fundo quando a elfa parou e encarou um dos corpos. Os trapos que revestiam seu corpo e seu cabelo estavam manchados por sangue seco.

A pequena halfling estava com os olhos abertos, brancos e sem vida. Deveria ter sido eu, porém nem para isso eu pude servir. Sinto muito, pequenina. Ouvi as preces baixas da clériga. Parei de sorrir e apenas caminhei.

— Senhor, espere. Havia algo no corpo dela que talvez gostaria de levar — O pequeno clerigo se agitou.

— Não sou bem um parente próximo, mas o que seria? — Suspirei pesadamente.

— É uma carta. Poderia me falar o nome da falecida? — O tolo clerigo vasculhou em seu robe.

— Sasha… Sasha Underlake, morta por esse teste idiota. — Tomei a carta de suas maos.



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