Cheaters Brasileira

Autor(a): Kuma


Volume 1 – Arco 4

Capítulo 57: De lenda para lenda

 

PLAYER: [Letícia]

 

Nos aproximamos devagar, até porque não conseguíamos nos mover mais rápido que isso, com cuidado para qualquer tipo de surpresa. Eu me apoiava em Juno, ela em mim, uma servindo de muleta para a outra.

A cratera devia ter uns 4 ou mais metros de profundidade. No centro dela, Oolong jazia deitado com os braços abertos e seu corpo de volta ao estado normal. Seu peito fumegava e aquela pedrinha roxa que o vi usando estava esmigalhada em cima dele, mas ainda chispava alguma luz roxa e fraca em seus pedaços.

Sim... por mais impossível que fosse, aquele filho da mãe ainda estava vivo mesmo depois de um ataque como o meu |MISSÍL CRISÁLIDA| à queima roupa. Sem dúvidas, foi o alvo mais duro que eu já tive que eliminar.

— Hah... ha... ha... — A voz dele estava apertada e fraca. Não lhe restava muito tempo. — Não acredito... que... eu ainda perdi... pra vocês.

— Como ele ainda pode estar vivo? — Juno se perguntou com certo tremor na voz.

— Ei! — Chamei ele lá da borda da cratera. — Oolong.

— Que é que você quer...?! Será que não pode... sequer... me deixar morrer... em paz? — arquejou Oolong, em meio à grunhidos de dor.

— Quer fazer algo de útil e bom na sua vida miserável antes que ela acabe? — Fiz uma pausa para formular a pergunta na mente. — Eu vi... você usando uma pedrinha roxa antes. Onde arrumou aquilo?

Juno ficou me olhando como se não tivesse entendido a pergunta. Ela não tinha percebido, afinal de contas.

Ele riu com sarcasmo, soltando pequenos gemidos de dor que fizeram seu corpo estremecer.

— E o que isso... importa? Eu já... perdi... não foi?

— Não seja um completo picareta até o fim, Oolong. Responda minha pergunta — insisti.

Sua expressão divertida pareceu se nublar. Espasmos e tosses violentos o tomaram.

— Eu... nunca devia ter confiado... naqueles caras... Urgh! Ah! Eles... eles me enganaram... — Oolong murmurou palavras entrecortadas e sufocadas por sangue, mais conversando consigo mesmo que me respondendo.

— “Eles” quem? Quem lhe deu esse poder? — continuei reforçando a pergunta. Pouco a pouco, Oolong ia deixando a língua se desprender do sangue que inundava sua boca.

— Aquela... deusa de araque... eles... me compraram... com isso! Mer...daaa! — Ele tossiu e engasgou algumas vezes, agonia e dor se torcendo. — Eu... eu nunca... devia ter... argh...

— Oolong?!

— Lelê... ele está morto — disse Juno, a voz abatida.

— Merda! — E ele não tinha conseguido me dar nada que eu queria. Nenhuma informação, caminho, culpados! Nem mesmo no fim da vida, esse desgraçado ajudou em algo.

A pedrinha roxa que ele carregava terminou de emanar suas últimas centelhas e ficou completamente negra como carvão, se desmanchando. Junto com ela, seu portador se desfez em um pó verde e brilhante que foi carregado pelo vento, desaparecendo naquele céu tremendo e falso acima de nós.

— Muito bem, aventureiras. Por completarem suas provas, lhes concederei a honra de terem um desejo atendido, cada uma. — A voz do guardião Argos se fez presente no salão destruído...

Espera...  Destruído? Quando piscamos, tudo estava de volta ao seu lugar como antes, como se nenhuma batalha nunca tivesse ocorrido ali. Como quando chegamos. Inclusive, nossas roupas, nossa energia, tudo estava de volta; tudo do jeito que estava quando encontramos o salão.

E fomos parar de volta à entrada daquele lugar, olhando para Argos, majestoso e intocável sobre seu trono de milhões de livros, irradiando sua aura divina que era o sol de seu próprio mundo. Tudo de volta ao começo. Nenhum sinal de Oolong, de destruição...

— Hã?! O que aconteceu aqui, Juno? Você viu isso?! — Perguntei para Juno e ela de novo me olhou com uma expressão confusa.

— Como assim, Letícia? Você não estava perguntando sobre uma tal de ||BIBLIOTECA DAS ALMAS||? De repente ficou histérica do nada... — Ela se fez de desentendida.

— A gente tinha acabado de sair de uma batalha com o Oolong, não se lembra?! Estávamos feridas eu e você e então falamos com ele e...

— Lelê, que papo é esse? Só pergunte logo o que quer saber para darmos logo o fora daqui — disse Juno com a cara impaciente.

Ela não se lembra de nada? Agora era minha vez de olhar para ela com uma cara de paisagem. Tudo estava muito confuso, mas eu tinha que focar no que de fato me trouxe até aquela maldita torre.

— Certo! Me conte sobre a ||BIBLIOTECA DAS ALMAS||, guardião! Você sabe sobre ela?

— Sei sim. Seu desejo é saber se eu sei sobre esse lugar? — perguntou.

— Não, não. O que eu quero saber mesmo é se ela estaria no ||SACRÁRIO DE LAPIS LAZULLI||. E se não estiver, onde estaria?

— O lugar que procuras, Animarosiana, não está em seu antigo lar, tampouco no sacrário do dragão de gelo ancestral.

Uma resposta inesperada, mas ao mesmo tempo me deixava aliviada ouvir aquilo. Já me poupava de uma viagem desagradável até meu antigo lar — se é que eu podia chamar aquele inferno congelado de “lar”.

— Então podia me mostrar onde ela está?

— Sinto muito criança, mas é só um desejo por pessoa. UM. — Meu coração deu um salto ao ouvir aquilo. Por um momento, o desespero tomou conta de mim.  Eu não podia sair daquele lugar sem saber da localização da biblioteca, não podia! De jeito nenhum! Não aceitava ter passado por tudo aquilo para acabar sem a informação que eu queria!

— Mas, mas eu... eu... — gaguejei.

— Então meu desejo, seu guardião, é saber onde está a ||BIBLIOTECA DAS ALMAS||! Me mostre a localização exata. — irrompeu Juno com o olhar sério para Argos. 

— Muito bem. — Ele girou as mãos e, todo o ambiente à nossa volta se transmutou em outra paisagem. O chão quadriculado preto e branco virou água, o horizonte, a planície esverdeada que se estendia até onde os olhos alcançavam agora eram uma linha azul escura de inúmeras arvores enfileiradas, formando florestas densas. O céu, antes azul límpido, agora era um vermelho e laranja tingidos por nuvens negras.

Por um momento eu e Juno tomamos um susto ao perceber que estávamos sobre um mar imenso... não, era uma porção de água como um lago gigante ou uma bacia hidrográfica, mas não era um mar.

Tocamos o pé na água, mas não afundamos. Tudo aquilo — assim como tudo naquela torre — era apenas uma ilusão. O guardião estava nos mostrando algo com seu poder e eu me concentrei no que ele estava prestes a dizer.

— Esse é o lugar que procuras, criança — Ele fez uma pausa, unindo as mãos novamente em seu perpétuo estado meditativo. — O centro do continente, o lugar onde todas as águas convergem e onde a vida de toda a ||PYKAH|| nasce. Existe um lugar... uma lenda muito conhecida e cultuada pelos povos habitantes das regiões costeiras, de que uma ilha banida do resto do continente estaria escondida em algum lugar da ||BACIA CONTINENTAL||.

— Uma ilha? — repeti, pensativa.

— Isso. Essa ilha fantasma esconde o ||PIRANDELLO ODIADO||¸ a mansão daquelas que renegaram toda a vida de ||PYKAH||. Lá encontrarão a ||BIBLIOTECA BICONDICIONAL|| que tanto procuram?

||BIBLIOTECA BICONDICIONAL||? Seria outro nome para esse mesmo lugar? Era muita coisa para processar, mas não era o momento de refletir sobre isso agora. Quando a Thays descobrir que a ||BIBLIOTECA DAS ALMAS|| está tão perto de nós, ela vai ficar muito feliz.

Essa informação irá mudar o rumo dessa guerra de uma vez por todas!

— Pedidos atendidos, está na hora ambas voltarem para o mundo ao qual pertencem! — Após sua voz estrondar com um trovão, ele bateu palmas duas vezes e a realidade ali dentro começou a se dissipar e se desfazer como sal na água, bem como tudo que tinha nela. Nós duas recuamos alguns passos, mas tudo que pudemos fazer foi grudarmos uma outra enquanto toda e qualquer imagem ia desaparecendo, ficando apenas um branco claro em nossa visão.

— Desejo às duas uma vida longa — disse Argos, se despedindo e desaparecendo também.

— Se segura, Juno! — gritei.

— Eu não quero morrer, Lelê! Buaaa! — choramingou ela.

Me agarrei com a Juno e apertei os olhos, esperando que algo acontecesse com a gente. No entanto, quando fui semiabrindo de leve os olhos, um ar gelado e puro atingiu nossos corpos. Foi só aí que notei que não estávamos mais na ||TORRE DO MAGO SOLITÁRIO||.

— O que?!

— Morremos, Lelê? Já posso cruzar a terra dos mortos com você? — perguntou Juno em um tom dramático que só ela conseguia fazer.

— Deixa disso, menina. Muito pelo contrário...

Nós estávamos de volta ao portão de ||GARDENMOON V||. As muralhas de pedra branca que arcos iluminados que saltavam da neve se erguiam como gigantes na nossa frente. O ar frio e puro da região, muito diferente da névoa taciturna e ancestral que escoava daquela torre, nos agraciou com um abraço e um arrepiar de pelos.

Nós nos entreolhamos como se procurássemos respostas nos olhares uma da outra. Mas a verdade era que nenhuma de nós sabia ao certo o que havia acontecido lá dentro e seria uma coisa só nossa, como um segredo íntimo compartilhado entre irmãs.

Eu só pude sorrir quando ela fez o mesmo e então se virou para caminhar para dentro da cidade. E eu até já imaginava qual seria sua próxima parada.

 

 

 

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No ||TEMPLO DE KIN’ODESSA||...

 

As pessoas que passavam por nós abriam caminho, intrigadas. Olhares indiscretos, desconfiados. Algumas sequer nos reparavam, mas aqueles que detinham seus olhos em nós... não, nela, era porque, de alguma forma, já conheciam a verdade.

Sabiam quem estava caminhando por aqueles corredores. Eu apenas a acompanhava como sua sombra, calada e sempre vigilante, cobrindo suas costas.

Atravessamos os grossos portões que separavam o hall principal do salão onde aquela Alta Sacerdotisa — a “Alta Sacerdotisa” que sequer se dava o trabalho de olhar aqueles com quem falava como seus iguais — estava sentada em seu trono reluzente, seus olhos claros se cravando em nós como arqueiros com seus arcos apontados.

Diferente de sua chefe, que mantinha uma calma assustadoramente imutável, o rosto de Neptune ficou lívido e seus olhos se projetaram, evidentemente pasmos com a figura que entrava no salão.

— Há quanto tempo, Neptune! — cumprimentou Juno, embora o sorriso que demonstrara não passasse de uma máscara para o tom ácido que espreitou suas palavras.

— Você... — A voz da mulher estava carregada, sua prancheta tremendo em sua mão. Ela fechou os olhos por um momento como se tentasse recobrar a calma e então emendou: — Você me conhece? Eu nunca a vi na vida. — Ela deu de ombros.

As sobrancelhas de Juno se arquearam como se se divertisse com a resposta.

— Não se lembra de mim? Ah... me senti ofendida agora. Será que isso irá refrescar a sua memória? — Juno estalou os dedos e uma quantidade avassaladora de magia irrompeu pelo salão, ela sendo o epicentro, agitando o vento, fazendo vitrais e estátuas tremerem com a pressão repentina. Alguns quadros pendurados na parede atrás deles e nas colunas despencaram no chão, assustando todos os homens e mulheres presentes naquela sala.

Inclusive a própria Neptune.

— Se lembrou agora?

— O que é isso?! Você veio ameaçar nossa Alta-Sacerdotisa?! Vou chamar os arcanos para...

— Não — cortou Juno, a voz rígida como uma rocha sólida. — Eu vi reclamar o que é meu por direito: o trono e posto de Alta-Sacerdotisa de ||GARDENMOON V||!

— Está delirando, sua gata borralheira! Não pode chegar assim do nada e exigir o posto de nossa Alta-Sacerdotisa! — Ela tentava ser severa e decisiva em suas palavras, mas cada sílaba que saia de sua boca tremia. Eu percebi, assim como Juno, que ela não poderia se opor a nenhuma de nós.

E nem mesmo aquela marionete com olhar indiferente que usurpava seu lugar no comando da cidade. Seu rosto também permanecia sereno e indiferente, como se nada daquilo estivesse acontecendo.

Juno desceu o capuz e revelou seu rosto e seu cabelos loiros que esvoaçaram com o vento revolto. Ela fitou Neptune com olhos sérios e anunciou, não apenas para ela, mas para todos que nos assistiam: — EU SOU JUNO ARTHEMISIAS, FILHA DA ALTA-SACERDOTISA, ROANA ARTHEMISIAS, ESCOLHIDA PELA DEUSA PRINCESA DO PENSAMENTO E HERDEIRA LEGÍTIMA DO TRONO DE ||GARDENMOON V||!

Os mais velhos e céticos branquearam seus rostos com espanto e incredulidade e os mais novos ficaram aos cochichos de quem seria ela.

Filha da Alta-Sacerdotisa?

A Alta-Sacerdotisa pode ter filhos e herdeiros?

Não acredito que ela voltou!

É ela mesmo! É tão parecida com a mãe!

Não acredito!

O povo estava vendo por si só; aquela que devia estar, por direito, sentada no lugar daquele manequim havia voltado para casa depois de muito tempo perdida no mundo lá fora. Neptune cerrou os dentes e recuou alguns passos, sua postura contida e severa aos poucos desmoronando como o circo ridículo que ela montara ali.

E por falar em manequins... — Ei, senhora ajudante, pensa rápido! — Eu invoquei Lapis Lazulli rapidamente e disparei uma flecha no peito daquela mulher sentada no trono branco.

Neptune saltou para trás com um susto e berros de agonia e medo saltaram de dentro do salão. Os arcanos, a guarda pessoal do ||TEMPLO DE KIN’ODESSA||, irromperam pelos portões, prontos para me neutralizar.

Mas nenhum grito veio da Alta-Sacerdotisa. A flecha que atirei atravessou seu corpo e atingiu as costas do assento, sem resistências, sem sangue. Era uma ilusão criada pela própria Neptune!

— Veem? A própria Alta-Sacerdotisa que vocês cultuavam e se consultavam não passava de uma imagem falsa. Uma miragem enfeitada! — bradei enquanto o arco de gelo desaparecia. Juno me lançou um aceno de aprovação com a cabeça.

Acho que a ||TORRE DO MAGO SOLITÁRIO|| me rendeu alguns aprendizados, no fim das contas. E um deles era a capacidade de discernir ilusões. Neptune deixou sua prancheta e caneta caírem no chão, seu rosto dando lugar a um surto de pânico e espanto.

— Como...? Como vocês...?!

— Neptune — um velho ancião do templo tocou seu ombro, sua expressão estava séria e exalava reprovação.

— Neptune, acho que você nos deve algumas explicações, não acha? — Seus olhos eram afiados quando encontraram os olhos temerosos da ajudante acuada. — Você tinha nos dito que a herdeira de Roana estava morta. Morta! O que significa isso?

— Eu... eu... — Seus olhos procuravam algum rosto complacente, algum ponto cego no salão em que focar para fugir daqueles olhares inquisitivos. De todos que olhavam para ela. — E-eu não sabia de nada. Eu juro!

— Mentira! Você a reconheceu quando ela entrou — retrucou o velho, irritado. — Essa é a sua melhor resposta para isso?

Um grupo de arcanos se aproximou e, sem resistência por parte de Neptune, a acorrentaram com grilhões de //CRICITA//, grossas correntes que inibiam força e magia, e a levaram embora do salão sob olhares inflamados e vaias. Quando as algemas foram colocadas nela, a ilusão de Neptune se desfez o trono ficou vazio...

...esperando que a verdadeira Alta-Sacerdotisa a reivindicasse. Que tomasse o que era seu por direito, o legado deixado por sua mãe.

E, ao som de vários aplausos e gritos, uma sorridente Juno assim o fez.     

 

 



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