Cheaters Brasileira

Autor(a): Kuma


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 26: Verdadeiro propósito

 

Neste ínterim, nos túneis ocultos e nefastos que conduziam a um antro de atrocidades... ||VILA JECTH||.

PLAYER: [Justine]

 

 

“A gente já tá chegando?”, perguntou Lucy pela trigésima sexta vez.

Eu era alguém difícil de tirar do sério, mas Lucy estava para entrar na lista célebre de pessoas que conseguiram esse feito.

“Não...”

Passou mais um tempo.

“A gente já tá chegando?”

“Não!”

E mais alguns minutos depois...

“A gente já tá chegando?”

“Pelos deuses, Lucy! Minha resposta é a mesma das outras trinta mil vezes que perguntou... não!”, esbravejei, a voz ressoando de lá para cá e de cá pra lá no túnel.

“Ah, você só diz isso e parece que a gente não chega a lugar nenhum!”, disse Lucy, fazendo birra.

“A gente vai chegar quando a gente chegar, caramba!”

Ludwig era quem conduzia o grupo, ficando na frente com uma tocha improvisada e iluminando o caminho. Laimonas e Stuz ficaram na retaguarda para caso algo resolvesse nos surpreender, sobrando para Lucy e eu ficarmos no centro da formação.

Lucy ficou irrequieta o trajeto todo, olhando para os lados o tempo todo, soltando gritinhos e gemidinhos de vez em quando. Não sei do que uma maga como ela tinha tanto medo se ela simplesmente poderia explodir tudo aquilo com apenas algumas palavras.

“...? Senhorita Justine?”, Ludwig para de repente, com Lucy abalroando em suas costas largas e tropicando alguns passos para trás.

“Ai! O que foi agora?!”, resmungou a maga.

“Olhem!”, o mercenário se virou para nós e apontou para frente, trocando a tocha de mão logo em seguida.

Era um espaço enorme com muitas poças, quente e úmido como uma caverna oculta debaixo da terra. Algumas gotas e escoamentos de água surgiam dentre as rochas empapadas das paredes, revelando que deveria ser ali por cima em algum lugar onde o ||RIO TORA|| afluía.

Não sei como, mas ali também tinha alguns archotes presos nas paredes, cuidando da iluminação do espaço. Alguns eram suspensos e amarrados por grosseiras raízes de arvore profundas, provavelmente sendo das arvores da floresta de onde viemos.

Fiz um sinal de cabeça para que Ludwig novamente conduzisse o grupo e ele respondeu com outro.

Nós avançamos lentamente, esquadrinhando todo o lugar penumbroso e abafado. A água que se infiltrava na terra formava grandes poças de lama no chão – um passo errado ou acelerado que fosse era a garantia de um escorregão doloroso em uma piscina de barro.

O lugar terminava em outra parede contendo uma porta de metal gradeada que secionava aquele espaço de outro corredor.

“Tem como mover isso, meninos?”, perguntei aos três mercenários.

Stuz e Laimonas se juntaram a Ludwig para analisar a porta.

“Vamos fazer do seguinte...”

Antes que Ludwig terminasse de falar, vozes estranhas retiniram pelo corredor de onde viemos.

YUP! Droga! Tem boi na linha! YUP!”, dois soluços cadenciados era o sinal de Stuz para nos esconder.

Ludwig e Laimonas andaram com passadas largas entre as poças até as paredes que formavam a entrada do túnel, com certeza amaldiçoando-se por estarem fazendo tanto barulho.

Stuz se camuflou entre raízes gigantes e envergadas do lado esquerdo daquela caverna, enquanto eu e Lucy nos enfiamos atrás de um pedregulho grande que havia se descolado da do teto da caverna ou da parede e que se localizava próximo ao portão gradeado.

Ficamos ali agachados; eu me segurava para não rir com a reação de Lucy. Seu rosto franziu em uma face de nojo e repulsa por estar em um lugar enlameado e sórdido daqueles.

Também não me sentia nem um pouco confortável ali, mas fazer o que, não é? Ossos do ofício...

A medida que eles iam chegando, outras vozes de desespero, bem como choros e lamúrias iam se revelando a nossa audição também.

Deviam ser mais fauneses capturados!

“Malditos! Ainda estão sequestrando fauneses depois de todo esse tempo?”, pensei, os dentes trincando de raiva.

Então surgiram na caverna quatro encapuzados, dois deles sendo magos pelas magias que usavam para prender vários fauneses em uma espécie de “bolha flutuante”. Eles irromperam pelo espaço, não notando Ludwig e Laimonas empoleirados nas paredes viscosas atrás deles.

Claro que eles estavam usando capuzes grandes que limitavam sua visão periférica, além da iluminação do lugar ser horrível. Mesmo sendo magos, também não teriam como nos encontrar sentindo nossas manas, pois haviam vários seres mágicos ali e do nosso grupo, a única que usava mana era Lucy.

Teria que ser um mago sensorial bem foda para conseguir distinguir a faixa de mana de Lucy do restante dos fauneses.

Um dos dois que iam na frente ergueu o portão gradeado de metal com apenas alguns gestos de mão. As barras rilharam se movendo por algum mecanismo oculto dentro das paredes.

Estávamos apenas esperando que eles passassem para podermos passar junto. Lutar contra quatro magos em um espaço pequeno de uma caverna alagada era uma péssima decisão, então não havia muito o que ser feito. Só podíamos ficar ali e esperar.

Havia vários fauneses de todos os tipos e tamanhos ali, entre adultos e crianças. Meu coração apertava tanto ao ver aquilo que eu mal conseguia suportar.

De repente, uma centopeia que rastejava pela pedra subiu no ombro de Lucy lentamente, soltando uma gosta verde a cada passinho de suas milhares de perninhas. A maga esbugalhou os olhos e girou lentamente a cabeça para a esquerda com uma expressão de terror estampada em sua cara.

O pequeno bichinho percebeu a movimentação da cabeça de Lucy e se mexeu de novo, ameaçando rastejar pelo seu rosto.

“AAAAAAAAAAAAAAAArghr!”, desci uma mãozada em sua boca com uma mão e tirei a centopeia de seu ombro com a outra.

“...?!”

Os últimos dois encapuzados pararam.

“Essa não! Fodeu!”, pensei, deixando o corpo mais imóvel que uma estátua.

Os dois fanáticos se entreolharam como se se perguntassem um para outro mentalmente: “que merda foi isso?”

Acho que eles pensaram que fosse um dos vários fauneses que tinham capturado gritando e seguiram seu caminho. Assim que eles entram no corredor, as grades começam a baixar.

“Essa não!”

Depois de deixar Lucy com os beiços vermelhos, eu fui até a porta e tentei enxergar onde estava o mecanismo que operava aquela porta. Os mercenários vieram o mais rápido que puderam, sambando pelo chão lamacento.

“Passe logo senhorita!”, exclamou Laimonas.

Eu ouvi seu comando e imediatamente passei logo. Laimonas, Stuz e Ludwig seguraram as grades com todas as suas forças para que a maga escandalosa também passasse – e depois eu ia conversar bem baixinho com ela no canto por quase nos envolver em um combate desnecessário.

Eu e a maga estávamos do outro lado e então foi a vez de Stuz passar, porém quando faltava apenas Ludwig e Laimonas, seus corpos não suportaram tamanho peso e tiveram que sair debaixo do percurso da grade, caindo do lado da caverna. Os dois escorregaram e caíram sentados na lama.

“Merda! Laimonas! Lud! Vocês estão bem?!”

“Estamos...”, Ludwig se recupera do tombo bem rápido. “..., mas agora estamos presos aqui.”

“O que vamos fazer, senhorita? YUP!”, perguntou Stuz, a voz meio trêmula.

Fechei os olhos e espalmei a mão, esfregando a testa com a ponta dos dedos. Pelo que pude ver um pouco, era um mecanismo mágico e talvez Lucy conseguisse operá-lo se descobrisse como funciona. Poderíamos arrumar uma forma de acioná-lo por dentro e abrir o portão para eles.

Lucy poderia ser um pouco tapado – ou bem tapada em alguns momentos –, mas quando o assunto era magia, ela sempre ficava muito séria e sabia o que fazer.

Estava contando com isso.

“Calma que vamos dar um jeito de abrir essa coisa. Stuz, Lucy... vamos andando!”

Os dois se entreolharam.

“Nós vamos mesmo ter que entrar aí?!”, perguntou ambos em uma só voz chorosa.

“Vocês têm alguma ideia melhor?”

Um olhou para o outro de novo.

“Vamos ficar aqui?”, perguntou Lucy para Stuz.

“Você fica sentada desse lado e eu fico nesse lado. YUP!”, disse Stuz assentindo.

“Vocês são uns malditos cagões!”, gritei, crispando os dedos das mãos.

 

 

 

Caminhando pela passagem fria – e “fria” ainda era um eufemismo. Estava realmente congelante! – chegamos a uma saleta de pedra com dois archotes de cada lado e um corredor que se dividia um para direita e outro para a esquerda.

Ponderei; se estivéssemos todos juntos, podíamos facilmente nos separar e cobrir as duas rotas, mas nós estando em três era muito perigoso. Não sabíamos quantos inimigos podiam estar ali e nem se estavam nos esperando ou não.

Porém não tínhamos muito tempo. Se agíssemos rápido, ainda daria tempo de salvar os fauneses, pelo menos os recém capturados.

“Eu vou sozinha pela esquerda e vocês vão pela direita.”, decidi.

Os dois me olharam com uma expressão espantada.

YUP! C-como assim, senhorita Justine? Você vai sozinha... YUP!”

“Eu posso acompanha-la se quiser, senhorita.”, Lucy se ofereceu. Stuz tremeu os olhos.

“Não, Lucy. Não sabemos o que eles estão planejando, então se vocês forem juntos, em caso de algum confronto, terão uma chance melhor. Eu só vou atrapalhar.”, expliquei.

“Então é só nos três irmos juntos, não é?”, Lucy pensou na solução mais óbvia, porém menos eficiente.

“Vamos demorar muito assim. Não se preocupem... eu sei me virar.”, retruquei com um sorriso confiante e peito estufado.

Lucy levantou uma sobrancelha, mas preferiu não discutir – até porque não adiantaria nada, não é?

Então os dois obedeceram e seguiram pelo corredor da direita e eu, o da esquerda.

“Ai, merda! Eu falei daquele jeito pomposo, mas eu tô com tanto medo!”, pensei, sentindo as pernas bambearem a cada passo.

Segui o corredor iluminado por tochas presas nas paredes de pedra até encontrar algumas portas de madeira espaçadas. Fiquei com receio de abrir alguma sem qualquer cuidado, então encostei levemente meu rosto contra as portas para tentar ouvir algum ruído que fosse do interior.

Da primeira não ouvi nada. Segurei firme o puxador da porta e a movi lentamente; deixei uma pequena brecha por onde eu podia com um dos olhos bisbilhotar o que havia lá. O quarto pequeno parecia vazio então entrei sem medo.

O pequeno cômodo era entulhado e continha várias estantes com livros, mapas e potes contendo coisas que eu nem ousava tentar descobrir o que era. De frente para as estantes, na mesma parede onde ficava a entrada, bem no cantinho do quarto, havia uma mesa coberto por um pano vermelho e uma vela ainda acesa iluminando documentos.

“Isso seria algum tipo de biblioteca?”, teorizei em pensamento, olhando tudo a minha volta.

Não... era pequeno demais. Acho que deveria ser uma espécie de escritório ou sala para guardar documentos importantes.

“Mais um motivo para eu xeretar. Hihi...”

Comecei lendo o que já estava sobre a mesa. Estava um pouco borrado, mas nada que não desse para ler. A princípio, nada fez muito sentido para mim – e é porque havia algumas gravuras desenhadas também.

Parecia descrever detalhadamente algum instrumento o qual não soube discernir o que era. Pela forma como estava sendo tratado, parecia um documento oficial, um pedido de licitação ou permissão para a manufatura.

“Que droga é essa? O que eles estão pensando com isso?”

Pelos desenhos e modelos um tanto... assustadores, pareciam serem armas. Ou se não eram isso, deveriam ser algum instrumento para propósito bélico.

“Não... é muito grande para ser uma arma. Deve ter mais alguma coisa aqui que eu ainda não vi...”

  Continuo folheando.

Próxima página e as descrições continuam nebulosas para mim. Era natural, afinal eu não sou nenhuma especialista em armas ou coisas do tipo. Mas não precisava ser para perceber que aquilo não era nada de bom.

“Receptáculos...?”

As próximas páginas falavam de máquinas enormes chamadas “Receptáculos” e que tinham a função de extrair energia.

“Extrair energia?!”, pensei colocando a mão na boca e me recordando das palavras que Reks havia nos dito tempos atrás:

 


“(...) eu vi que eles tinham uma espécie de gerigonça mecânica que eles usavam para drenar a mana dos fauneses até não sobrar mais nada.”


 

Eu li aquilo horrorizada. Eu sei que era algo chocante ouvir Reks descrever aquela máquina, mas ler detalhadamente como ela funciona era algo bem mais horripilante.

Eu engoli em seco, imaginando o que eles devem ter passado.

“Esses desgraçados... como eles são capazes disso?!”

Era uma máquina que literalmente sugava a mana de toda e qualquer coisa que possuía magia, mas de uma forma extremamente dolorosa. Um grupo de fauneses eram postos em um lugar ligeiramente semelhante a uma cela para guardar Bisontouros – eram muito usados como animais de carga –, mas com uma diferença que havia um mecanismo no topo dessa pequena caixa que gerava milhares de agulhas do tamanho de um dedo médio.

Ao iniciar o ritual, os magos responsáveis por ativar a máquina recitavam uma espécie de feitiço proibido pela tal “Deusa Salvadora” que eles mencionam no documento e que convertia essa mana roubada dos seres mágicos em uma espécie de pedra mágica especial.

“O que diabos eu estou lendo?! O que eles querem com isso?!”,

Não consegui ler adiante. Era algo que minha mente ainda não conseguia digerir. Contudo, eu ainda tinha que procurar por mais alguma coisa que me desse pistas do que queria.

*BRUUUUUUM*

“Uma explosão?!”, meu pensamento foi preciso enquanto olhava para a porta, sobressaltada.

O coração batia forte. Percebi que na estante tinha alguns livros e tomos de magia, a maior parte contendo magias proibidas.

“Essa não! Tenho que me esconder!”, pensei rapidamente e meus olhos encontraram a mesa.

Me enfiei debaixo da mesa e lá fiquei, as pernas encolhidas próximas ao peito e eu as abraçando com força, como se eu pudesse segurar minha própria respiração apenas naquele gesto.

Alguém irrompeu pela porta; não era uma ou duas pessoas, mas sim um monte deles.

“Rápido! Rápido!”

“Invasores!”

“O que está acontecendo?”

“Não deixem os invasores escaparem!”

Passos e mais passos apressados entravam e saiam da sala. Sentia a respiração pesar como nunca e ouvia meu próprio coração pulsar loucamente.

“Essa não! Lucy! Stuz!”, meu pensamento automaticamente foi de encontro a eles.

O lado que escolhi deve ter levado eles direto para a boca do lobo. Eles estavam em perigo!

Assim que percebi que estava sozinha de novo, sai ligeira de baixo da mesa e reuni todos os documentos que achava relevante levar comigo e os coloquei na bolsinha que carregava.

A instante cheia de livros alguns minutos atrás agora estava pelada. Sobrara apenas os potes, alguns panos e trapos velhos... e um livro isolado na última prateleira de cima para baixo da primeira estante.

“Ué... só deixaram esse pra trás?”, eu normalmente não notaria algo assim, mas foi algo tão notável que foi quase impossível não reparar.

E eu nem sabia que eu tinha entrado no arsenal dos inimigos. Pelo visto, todos ali eram magos.

Eu derrubei o livro com algumas ombradas na estante. Demorou algum tempo para ele cair e quando caiu, veio com um bolo de poeira e mofo junto. Alguns papéis soltos escaparam de dentro dele na queda também.

*tosse* que... é isso?”

Passei a mão sobre sua capa duas vezes para tirar o excesso de poeira, os olhos pinicando por conta de tanta sujeira. Aquilo devia estar ali há tipo... um milênio!

Sua capa era de um couro preto, com detalhes de metal nas bordas. Não tinha nenhuma outra coisa que o distinguisse de livros comuns, fora o fato de estar tomado de poeira e em um estado abandonado.

“Por que eles deixaram isso? Será que eles sabem que essa coisa existe?”, me questionava, intrigada com isso.

Ao abrir, as folhas estavam amareladas e comidas de traças em vários lugares. Em sua primeira página só havia uma descrição tingida em tinta vermelha: “Apotheosis”

“Apotheosis... que nome perturbador...”

Sabia que não poderia me demorar muito lendo aquilo agora. Meus amigos estavam encrencados e eu tinha que me apressar em encontrar o dispositivo do portão gradeado. Só dei uma rápida folheada, tendo cuidado para não desfolhar o resto do livro.

Nessa brincadeira, encontrei algumas palavras chaves e guardei comigo enquanto procurava por alguma sala de controle ou de máquinas. De alguma forma... elas me causavam algum desconforto, apesar de eu não saber o que significavam.

“Comp Fantasma... esse nome me dá calafrios...”

 

 

 

 

Graças à distração criada por Stuz e Lucy, eu tinha quase certeza absoluta de que não haveria mais nenhum fanático daquele lado do laboratório no momento.

Isso me deu mais liberdade e segurança para vasculhar todas as salas.

Demorou um pouco ainda para que eu encontrasse a sala onde os mecanismos de praticamente todo aquele complexo se conectavam, incluindo o da entrada. Claro que eram movidos com magia, mas também havia como operá-los manualmente.

Não fazia ideia de como operá-los. Acabei, movida pela minha intuição – melhor aliada de uma mulher em horas como essa –, mexendo em tudo que eu via pela frente, incluindo alguns pedestais que estavam soltos em áreas de relevo. Era como um quebra-cabeças que eu tinha que montar.

“Anda, anda! Onde está a geringonça que abre a porta?!”, pensei mexendo um pouco de cada coisa.

Apertando e movendo cada alavanca, botão corda e girando tudo que era possível ser girado. Tirava do lugar tudo que podia ser tirado e recolocado em outro canto.

Ainda era possível escutar explosões, possivelmente as de Lucy, que faziam as paredes subterrâneas daquele lugar vibrarem. Cada nova detonação aumentava ainda mais minha ansiedade e urgência em procurar mais coisas para se mexer.

Continuei fazendo isso até tocar em algumas cordinhas finas e coloridas que passavam por dentro da parede. Haviam várias delas emaranhadas umas nas outras e não sabia o que faziam e nem se estavam ligadas a algum mecanismo ou máquina daquele lugar.

“Só tem uma forma de saber.”

Saquei a pequena adaga cromada que sempre carregava comigo para defesa e saí arrebentando todos os fios, um por um. Cada vez que fazia isso um estalo seguido de várias faíscas acontecia.

Só quando terminei de cortar tudo, percebi que a maior parte das engrenagens enormes que giravam naquela sala pararam de girar.

“Será que deu certo?”, me perguntei, olhando em volta.

“Ei! O que pensa que está fazendo, sua vagabunda?!”, uma voz grossa estrondou do corredor, me assustando.

“Essa não! Ainda tinha alguns deles perambulando por esse lado?!”

Minha primeira reação rápida e natural foi correr até entrada o mais rápido que consegui e fechar a porta. Eles vieram e jogaram seus corpos violentamente contra a madeira da entrada. O choque foi tão grande que quase arremessou meu corpo direto no chão.

“Abra! Abra agora, sua cadela!”, gritou um deles.

“Vão pro inferno!”, respondi com outro grito.

“Quando a gente abrir essa porta, você vai estar perdida!”, ameaçou o outro.

Os segundos seguintes foi uma disputa intensa de força entre eles e eu e, claramente, eu perdi. A porta se abriu abruptamente, me levando ao chão. Eles entraram e me agarraram violentamente, um deles envolvendo seu braço parrudo e indelicado pelo meu pescoço e o outro segurando minhas pernas pelos tornozelos.

“Agora você vai ver!”, disse um deles com uma risadinha maldosa.

“Não! Não! Me solta! Me larga!”, gritei e esperneei com pontapés.

“Fique quieta!”, o grandão que tinha os braços malhados apertou a pegada e bloqueou minha passagem de ar.

Agora eu esperneava para conseguir respirar. Sentia meus pulmões arderem ao passo que meus espasmos diminuíam.

Em uma última sacada antes que eu me arriscasse a perder a consciência, tomei minha adaga e golpeei a coxa do fanático gorducho que me segurava pelo pescoço. O infeliz soltou um grito de dor e me soltou, dando alguns passos para trás antes de cair no chão.

“O que você fez, sua vadia?!”, em resposta a agressão, o mais baixinho e entroncado pisou em meu abdome usando de seu calcanhar.

Meu corpo se contraiu involuntariamente em espasmos de dor enquanto cuspi um jato de saliva para o alto. Ele desceu mais uns dois ou três chutes antes de perceber que eu estava para desmaiar.

“Não pense que vai se dar ao luxo de simplesmente morrer, sua cadelinha! Você ainda vai ficar viva e consciente o suficiente para sofrer. Sofrer tanto que vai desejar ter morrido!”, disse o agressor, a voz requintadamente bárbara.

“Merda... o que eu faço? O que... eu... faço?”, essa era a única questão que ecoava na minha cabeça.

“Ludwig... Stuz... Laimonas... Lucy... Se eu... fosse... mais forte...”

“Um pouco... mais... forte...”

Fechei os olhos então.

“Forte... forte...”

De repente, algo inexplicável acontece. Era algo que eu nunca havia visto na vida e jamais imaginava que existisse.

Algo como linhas bem fininhas que flutuavam no ar e que tomavam minha visão em alguns cantos do que eu podia enxergar. Elas estavam em tudo!

“O que é... isso?”

Algumas delas tomavam formas de números e palavras dúbias para mim. Seria magia? Seria algum fluxo de mana que eu não conhecia? Eu nunca me imaginei como uma maga ou alguém que mexesse com tais poderes. Sequer me sentia apta para usar tais poderes.

As mensagens se revelavam para mim e era como se somente minha consciência estivesse isolada em um espaço onde o tempo não existe. Tudo estava parado, imóvel... sequer podia sentir as dores aflitivas que sentia há pouco. Era um lugar onde minha existência perene parecia tão insignificante ao ponto de não saber nada sobre nada e estar a mercê de qualquer coisa.

Mas... ao mesmo tempo, eu queria ver o que era aquilo. Queria enxergar, conhecer, entender... o verdadeiro propósito por trás de tudo aquilo.

“Por... favor... me mostre... tudo. Eu... não quero mais... ser fraca...”

Todas aquelas linhas que pareciam até de outro mundo tomavam várias formas distintas e começavam a se tornar legíveis para mim.

Nesse ínterim, o tempo voltou a correr. Levei mais uns dois chutes acompanhados de gargalhadas. O fanático que havia sido golpeado por mim agora havia retirado a adaga de sua perna e cambaleava furioso em minha direção, seu rosto vermelho de raiva.

“Não quero mais saber de nada! Vamos matá-la! Da forma mais dolorosa possível e o que sobrar vamos dar de sacrifício a deusa! Depois cuidamos dos outros quatro!”, rosnou o fanático, a veia pulsando em sua testa.

“Então... eles estão bem... que alívio!”

“Hm?”, o baixinho parou de chutar.

Reuni todo o fôlego que ainda me restava e berrei:

 

“|INVOCAR: CAVALARIA|!

 

“Hahahahaha! Acha que gritar vai adiantar de alguma cois...”, as palavras dele foram interrompidas pelo som de carne sendo perfurada.

Algo incrivelmente lustroso havia saído da boca do gordão, vindo desde sua nuca.

O fanático tampinha que estava mais para trás e próximo a saída, recuou alguns passos com os olhos esbugalhados em um misto de espanto e medo.

Ao olhar para trás, presenciei uma cena assustadora e única tal qual foi ver aquelas linhas: uma fileira de três cavaleiros formados de chamas azuis fantasmagóricas e que, curiosamente, vestiam a armadura do exército da cidade Lidooberry. Montavam em grandes cavalos também formados das mesmas chamas espectrais que ardiam em grandes brasas azuis e brilhantes. Estavam armados com lanças enormes e afiadas e o do centro agora tinha um saco de carne pendurado em sua arma.

“Pela deusa, que merda é essa?!”, gritou o cultista, apavorado.

“E-eu... invoquei isso?”, apenas pensei, paralisada ante aquelas bestas flamejantes.

Em movimentos atrapalhados, ele tentou correr pela porta da sala e fugir pelo corredor. Em resposta a isso, os dois cavaleiros, da direita e da esquerda, dispararam em uma cavalgada possante, atravessando quaisquer barreiras físicas que houvesse no caminho como paredes e máquinas.

O pobre do fanático – pobre é o cacete! – desafortunado não teve nem chance; as duas lanças se cruzaram e o empalaram pelas costas, ambas ao mesmo tempo, erguendo o pequeno corpo do miserável como se fosse um boneco de trapos nas mãos de uma criança.

O cadáver explodiu em sangue e tripas, deixados para trás e os cavaleiros seguiram em frente cavalgando até desaparecerem no fim do corredor. As chamas se dissiparam completamente.

O que estava atrás de mim também desapareceu, largando o corpo ali mesmo nas minhas costas – que nojo!

Mas antes que eu tivesse pelo menos tempo de começar a pensar em tudo que aconteceu, outra coisa inacreditável se sucedeu: os corpos dos membros do Culto Manju estavam se desfazendo em um tipo de farelo cintilante que subia e se desvanecia no ar.

Olhei mais de perto e eram como pequenos cubinhos em um tom verde bem claro, beirando o branco absoluto. O que havia espocado no corredor também se desfez, assim como seus órgãos e sangue... tudo se extinguiu completamente!

As dores voltaram com força total a castigar meu corpo, então só deixei que meu corpo desabasse no piso de pedra irregular.

Soltei um suspiro prolongado, fechando os olhos e respirando devagar.

 

“O que... aconteceu aqui?”, foi a primeira e última a que me permiti pensar. 

 

  



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