Volume 1 – Arco 3
Capítulo 37: Sistema de troca e melhorias
||ZONA TROTSKY||, a alguns quilômetros de distância da ||FORTALEZA DE FERRO||.
PLAYER: [Juniorai]
Já estava ficando tarde; demorando mais do que calculei, cheguei a pensar que o tal do Astholf tinha, de alguma forma, nos enganado.
Entramos e saímos em tantas ruas que me perdi completamente. Depois de um tempo, parei de tentar decorar cada passagem. Ele realmente conhecia o chão que pisava.
— Ei! Ainda vai demorar muito? — reclamei com uma voz de alguém que estava sentindo dores em vários cantos.
— É no fim dessa rua — Ele indicou uma casinha modesta de dois andares, isolada por uma cerca de tábuas. — É ali.
Eu e Arthur nos entreolhamos, confusos. Será que ele já tinha esquecido para onde era para nos levar?
— Com licença, senhor, mas nós dissemos que queríamos ir para a ||FORTALEZA DE FERRO|| — disse Arthur em um tom amigável enquanto tocava seu ombro. — Por que mesmo o senhor trouxe a gente pra cá?
— Vocês vão saber quando chegar lá.
— Wiwi... — Picker sibilava debaixo da minha brafoneira, parecendo desconfiado.
Chegamos lá enfim. A casa não tinha nada de especial; muro branco velho e quebradiço, algumas janelas de madeira tampadas com cortinas e um batente decorado com um tapete feito da pele de algum bicho.
Simples, mas de alguma forma, elegante. Havia algumas plantinhas suspensas nas paredes do pequeno corredor da entrada. O seguimos até uma saleta fechada e cheirando a mel e mato.
— Olá! Chegamos! — Astholf anunciou nossa chegada.
Um pequeno rebuliço de objetos pôde ser ouvido no cômodo ao lado. Por que aquela cena me era surpreendentemente familiar?
— Aí! Você sempre chega na pior hora não é, seu bode velho?! — Uma voz feminina e cansada veio reclamando em meio ao som de muitas panelas sendo empilhadas.
Quando percebi, havia somente uma pessoinha carregando uma torre de babel feita de panelas e objetos de metal. Mais atrás, uma mulher alta de pele azul estrelada.
— Não acredito...
— Hã? Ah! São vocês! — A mulher anã arremessou o monte de panelas em cima da mesa e veio nos receber. — Que bom que chegaram. E ainda bem que não trouxeram esse puxa-saco bêbado dessa vez! Hahaha!
— Seu humor continua cativante como sempre, Zibret. — Astholf lançou um comentário tão irônico quanto desanimado.
A gigante Pefrid parou um pouco atrás dela, as mãos entrelaçadas um pouco abaixo da barriga — e eu falo “gigante” porque era claramente discrepante a diferença de tamanho entre as duas.
— Hã? O que vocês estão fazendo aqui?! — Ia perguntar a mesma coisa, mas Arthur foi mais rápido.
Zibret lançou um olhar enfadado como se estivesse diante de uma pergunta tola.
— Por que acha, moleque do braço vivo? Aqui é meu ateliê, então é algo normal, não acham?
Estranho; será que ela tinha filiais pela cidade? Mesmo se fosse o caso de ela ter mais de uma loja, porque ela estava lá como se estivesse no esperando? Mais uma daquelas que botava as engrenagens sucateadas da minha cabeça à prova.
— Mas eu me lembro claramente que seu ateliê não era nesse endereço. — contestou Arthur.
— É. Não era mesmo. — Nem me lembro se era ou não, só concordei.
— Meu ateliê sempre vai aonde eu estou. Se acostumem com isso — ela disse aquilo como se pudesse carregar a loja dela na mochila.
— Isso não faz sentido nenhum. — disse, coçando a cabeça.
— Eu não tinha dito a você que coleciono objetos e memórias? — disse ela, fazendo o assunto girar em 360°. — Se você tiver algo que possa me interessar, podemos fazer uma troca.
Troca? Troca..., e como se uma lâmpada houvesse se acendido em cima da minha cabeça — espero que o jogo não materialize isso, ia ficar ridículo —, um pensamento fez com que todas as engrenagens na minha cabeça se encaixassem perfeitamente.
— Uma loja?
Arthur me olhou com uma sobrancelha arqueada.
Ela foi andando até se sentar atrás de uma mesa cheia de bugigangas. Seguindo uma intuição, eu me posicionei na frente dela e toquei a superfície da mesa de madeira.
PIUIIIIM! No mesmo instante, uma grande tela semitransparente e brilhante brotava na minha frente e quase me fazia enfartar. Eu recuei alguns passos para trás e quase esbarrei na gigantona azul.
— Eita! Me descul... — Eu me virei para me desculpar, mas Pefrid estava assustadoramente imóvel.
Só depois que fui perceber: ela estava congelada totalmente! Tudo a minha volta havia congelado e perdido o brilho, perdendo o foco, e somente a tela e eu estávamos habilitados a nos mover. Eu sempre via isso em jogos que tinham essa mecânica, mas não pensei que fosse algo tão assustador da visão de alguém que estava dentro do jogo.
O tempo estava parado e enquanto eu não fechasse a tela, tinha total liberdade dentro daquele espaço. Nessa tela semitransparente havia várias abas, opções e uma lista com itens que eu poderia conseguir através de trocas com Zibret. Bem fácil e intuitiva, o que poderia dar errado?
//POÇÃO DE CURA (M)// ..................................//FRAGMENTO DE PEDRA VULCÂNICA// – x5- //POÇÃO DE CURA (G)// ..................................//FRAGMENTO DE PEDRA VULCÂNICA// – x10
- //POÇÃO DE MANA (M)// ..................................//FRAGMENTO DE PEDRA VULCÂNICA// – x5
- //POÇÃO DE MANA (G)// ..................................//FRAGMENTO DE PEDRA VULCÂNICA// – x10
- //PÍLULA DE ESTAMINA (M)// ..................................//FRAGMENTO DE PEDRA VULCÂNICA// – x7
- //WINGSLASH REFORJADA// ..................................BARRA DE FERRANIUM CONCENTRADO – x10
Convenientemente, meu machado estava lá e pedindo exatamente a quantidade de //BARRA DE FERRANIUM CONCENTRADO// que eu tinha no inventário.
Esse jogo é uma putaria do car****, pensei enquanto segurava uma risada.
Com um toque do dedo indicador, selecionei meu machado e uma tela menor se abriu.
– MENSAGEM DO SISTEMA –
//WINGSLASH REFORJADA// CUSTARÁ
//BARRA DE FERRANIUM CONCENTRADO// - x10
-
|- Quantidade atual – x10 -|
DESEJA TROCAR? Sim ( x ) Não ( )
E precisava perguntar? Já começava a babar só de ver o ícone da arma. Não aguentava ficar correndo de tudo que era farm.
O ícone e descrição do machado sumiram da lista. Troquei também algumas das pedrinhas que eu tinha conseguido no fundo da //FORNALHA// e peguei umas poções de vida.
Sabia que aquelas pedrinhas estavam destacadas com brilhinho não era à toa. Fiz questão de catar um monte. Todas ocupavam o mesmo slot no inventário, então não tive que me preocupar.
Fechei a janela e o mundo à minha volta se coloriu de novo. Tudo voltou a se mexer e o tempo voltou a correr.
Olhei para os lados e procurei o machado. Ele já estava pendurado nas minhas costas e pude sentir o peso extra assim que a tela sumiu. Foi tão instantâneo que chegou a ser engraçado como quase “sentei” à força no chão.
— Já terminou de escolher? — perguntou Zibret com um olhar satisfeito no rosto.
— Ah, sim. Escolhi já. Obrigado. — respondi, mesmo sem saber se era ou não pra responder.
Talvez fosse uma frase scriptada pelo jogo, então não era para responder. Ou talvez nem fizesse diferença eu responder ou não.
— Agora que você tem uma arma, quer que eu faça uma pequena melhoria nela? — perguntou a anã enquanto reunia suas pedrinhas na mesa.
— Ah, claro... pode ser. — Sem entender, eu tirei a arma das costas e a coloquei na mesa.
E tome mais outra tela no meio da cara! Dessa vez, apenas eu e Zibret nos mexíamos. Ela dispôs o machado na minha frente e me mostrou algumas opções.
Uma delas era de [ENCANTAR ARMA] e era a única disponível no momento. As outras estavam acinzentadas e tinham um símbolo bem sugestivo de cadeado. Selecionei a opção e ela começou a agir enquanto conversava comigo.
— Essa arma vai ficar bem resistente e perfeita para mandar alguns idiotas de volta para os deuses — disse ela enquanto esfregava um pó roxo e algumas folhas na arma.
O cabo do machado começou a brilhar e alguns pontos subiram. Dava para ver também o nome da arma mudando de cor no meu inventário e passando a ficar azul.
— Muito bem. Acabei. Dessa vez fiz de graça porque você não conhecia o serviço, mas da próxima vez vou pedir um pagamento, entendeu? — disse ela com um sorrisinho e uma piscada.
— Ah... certo... — concordei com um aceno desconcertado de cabeça.
Verifiquei os status da arma e haviam melhorado mais do que eu pensei. Percebi também que a arma havia mudado seu tipo, passando de [NORMAL] para [MÁGICO], o que me permitia ganhar um bônus singelo de força.
Agora sim, papai, pensei satisfeito ao olhar os atributos da arma integrando os meus.
— Deu certo? — Arthur perguntou como se tivesse visto tudo que eu fiz.
— Ah, sim. Tá na mão! Agora sim, posso ajudar em algo.
— Até que enfim! Já estava começando a dormir — Astholf disse, acompanhado de um bocejo. — Me sigam, rapazes.
— Voltem se precisarem trocar mais coisas, rapazes — falou Zibret acenando. — Ou se precisarem melhorar qualquer coisa, hihihi.
— Façam... uma ótima viagem. — Pefrid também acenou, acanhada.
Ele, que já estava no fundo da sala, abriu uma porta de madeira que levava à uma escada com endereço para o subsolo. Estava bem escuro a partir dali, então Arthur foi na frente com uma pequena labareda queimando entre suas garras.
Descemos uma escada de madeira em espiral, rangendo mais a cada passo que descíamos como se fosse se partir. Onde é esse lugar que não chega nunca, eu pensava a cada CREK que eu ouvia.
Enfim, uma porta de ferro surgiu no fim da escadaria. Pelo estado dela devia fazer anos que não era aberta. Era feita do mesmo ferro negro que encontramos no templo de Bjorn e tinha um puxador e inscrições ilegíveis entalhadas.
— É aqui — começou Astholf enquanto catava algo no bolso. — A partir daqui, vocês poderão chegar ao seu destino.
— Onde é “aqui”, exatamente? — questionou Arthur.
— Do outro lado dessa porta há um sistema de túneis que foi abandonado pelos anões ainda nos tempos áureos dessa cidade — Ele fez uma pausa, me entregando um rolo amarelo de papel com uma expressão bem séria. — Esses túneis conectam pontos específicos espalhados por toda ||BASIN-C||, incluindo a ||FORTALEZA DE FERRO|| e a ||FORNALHA||.
— Então isso quer dizer que...
— Sim. Esse mapa irá guia-los por esses túneis até lá. Não tem erro. Se seguirem essas instruções, chegarão na fortaleza antes do pôr do sol. — concluiu ele, dando meia volta.
— Ei! Onde você vai? — disse, segurando-o pelo ombro.
Ele se livrou da minha pegada e deu mais dois passos antes de nos dar alguma satisfação.
— Só posso leva-los até aqui. A partir de agora, estão por conta própria.
— Creio que há um bom motivo para você não querer entrar aqui, não é? — disse, tentando provocar uma reação. Ele só continuou andando, subindo as escadas.
— Quanto menos souberem, melhor. Boa sorte.
O lugar era imenso. Um túnel circular bem grande e que tinha várias coisas largadas lá dentro como trilhos, caixotes com ferramentas, lonas cobrindo suprimentos apodrecidos e pilhas de material de construção, pedras e grandes barras e canos de ferro negro por todos os lados.
Quando Astholf mencionou túneis, imaginei que fosse me embrenhar em mais um buraco de minhoca e ouvindo Arthur reclamar de 10 em 10 minutos que estava passando mal.
Aquele lugar era tão grande que arrisco dizer que poderia caber até uma estação de trem inteira lá. Como a rede de metrôs de Nova Iorque, passando por toda a cidade e ligando lugares distantes facilmente.
Além de espaçoso era alto, então podíamos nos mexer e respirar sem problemas. Só que era absurdamente quente e abafado lá dentro, então tínhamos que nos apressar. O desconforto e a aura de opressão daquele túnel abandonado me faziam querer voltar correndo escadas acima.
Nós usamos tanto o mapa que ele deu quanto a runa que Bjorn forjou para nós, que ainda nos indicava com a seta cintilante a direção certa, que naquela situação, era em frente.
Enquanto caminhávamos, notamos que o túnel ia ficando um pouco mais claro. Alguns archotes, um sim e outro não nas paredes do túnel, entre uma passagem e outra, estavam acesos, o que já me deixou de orelha em pé.
O cara lá não disse que esses túneis não estavam abandonados?
— Junior... — A voz de Arthur sibilou mais atrás.
— É. Eu percebi também. — concordei, meus olhos escaneando todo o ambiente mais para frente.
De repente, uma tensão perturbadora se instalou no ambiente. Era como se estivéssemos presos em uma armadilha, de alguma forma.
— TEM ALGUÉM AÍ? — gritei, a voz preenchendo todo o corredor e ecoando à vários metros, talvez quilômetros, de onde estávamos.
— Não estamos ficando um pouco... paranoicos, não? — disse Arthur com uma risadinha descontraída.
— Pior que não — retruquei, a voz endurecida. — Observe as tochas desse lugar. Não percebeu algo estranho não?
— Tipo...?
— Além do fato de que não deveriam estar acesas, umas estão acesas e outras não. Isso faz com que a luz seja mal distribuída pelo túnel, facilitando a criação de sombras e pontos cegos — Parei por um momento, olhando para uma tocha que estava do nosso lado. Então, continuei: — Está vendo aquela tocha ali?
— O que tem ela?
— Pela forma como estão queimando com um fogo tão vivo, indica que elas foram acesas a pouco tempo — Me virei para ele, o olhar afiado e o coração quase saindo pela boca. — Tem mais alguém nesse túnel além de nós.
Arthur me olhou com uma face espantada. Nem eu me reconheci depois de ter notado todas aquelas coisas que só um aventureiro com anos de experiência nas costas perceberia. Acho que todas as campanhas de RPG que joguei a galera realmente me prepararam para esses momentos.
E então um CLAP CLAP veio da nossa frente, tomando todo o corredor. O susto só não foi maior porque eu já tinha cantado a bola que tinha mais alguém ali, mas com aquele bater de palmas “inesperado”, com certeza uma cueca iria ser bastante danificada hoje.
— Hihi... estou impressionada! Não esperava que vocês fossem perceber assim tão fácil. — Uma voz feminina e venenosa surgiu das profundezas do túnel, nos fazendo arrepiar da nunca até o dedão do pé.
— Quem é você?! Está aqui para nos impedir ou para nos ajudar? — Me esforcei para manter uma voz imponente.
Assim que ela passou por uma das tochas, seu manto negro com desenhos bordados em dourado surgiu caminhando lentamente até nós. Devia ser a tal da mulher de capuz que estava tocando o terror naquela cidade.
Então aquele safado do Astholf nos enganou no fim das contas. Isso era uma armadilha!
— Já viram uma cidade cair com apenas algumas palavras? — Ela lançou uma pergunta sem sentido.
— O que? Como assim?
A encapuzada levantou os braços, as mãos abertas em gestos não muito amigáveis.
— É incrível como mentes ignorantes e assustadas podem ser facilmente manipuladas, não é? Basta algumas palavras inflamadas, discursos exagerados, talvez alguns apertos de mão e pronto! Estamos onde estamos; cada pecinha em seu devido lugar, lutando por algo que nem mesmo entende. Isso é tão maravilhoso e hilário que não consigo suportar, hihihi!
— Então realmente você que causou tudo isso. — Arthur falava aquilo com desgosto.
— Não sei o que pretende fazendo isso, mas não vai levar você e nem ninguém a lugar nenhum. — Vai que o “discurso no jutsu” colava.
— Ah, meu querido, muito pelo contrário! Isso é só mais um dos muitos passos que vai me levar... Não, nos levar a realização de um sonho. De um novo mundo! — Ela parou por um momento, sacando algo da manga longa de seu manto. Uma pedrinha brilhante e roxa. — E respondendo sua pergunta, meu lindo, sim! Estou aqui para... “suicidá-los”. ♥
— Não pode ser! Isso é...?!
Ela esboçou um sorriso frio e disse:
— |DESPERTAR: ARC NOCTIS|.
Um... //FRAGMENTO DE ALMA//...?!
Uma aura rosada expandiu desde a pedrinha e tomou o túnel por inteiro. De primeiro momento, não sentimos nada além de um calafrio. O ar pareceu mais gelado e o ambiente mais pesado, mas nada além disso.
Eu e Arthur recuamos rápido em um reflexo instintivo de combate.
De repente, todas as tochas que estavam apagadas se acenderam de uma vez e o corredor ficou todo iluminado. Saquei minha //WINGSLASH// me preparando para o pior.
Algo piscou na minha visão. O sistema já havia me mandado uma mensagem, revelando exatamente o que estava por vir:
– MENSAGEM DO SISTEMA –
– NOVA MISSÃO PRINCIPAL DO [PRIMERIO ATO], DESBLOQUEADA! –
– DERROTE A MULHER DE CAPUZ! –
........
[MAIS DETALHES]
É mais fácil falar do que fazer, né porra?, eu ficava puto toda vida que pingava uma mensagem daquelas na minha visão. Seria isso que todos os NPCs tinham que suportar?
— Ela disse que era pra eu me segurar contra vocês, mas... eu não sei se vou conseguir, huhu. ♥
Não havia limite de tempo. Não havia condições e nem dicas para completarmos aquela missão.
Agora era ela contra a gente.