Cheaters Brasileira

Autor(a): Kuma


Volume 1 – Arco 4

Capítulo 52: Herança perdida

 

Na ||CIDADE DE CAMPANELAS||, ao sul de ||GARDENMOON V||, alguns anos antes... uma criança abençoada pela magia, mas amaldiçoada pelo destino, nascia...

PLAYER: [Juno]

 

 

— Vai se chamar... Juno.

Ju-Ju-Juno?!

Não... não havia tantas meninas com nome de Juno nos dias de hoje. Sem querer me gabar — já me gabando —, mas meu nome era bem único. Não podia ser uma coincidência...

Sou... eu?!

Eu? Euzinha? Mas então a ||TORRE DO MAGO SOLITÁRIO|| havia me enviado ao passado? Para o dia em que nasci?

Não lembrava de quase nada do meu passado. Pelo menos, nada antes de eu conhecer o meu odioso chefe.

Minhas primeiras memórias remetem aos meus 6 ou 7 anos de idade. Tudo antes disso era como um abismo escuro e interminável, que mesmo o esforço mais intenso da minha mente não conseguia penetrar.

Só de pensar em tantas e tantas vezes que passei refletindo sobre isso e falhando miseravelmente, fazia minha cabeça latejar.

Então... o que era aquilo que eu estava vendo agora? Quem era aquela Juno que estava chorando nos braços de uma mãe, dando seus primeiros sopros de vida?

Eu queria ouvir mais, ficar ali até que as duas me dessem as respostas que eu queria, mas era praticamente impossível bisbilhotar da única entrada e saída do cômodo. E pelos sons dos passos no piso de madeira se tornando cada vez mais altos, ela estava vindo até mim.

— Fique um pouco aí, minha senhora, enquanto eu pego panos limpos — disse a simpática mulher quando largou a porta na minha cara sem dó nem piedade.

Soltei um grunhido e ela parou: — Ah? O que foi isso? — Fiquei imóvel, mordendo os lábios.

Pelo menos ela não me viu e foi para o outro cômodo. Mesmo não sendo tão baixa quanto a Lelê, eu poderia ficar atrás daquela porta tranquilamente, sem ser pega.

Enquanto eu estava com minha cara amassada, eu poderia pensar calmamente em uma forma de me reencontrar com a Lelê. Mas a essa altura já poderia ser impo...

GUYAH!

— Cheguei com novos panos, minha senhora. — Ela empurrou a porta de novo. Acho que meu lindo narizinho foi empurrado uns dois centímetros para dentro do meu rosto.

— Oh, muito obrigado Crystal — a mulher de voz fraca agradeceu e depois tossiu. — Eu... será que eu poderia ficar um pouco mais com a Juno?

— Minha senhora, você também percebeu, não é? — Crystal mudou de tom de repente, ficando bem mais séria.

— Sim — A mulher deitada, a minha mã..., digo, a mãe da Juno, concordou com a voz embargada. — Essa menina... ela nasceu diferente das outras. Seu poder mágico é...

— Será que ela é a escolhida pela deusa para substituí-la, minha senhora?

Escolhida pela deusa... substituí-la... Espera um pouco aí! Pode ser que ela seja a...?

— A Princesa do Pensamento nunca erra. — Ela fez uma pausa e então tossiu mais um pouco antes de emendar: — Porém, quando souberem que ela é uma bastarda, fruto de um caso da Alta-Sacerdotisa, ninguém irá aceitá-la. — Sua voz era carregada, tremendo em cada palavra.

Um caso?! Mas... como?!

Seja como for, senhora Roana, não podemos mantê-la aqui. Se isso vier a público, pode causar uma comoção desnecessária.

Comoção... sim, isso iria colocar ||GARDENMOON V|| em um verdadeiro caos, falando sério. As Altas Sacerdotisas, aquelas escolhidas pela deusa Princesa do Pensamento, deviam ser puras e imaculadas para exercerem suas funções como emissárias e porta-vozes da deusa na Terra.

No entanto, ter uma Alta-Sacerdotisa que teve um caso, e ainda por cima concebeu um fruto disso, era inadmissível. Inaceitável. Visto como uma blasfêmia suprema para a deusa, um último ato que, aos olhos dos sábios e eruditos da cidade, traria 100 anos de desgraça e pragas sobre o povo de ||GARDENMOON V||.

Nem imagino o estardalhaço que essa criança causaria quando soubessem da existência dela. No entanto...

Alta Sacerdotisa Roana... Esse nome... não me é estranho.

Alguns passos carregadas, exasperados, irromperam pelo piso de madeira de onde quer que estivéssemos e eu precisei achar algum canto para me esconder. Aquele lugar tinha dois andares e eu estava no segundo.

Sai do corredor o mais rápido que consegui e me escondi atrás de uma estante de madeira fina e ornamentada, na entrada do corredor. A pessoa que subia apressada disparou para o corredor.

— Alta Sacerdotisa Roana?!

Essa é a Neptune?

— Senhora Neptune, eu peço que você se acalme, pois a senhora Roana está...

— Não estou interessada em seus puxões de orelha e recomendações! Eu quero falar com a Alta Sacerdotisa! — exigiu a assistente com a voz furiosa.

— Ela acabou de dar à luz e precisa de um tempo para...

— Você sabe com quem está falando, ralé? — Neptune baixou a voz, cada palavra se contorcendo em ódio. — Se você dá valor a sua vidinha nojenta e ao pouco que tem dela, eu recomendo que você saia da minha frente. A-go-ra!

— Neptune! Pare com isso imediatamente! — A Alta Sacerdotisa ordenou de onde estava, com um rugido de autoridade.

Aquela nojenta se calou enfim. Ainda bem ou eu mesma iria me certificar de fazer isso. Eu nunca fui com a cara dela, mas esse momento agora levou meu nojo à um próximo patamar.

— Você não vê o que você fez?! Que tipo de desgraça você trouxe para nós e para nossa cidade?

— Não. Eu só vejo minha querida filha e nada mais. Ela é uma benção da deusa e não uma desgraça — protestou Roana. — Eu digo para você parar com essa balbúrdia agora, pois está assustando a Juno...

— E você ainda se atreveu a colocar um nome nessa coisa?

— Não se atreva a referir-se à ela como coisa! — advertiu Roana, afiando o tom.

— Alta Sacerdotisa, você tem que se livrar dela imediatamente! — determinou Neptune.

Quase engasguei com aquele pedido absurdo. Ela estaria mesmo disposta a matar um bebê inocente... a me matar? Por causa de tradições estúpidas e antiquadas?

Quer dizer... Até parece que esse bebê seria eu, não é?

— Que tolice está dizendo, Neptune?! — esbravejou a Alta Sacerdotisa. A criança em seus braços chorava mais intensamente. — Está fora de si.

— Ela é uma ameaça para toda a nossa sagrada ordem. O fruto de uma conjunção proibida e condenada pela deusa...

— Neptune, se retire da minha frente nesse instante! — A voz de Roana adquiriu um tom assustadoramente severo e letal. — Não queira que a ira da Princesa do Pensamento recaia sobre você. Não queira!

Um longo e tenso silêncio entre elas se instalou, com o choro da criança sendo o único som que eu ouvia do cômodo vizinho.

— A deusa, cara Roana, não está mais do seu lado. — Neptune cuspiu as palavras e se retirou, castigando o piso de madeira com pisadas fortes.

— Minha Senhora, sinto muit...

— Não precisa se desculpar, Crystal. Mas...  — Ela fez uma pausa, tossindo forte antes de continuar. — Não podemos mais confiar na Neptune. Ela... — Outra tosse feia cortou suas palavras. Ela estava bastante debilitada, mesmo para alguém que acabava de dar à luz. — Ela vai... atentar contra a vida da menina... contra... a vida de Juno

— Minha senhora... — Crystal assentia com pesar. — E o que devemos fazer?

Um longo momento de silêncio inundou o ambiente. Um silêncio mórbido, mesmo com os choros do bebê aos poucos se acalmando, flutuava entre as duas e chegava até mim.

Como se meu coração tivesse virado pedra e caído sobre o estômago. Uma estranha sensação de... tristeza. Por que eu estou sentindo isso?

— Entendi — Crystal disse por fim, como se tivesse entendido algo nesse longo instante de silêncio, alguma percepção nessa conversa silenciosa. — Irei cuidar de tudo, minha senhora.

— Sim, faça isso, por favor, Crystal. Irei descansar.

Então ela se retirou da sala, deixando a Alta Sacerdotisa sozinha em seu quarto com seu bebê. Fiquei na tocaia, apenas observando e esperando que não viesse ninguém mais.

Era a minha chance para falar com essa tal de Roana e perguntar sobre essa bebê com o mesmo nome que eu. Meu coração galopava como os cascos de um alazão em plena corrida, imaginando como seria... como seria a conversa de nós duas. Se aquela bebê... se aquela criança realmente era eu.

Droga, Juno! Se concentra! Se concentra!

O ar sai e entrava quente pelas narinas como baforadas de um dragão. Suor escorria pela testa e descia em cascata pelas minhas costas, debaixo da túnica de pano. A mão congelou na maçaneta, como se fosse algo impossível de ser girar apenas usando a força.

Mas não era a maçaneta; era eu mesma. Eu não conseguia; meus músculos não queriam me obedecer. Droga! Se acalma! Não tem nada demais! Eu só vou fazer uma pergunta... uma... uma...

Pouco a pouco meu pulso tremia e o trinco girava reproduzindo um silvo metálico que incomodava. Eu não podia me demorar muito ali ou corria o risco de Crystal voltar e me descobrir.

Abra, abra, abra, abra, abra... Abra logo, porra!

Quando finalmente consegui girar, o trinco da porta estalou. Não dei tempo de hesitar e empurrei a porta o mais forte que meus braços paralisados conseguiram.

No entanto, não foi o quarto, onde a Alta Sacerdotisa Roana estava com sua criança, que encontrei. — Quê?!

Em vez de um cômodo quentinho e suntuoso, encontrei o ambiente hostil de uma floresta congelada, no ápice da tempestade. Rajadas impiedosas de neve sopravam e empurravam arvores e plantas e nuvens como um mar revoltado, carregando tudo que estava em seu caminho.

Minha pele exposta, ao choque de temperatura de um ambiente para o outro, se arrepiou completamente, da ponta do fio de cabelo da minha cabeça até a unha do mindinho do pé... o frio me envolveu completamente e me sugou para aquele cenário caótico.

— Droga! Onde...?!

No entanto, era um frio inacreditavelmente suportável para a tempestade de neve que se desenrolava. Não... era como o frio daquele corredor e não o de um inverno rigoroso. As sensações... não batiam com o que estava ao meu redor.

Uma ilusão, foi a primeira ideia que me surgiu.

Consegui andar com alguma dificuldade, a neve segurando meus pés como mãos invisíveis. Um belo esforço do cenário para me fazer acreditar que tudo que eu via, sentia e ouvia eram reais. Pff... vai ter que fazer melhor do que isso para me...

THUC, THUC, THUC, passos apressados, abafados pelo mar de neve, cortavam o som pungente de vento acelerado nos meus ouvidos.

Uma luz no meio da escuridão congelante da tundra se revelou para mim, ao longe. Era uma tocha, um minúscula e insignificante tocha que era como uma frágil fagulha comparada à fúria da tempestade. Ela atravessava a floresta, de tronco em tronco, em uma corrida trôpega e desesperada.

Quem será? Ou o que será...

Tentei me aproximar, mas um súbito mal estar me atropelou como uma carroça desgovernada, como se aquela tempestade agora tivesse sido transportada para dentro do meu estômago. O mundo virou um borrão diante dos meus olhos e meu ouvido começou a zumbir.

E a cada passo pesado na neve, aquela sensação crescente de náusea só crescia, assim como a nevasca que parecia crescer cada vez mais.

Cheguei perto o suficiente para notar que era uma mulher, enrolada em vários panos e mantos de tecido espesso, carregando um pequeno embrulhinho nas mãos — carregando... uma criança.

— Aguente... firme, Juno. Por favor, aguente... firme — Sua voz saia entrecortada, manchada com o som ofegante de tosses e cansaço.

Essa é a Alta Sacerdotisa?! Mas ela está fugindo de quem?

Como se a própria ilusão da torre quisesse responder à minha pergunta, uma multidão ensandecida, armada com ancinhos e garfos e vassouras e tochas, a perseguia em uma caçada. Uma caçada feroz, como uma alcateia de lobos perseguindo um coelho.

E percebi que suas vestes eram robustas demais para uma viajante qualquer. Aqueles adornos, aquelas cores e detalhes em seu manto não me deixaram com nenhuma dúvida: era a Alta Sacerdotisa Roana!

E ela corria, provavelmente com sua filha, para longe, para além da floresta, fugindo de moradores revoltados. Por conta da tempestade severa, era impossível voar com as vassouras, o que permitiu que Roana conseguisse tempo para se afastar deles.

Mas seus passos se enfraqueciam a cada minuto correndo, ficando mais e mais lentos, por vezes até ameaçando pararem e ela cair até afundar na neve junto com a recém-nascida. Tudo o que a impulsionava ainda, o que dava descargas de força e vigor em seu corpo era a pequena em seus braços.

Aquela que estava disposta a proteger com a própria vida.

Entretanto, a sorte dela acabou quando que, por pouco, não mergulhou de cabeça em uma queda livre em um penhasco à sua frente. A região de |REN DO SUL| tinha seu relevo bem conturbado, assim como seu clima.

Ela arqueou o corpo para trás, colocando todo o peso para não cair naquele buraco gigantesco e aparentemente sem fundo. Com todo o esforço, suas pernas cederam e ela desabou para trás, ainda assim protegendo o pequeno pacotinho em suas mãos.

A mulher estava ofegante e sua respiração se condensava em frente à um rosto pálido e sujo, no limite de suas forças. Tão destoante da imagem sagrada e cheia de autoridade que era a Alta Sacerdotisa. Dava até um certo dó.

Ela fez um esforço violento para consegui permanecer ao menos sentada, enquanto erguia a criança dormente com seus braços trêmulos e duros, a pele dela tão pálida quanto o pelo de um lobo da tundra, tão inerte que parecia morta. Os olhos choroso de Roana não soltaram lágrimas. Talvez já estivessem congelados.

— Pe-pe-pequena... Juno. E-e-eu... queria que ti-ti-tivéssemos... tido e-esse te-tempo junta-ta-tas — A mão de Roana acariciou delicadamente o rosto da bebê, a mão tremendo tanto que mal conseguia mantê-la direito sobre a cabecinha pequena demais da criança. — Que-que-ria... ter... te-te-te en-ensinado... mu-um-muitas... coisas...

Gritos de fúria já alcançavam a orla do penhasco. Roana se levantou devagar e grunhindo, como se cada mínimo movimento a torturasse cruelmente e ficou de pé de frente para a beirada, os braços tremendo intensamente com o esforço e o frio, como se fossem ceder.

— Óh, Pri-Prince-cesa do-do Pe-pensa-sa-samento... és... be-be-benigna e sá-sábi-bi-bia... em to-to-todas... a-as tu-tu-tuas... de-de-deci.sões... — Um estalo no braço de Roana a fez soltar um urro abafado de dor. — Te... en-entrego... mi-mi-minha... fi-fi-filha... Ju-Ju-Juno...

As pessoas vinham cada vez mais rápido. Eu quis gritar para que ela corresse, para que ela caísse dali, mas era em vão. Ilusão... era tudo uma ilusão.

— Sa-Sal-ve-a... Ó... Gran-Grande... de-de-deusa...!

Estavam quase chegando na orla do penhasco e viram a menina no alto de suas mãos. Um dos aldeões que carregava um garfo em mãos arremessou o objeto contra a Alta Sacerdotisa, algo que nunca pensei que poderia ver algum dia...

A Alta Sacerdotisa, a figura máxima de ||GARDENMOON V||, a conexão da deusa com seu povo, ser atacada de uma forma tão brutal pelos próprios cidadãos da cidade. Se não fosse eu mesma vendo com meus próprios olhos, eu jamais acreditaria.

Mas por que eles estavam fazendo aquilo? Quem ou o que havia-os colocado contra sua própria ídolo? De qualquer forma, não tive tempo para pensar nisso.

As pontas do garfo cravaram violentamente nas costas de Roana, que soltou um grito arranhado de dor, ao mesmo tempo que um jato de sangue escapou de sua boca, abafando um pouco seus sons de agonia.

Tapei a boca com as mãos como se meu próprio horror ao ver aquela cena se tivesse se tornado algo palpável. Sério, eu não estava acreditando no que via. E principalmente para mim, era como se aquele garfo tivesse me atingido também.

A primeira reação que a mulher teve foi se agarrar ao bebê com toda a força enquanto ambas caiam no precipício, como uma concha protetora. Eu não consegui mais observar enquanto o resto dos aldeões chegavam à orla do penhasco, alguns tentando encontrar a sua Alta Sacerdotisa fugitiva no meio da escuridão de uma queda alta.

Morta... ela só podia estar morta.

E respondendo ao meu pensamento, fui transportada para outro lugar, um outro momento. Lá, em meio ao som da nevasca, um choro fraco de bebê podia ser ouvido em algum lugar no meio da escuridão e dos arbustos congelados.

Sim, era a bebê. Ela ainda estava viva, mas...

— Roana... — Consegui dizer ao encontrar seu cadáver, todo cortado e machucado, suas roupas clericais indistinguíveis agora.

E mesmo com a queda de mais de 10 metros, seus braços não soltaram a criança. Ela morreu do mesmo jeito que caiu: abraçada com sua filha, protegendo-a, guardando-a. E foi só por isso que ela pôde sobreviver.

Entretanto, aquele lugar... aquele lugar não me era estranho! Não, nem um pouco estranho. E então mais uma vez aquela dor de cabeça infernal, aquela dor latejante que parecia me tirar do mundo. Minha visão rodopiou de uma forma que me levou a cair no meio de alguns arbustos mais afastados e de galhos espinhentos.

E lá fiquei, aturdida, meu crânio parecendo uma bola de ferro maciça que rodopiava alucinada. E então, comecei a ouvir vozes perdidas e borrões indistintos na minha visão, mas não saí de onde eu estava. Não conseguiria naquele momento, nem se eu tentasse.

— Vocês estão ouvindo isso?

— Devem ser os espíritos invernais. Eles perseguem todos os viajantes que ousam atravessar a tundra durante as tempestades e os congelam — uma voz masculina e atemorizam dizia.

— E que merda de espírito tem voz de um bebê chorando? — retrucou outro com sarcasmo ácido na voz.

— É porque não é um espírito, ô retardado. É uma criança mesmo! Olhem aqui.

Eram um grupo, visto as várias vozes que eu pude discernir entre um e outro silvo de ventania. Devia ser uma caravana, mas por que tinha uma caravana de viajantes atravessando aquela floresta naquele momento?

— Chefe! Vem dar uma conferida aqui!

— Hum! O que temos aqui? — Essa voz... essa voz era o chefe?! O chefe Oolong? O que ele estava fazendo ali?! — Hã? O que é isso, cambada?

Ele e alguns homens estavam reunidos ali, vestindo roupas pesadas de couro e pano, de cabeças forradas e guiados por lobos da tundra que, com certeza, Oolong tinha dado algum jeito de domesticar. E ele estava bem mais jovem, com seus áureos 20 a 25 anos. Suas cicatrizes e marcas, no entanto, continuavam nos mesmos lugares.

— Achamos uma criança perdida. Ela está enroscada nos braços dessa mulher e não sabemos o porquê — informou um dos homens.

— Ela está morta — constatou outro. — E não faz tanto tempo, mas o corpo está quase congelado. É um milagre que essa criança esteja viva ainda.

— E esses ferimentos... ela deve ter caído lá de cima — Oolong comentou enquanto arrancava a criança, aquela criança que se chamava Juno, dos braços de sua mãe... — Será que esse pivete tem nome?

“Juno”, ele leu em um bandana amarrada ao bracinho da criança. Uma bandana da mesma cor que eu usava em minha testa. Uma bandana que foi... foi um presente dado a mim... Oolong disse que ele que tinha me dado essa bandana.

— Juno, né? É uma menina, então.

— O senhor vai fazer o que com ela? — Um de seus homens perguntou, curioso.

— Se eu deixar essa bebê aqui, com certeza vai virar uma pedrinha de gelo antes mesmo do amanhecer — Oolong fez uma pausa, colocando-a em seus braços enquanto a bebê chorava e se tremia de frio. — Ela tem cara de que vai ser bem mais útil para nós viva do que morta no futuro.

E então eles levaram o bebê embora, deixando para trás o cadáver da Alta Sacerdotisa de ||GARDENMOON V||, uma mãe que morreu para proteger a única coisa que fez sua vida tediosa de santa engomadinha e idolatrada valer a pena.

 

_______________________________________________________________

De volta ao corredor...

 

  

A imagem se dissipou e eu permaneci no mesmo lugar, paralisada, atordoada com tudo que tinha sido mostrado à mim. Quando me dei conta, meu rosto estava úmido e inchado e não conseguia mais sustentar meu corpo e desabei sobre os joelhos, percebendo minhas mãos trêmulas tentando tocar o rosto.

Aquela... aquela era eu! E aquela era a minha mamãe! Era a minha mãe de verdade! Não... não pode ser...

Meus olhos ardiam enquanto uma cascata de lágrimas era despejada por eles. Lágrimas pesadas que faziam todo meu corpo tremer, como se uma besta tivesse se libertado dentro de mim. Como se algo tivesse se partido dentro de mim.

Ninguém nunca tinha me dito aquilo. Ninguém! Nunca havia me passado pela cabeça que eu podia ser a filha da Alta Sacerdotisa anterior. Alguém que tinha nascido para sucedê-la, alguém que tinha sido escolhida pela deusa para guiar a cidade em seu lugar.

Logo eu? Por quê?! Por que eu?

— Mamãe... — Eu só conseguia tremer e chorar, resmungando meias palavras, lembrando da cena terrível da morte da minha mãe.

Uma mulher que até os últimos suspiros lutou para me proteger. E se não fosse por ela... se não fosse por Roana, eu teria morrido naquela queda. Teria morrido de frio se ela não tivesse me entregado suas últimas centelhas de calor e vida para que eu vivesse...

Para que eu me tornasse algo mais. Para que tomasse seu lugar e fizesse daquela cidade um lugar justo e melhor como eu sempre sonhava, todos os dias naquele esconderijo. Eu tinha o poder para isso! Eu tinha a legitimidade para isso. Aquele templo pertencia à mim!

— E quem disse isso?

De repente, me levantei do chão com um susto e uma silhueta estava parada atrás de mim. Sequer tive tempo de processar que eu não estava mais naquela floresta gelada, olhando para mim mesma sendo levada por um canalha como Oolong.

Não... agora eu estava de volta ao corredor da ||TORRE DO MAGO SOLITÁRIO||. E quando pude olhar melhor que falou comigo, tive mais um baque que me deixou sem ar.

Era eu mesma. Não uma versão de mim, mas não tinha nada de mim ali. Minha essência, minha alma... elas me pertenciam! Pertenciam somente a mim!

— Que-quem é você, coisinha? — perguntei, ainda fazendo esforço para controlar a respiração e manter a voz firme.

— Que pergunta idiota. Não está vendo que eu sou você?

— Não — cortei, espalmando a mão sobre o peito. — Eu sou única e você é só uma cópia fajuta! Diga logo o que você quer!

A outra eu soltou uma risadinha maligna que eu nunca faria em toda a minha vida. Nem mesmo combinava comigo. Ela era tudo que eu era; igualzinha a mim em todos os detalhes, porém tudo nela era vazio e sem cor. Um preto e cinza mórbidos que contrastavam com seus olhos vermelhos demais, como faróis ofuscantes.

— Coitadinha... acha que agora que sabe a verdade, alguma coisa mudou? Não se engane, sua idiota!

— E quem é você para decidir isso, afinal? — gritei em afronta.

Ela puxou uma vassoura de dentro de sua bolsa, um truque eu nem lembrava mais que sabia. E por sua expressão maldosa, aquele sorriso cruel que repuxava seus lábios, ela não queria muita conversa comigo.

Já me preparei para o pior quando, imbuída de puro ódio naqueles olhos escarlates, ela respondeu:

— Eu sou tudo que você foi, é e sempre será.

 

 



Comentários