Cheaters Brasileira

Autor(a): Kuma


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 23: Lembranças de um coração hesitante

 

Na ||TORRE DO MAQUINÁRIO||, o avanço até o topo continua...

PLAYER: [Arthur]

 

Não se passou muito tempo desde nosso encontro não tão amigável com a guardiã da ||TORRE DO MAQUINÁRIO||, Riful, e aparentemente já tínhamos algumas informações que poderiam ajudar muito da próxima vez que a encontrássemos. Assim que saímos do ||RESERVATÓRIO||, uma área isolada onde se era feito o reparo e reestruturação de todo o maquinário defeituoso da torre, já encontramos mais uma recepção no corredor principal que levava para a passagem indicada pelo zelador.

Uma pilha de golens de maquinário antigo sucateados e extremamente agressivos.

 


NOME: GUARDIÃO DE MAQUINÁRIO ANTIGO

RAÇA: GOLEM

NÍVEL: 18

HP: 55.000/55.000

ESCUDO: 10.000/10.000

HABILIDADE: PUNHO TECNOMÁGICO

DESCRIÇÃO: Grandes robôs de maquinário antigo com enormes punhos que soltam faíscas. Suas placas, mesmo que enferrujadas e amassadas, lhes conferem proteção extra.


 

Esses eram especiais; bem mais resistência, um escudo de choque que envolvia sua lataria robusta e amassada e grandes punhos que descarregavam uma energia latente que poderia fritar qualquer coisa que tocassem. Bem intimidador eu diria, mas não seria problemas para eu bloquear com Salamandra. Minha Relíquia Hospedeira poderia sugar aquele excedente de energia sem maiores problemas.

“Droga. Mais dessas coisas de novo?!”, resmungou Juniorai já em posição com a //WINGSLASH//.

“E esses estão mais equipados!”, analisei.

“São os Guardiões da Sala Mãe! Devem ter sido atraídos por nossas atividades aqui no ||RESERVATÓRIO||!”, exclamou o robozinho medroso, escondendo-se atrás de mim.

Sala Mãe?! São os guarda-costas da sua chefe, então?”, perguntou Junior franzindo o cenho.

“Eles são os responsáveis por guardar e proteger o coração da torre e nossa mestra, Riful.”, informa o zelador, a voz robótica farfalhando.

“Mesma coisa, robozinho.”, disse Juniorai avançando contra a linha fechada de robôs.

Os guardas então se fecharam e um quebrou a formação para repelir o ataque de Juniorai de frente. A grande máquina carregou seu punho de ferro e desferiu um golpe que explodiu em fagulhas no fim de seu trajeto. Junior parou sua corrida e deslizou por debaixo da máquina, apenas tocando o membro erguido do Golem de maquinário antigo com a ponta do machado.

|AUMENTAR CARGA|!”, exclamou ele, levantando-se logo em seguida para atacar o resto da formação.

Ao anunciar o nome da habilidade, o robô afundou no solo com o peso avassalador que recaiu sobre seu corpo de metal. Aproveitei o momento para acompanha-lo na ofensiva. O que me deixava mais puto é que ele nunca tinha um plano ou estratégia para atacar, mas somente atacava como se fosse instintivo; de forma totalmente impensada e sem qualquer tipo de cuidado. Logo eu que sempre fui educado desde pequeno a seguir planos e coordenadas para executar meus ataques ao longo da...

“É por isso... que você é fraco.”

“...!”, eu parei no seco antes que começasse a correr.

Nesse momento, a linha de defesa montada no corredor já havia se dispersado com o avanço de Juniorai e ele estava lutando contra vários golens de Maquinário antigo.

“Isso mesmo...”

S-Salamandra?!

“Você... é fraco porque pensa demais e age de menos. Não pense, só ataque. Mate. Destrua. Conquiste!”

Eu segurei minha cabeça com as duas mãos e balancei em uma tentativa desesperada de remover aquela voz que açoitava minha mente.

“Não! Não vou fazer suas vontades, seu maníaco!”

“Você não se lembra de quando usou meu poder no templo? A sensação de domínio, de vitória...”

E de repente um filme se montou na minha cabeça do momento em que Salamandra finalizou Liamaru com uma técnica que, até aquele dia, nunca havia usado antes e a reduziu a pó. Foi uma sensação que nunca iria me esquecer.

A sensação de se perder em si mesmo.

 

 


*VUUUSSH*

“ARTHUR! O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO?!”, o grito de Juniorai me despertou no momento em que eu iria ser alvejado por um punho enorme de metal faiscante.

 

Acordei bem a tempo! O punho passou raspando no meu rosto e as descargas queimaram meu corpo ao ficarem muito próximas. Mas de certa forma foi bom ter levado esse quase ataque; me fez acordar para o combate que estava acontecendo.

“Ai! Droga!”, grunhi, sentindo cada poro da minha pele gritar com as queimaduras.

“Acorda, Arthur! Está se parecendo comigo, cara!”, gritou Juniorai fatiando mais um pedaço de lata com o machado.

“Certo... Argh!”, e começa de novo. Aquela sensação esquisita e assustadora. Era como se grandes e pesadas garras estivessem sobre os meus ombros e alguma criatura horrenda estivesse fungando na minha nuca, enquanto salivava.

“Use... meu poder... e vai acabar rapidamente com isso.”, a voz tentadora de Salamandra continuava a me atormentar.

CALA ESSA BOCAAA!!”

*CRAAASH!!*

Em um rompante de fúria e desespero, fechei as garras sobre a cabeça do robô que me atacava e a esmaguei como se fosse uma fruta podre e depois lancei o resto do corpo desativado para frente. As descargas da máquina destruída reverberam nos golens próximos e pareceu atordoa-los por alguns segundos. Tempo o suficiente para me permitir agir.

Contrariando qualquer comando de Salamandra, eu ataquei usando apenas a força e a técnica, evitando utilizar qualquer habilidade mágica, mesmo que fosse simples. Quanto menos eu me valesse da ajuda dele, menos opressão ele teria sobre minha mente.

Mas acho que as coisas na prática não são tão simples quanto na teoria.

“Merda. Esse metal... é muito duro!”

Arthur! O que está fazendo?!”, Junior repeliu uma sequência de dois ataques de golens diferentes e recuou até me alcançar.

“O que foi, Junior?! Não vê que estou... ocupado aqui?”, eu estava arfando muito, cansado do intenso combate físico com as máquinas. Pelo visto, combate corpo a corpo não era meu ofício.

“Por que não está usando nenhuma skill?! Tá querendo complicar a gente?!”

Eu preferi o silêncio. Ainda não saberia explicar isso para Juniorai e nem sei se eu deveria, já que é um problema só meu e ele não tem nada a ver com isso. Era algo que eu tinha que lidar sozinho.

“Bom... eu...”

“Cuidado! Pela frente!”, Junior projeta seu corpo para baixo e me puxa com ele antes que eu terminasse de falar, nos livrando de um ataque elétrico que abriu um enorme buraco chamuscado na parede mecânica. “|AUMENTAR CARGA|!”

Junior tocou o machado na perna do golem e sua habilidade ativou, fazendo-o afundar no solo e se esmigalhar com o próprio peso. Logo atrás do que estava a frente tinha mais cinco golens descendo das escadarias do fim do corredor. Juniorai e eu abrimos caminho por entre as máquinas estabanadas, driblando as muitas peças e carcaças de metal abarrotando o pequeno espaço do corredor e correndo o sério risco de tropeçar miseravelmente em qualquer uma delas.

“Acordem a mestra! Desejo sucesso e eficiência em sua tarefa, aventureiros!”, gritou o Zelador, lá de trás, a voz robótica falhando.

“Se prepara que nós vamos passar.”, disse Juniorai enquanto corria e me conduzia por entre a bagunça causada pela batalha.

“O que... você... está pretendendo... Junior?!”, perguntei, cadenciando a respiração para não desfalecer durante a corrida.

“No três a gente pula, certo? Um...”

“O QUE?! COMO ASSIM, PULAR?!

“Dois...”

E outra parede de golens de maquinário antigo se montou entre nós e a escada; e estávamos em rota de colisão com ela!

“JUNIOR!!”

“TRÊS!! AGORA!”

Saltei, mas ele não.

“...!!”

“O QUE?!”

“Droga! |REDUZIR CARGA|!”

Eu saltei um pouco antes do “agora” e Juniorai não saltou ao mesmo tempo que eu, então sua habilidade não fez com que o salto me projetasse para o outro lado da barreira como o dele. Eu havia dado um pulinho normal enquanto ele praticamente voou por cima da linha de robôs enfileirados e prontos para me partirem ao meio.

“MERDA, JUNIOR! |BOLA DE FOGO|!”, me vi forçado a usar uma habilidade mágica e abrir caminho à força, perfurando o bloqueio com uma grande explosão de fogo que fritou três golens que estavam na frente enquanto o resto se reprogramava para tentar nos alcançar do outro lado.

O golem que estava exatamente na minha frente explodiu com o dano bruto que veio de uma vez e várias de suas peças saíram voando pelo corredor cobertas em chamas, algumas quase acertando Juniorai.

Depois dessa mancada, ele merecia mesmo!

“Seu demônio! Você... disse que era para pular... no TRÊS!!”, resmunguei, enquanto arfava e tossia.

“Não cara... é que você entendeu errado... ah, deixa pra lá! Não temos tempo pra isso! Olha os robôs vindo nos pegar! Temos que ir logo!”

“E-e-espera... aí! Deixa... eu recuperar... fôlego prim...”

“Vamos, cara! Não temos tempo para isso!”, Junior me puxou pelo braço e forçou meu corpo a correr em modo automático escada acima. A essa altura, se eu não morresse para as máquinas ou com falta de ar, eu já não morreria mais com nada.

 

 

“Ufa...essa foi por pouco...”, Junior repousou o machado na parede e passou a mão na testa suada, ofegante.

Eu só deixei meu corpo fatigado desabar sobre os degraus, sentindo meus pulmões queimando como brasas vivas. O ar que eu respirava era quente e fazia minhas narinas arderem intensamente.

“Esses... combates repentinos estão... acabando com a gente.”

Junior mexeu a cabeça, parecendo concordar comigo. Até ele devia saber que ataques tão aleatórios e descoordenados assim não estavam ocorrendo por simples coincidência.

Devia ser obra daquela menina.

E então, um estrondo seguido de um grande tremor:

*BRUUUUUUM*

“...!!”

A torre!

Estávamos bem habituados com isso até aquele momento. Aquele grande barulho seguido de tremores significava que a torre estava mudando de forma novamente. Junior rapidamente tomou seu machado em mãos e eu me levantei veloz; ficamos de costas um para o outro e esperamos para ver quais seriam as transformações naquele espaço minúsculo.

Porém, para a nossa surpresa, nada aconteceu.

A torre parou de tremer, o silêncio voltou e o lugar em que nós estávamos permanecia o mesmo.

“O que foi que aconteceu? Por que esse espaço não mudou?”, perguntei, confuso.

“Não faço a mínima ideia.”, respondeu Juniorai.

“Será que foi...?”

“Riful... pelo visto, ela está querendo mesmo que cheguemos até ela.”, deduziu ele, continuando a subir as escadas. “Vamos indo logo então. É rude fazer uma loli esperar.”

“Quer parar de chamar ela assim? Só o termo parece ser algo ofensivo.”, disse, franzindo a testa.

Junior riu.

“HAHAHA! Depois eu te conto sobre isso. Me lembrei de algo interessante.”

“Prefiro nem saber.”

Pense comigo: uma escadaria escura, apertada, em forma circular e que parecia não terminar nunca; nem mesmo tinha uma única falha sequer em nenhum degrau. Para mim, esse era o lugar perfeito para uma armadilha mortal, mas não encontramos nenhuma pelo caminho. Nem nos degraus, nem nas paredes ou do teto.

O caminho estava completamente livre para nós. Como se não quisesse mais no impedir.

“Será que o Junior também percebeu isso?”, me perguntava a cada novo degrau que subíamos.

Só tinha o silêncio em um lugar fechado e quente, e a tensão só aumentava cada vez mais. A sensação de que estávamos próximos do nosso destino só apitava mais e mais alto. O que será que nos aguardava no topo dessas escadarias? O que Riful estava preparando para nós para permitir nossa subida?

Só de imaginar eu temia por nós, mas principalmente pelo Junior. Minha maior preocupação no momento, entretanto, era Salamandra.

“Eu não posso me permitir perder o controle! Não posso! Não posso! Não posso! Não posso!”

Repetia isso para mim durante a caminhada, doutrinando meu espírito e adestrando meu coração a se manterem firmes ante os anseios genocidas de Salamandra. Enquanto o fazia, lembranças começam a surgir e uma estranha sensação de nostalgia, que eu mesmo me condenava em me permitir sentir, me fazia soltar leves suspiros involuntários.

Minha mente foi transportada no tempo.

 

 

 

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||MONASTÉRIO DA ORDEM DOS DOUTRINADORES||, ao extremo nordeste de ||ARCÁDIA||. Alguns anos antes...

A nova temporada chegou trazendo as folhas verdes e vigorosas, assim como os novos e ativos discípulos do monastério!

 

“Vivian!”, o velho monge desenrolava um grande pergaminho contendo uma lista de nomes.

“Presente!”, uma voz feminina e calorosa gritou no meio de vários jovens.

“Dorval!”, chamou mais outro.

“Presente, mestre!”, responde.

“Arthur!”

Silêncio.

“Arthur?”

Nada.

“Mestre Honfuu!”, um dos discípulos ergue o braço, chamando pelo velho.

“Diga, Toya.”

“Arthur não veio ou vai chegar atrasado de novo com a roupa rasgada!”

Os outros discípulos ousaram uma gargalhada na frente do velho monge. O rosto enrugado e enjoado do mestre daquela divisão se contorceu em uma expressão furiosa.

“Silêncio! Arthur não veio mais uma vez, ora! Pois ele não participará do encerramento dessa formação!”, esbravejou ele, enrolando o pergaminho de novo.

Antes que terminasse de enrolar a relação, eu adentrei o pátio pelo portão de pedra lascada, quase botando os bofes pra fora.

“C-C-CHEGUEI!”, anunciei minha chegada. Odiava ter que fazer isso e agora todos os olhos estavam em mim.

Inclusive os olhas irados do mestre Honfuu que podiam me matar naquele mesmo instante.

“ARTHUR! ESTÁ ATRASADO DE NOVO, MOLEQUE LAZARENTO!”, rosnou o velho.

“Sinto muito, mestre. É que eu...”

“CHEGA DE DESCULPAS! COMO CONSEGUE SER TÃO IRRESPONSÁVEL, SEU MOLECOTE MALCRIADO?!”

Depois de uns dez minutos de sermão da montanha, o último encontro e conclusão do treinamento básico teve início. No fim do dia, todos do Monastério e algumas figuras importantes da cidade estavam presentes para a formatura dos novos Doutrinadores, inclusive minha mãe que era uma das Doutrinadoras Chefes da divisão de selamento.

Acho que só por causa disso, o mestre Honfuu me aguentou até aquele momento. Eu não sabia muito bem como deveria me sentir, e nem reagir diante daqueles acontecimentos tão... diferentes pra mim. Acho que eu deveria estar feliz por estar me tornando aquilo que minha mãe sempre desejou? Devia estar nervoso ou mesmo preocupado com o futuro?

Só via aquele momento perfeito como algo que estava, de alguma forma, destinado a acontecer e não que fosse algo para se estar feliz ou para se comemorar. Por que eu sentia tais coisas?

Minha mãe estava feliz, meus amigos estavam felizes e todos os meus mentores. Era um momento para se estar feliz, não é? No momento, eu tratei aquilo nada mais do que um sentimento trivial sobre algo simples. Afinal, não havia o porque de complicar algo tão simples como aquele fato – afinal, não são esses momentos algo para se comemorar

“É tudo como é para ser, não é?”

Ou não...

*VUUUSH*

“...!”

De repente, fogo. Muito fogo! Eu me encontrava sozinho no meio de um grande pátio em chamas, onde toda a minha turma ficava nos tempos de treinamento para atividades físicas e treino de magias. Pilhas intermináveis de cadáveres enfeitavam o chão; a morte espreitava por todos os lados e o fogo consumia tudo que um dia foi um grande templo dedicado à deusa e à ordem.

“C-como... isso foi... acabar assim?”, minha voz saía quase muda. Tudo que pude enxergar a minha frente foi uma grande e imponente silhueta. Algo enorme se aproxima de mim, coberto e obscurecido pelas chamas dançantes. Devia ter mais de dois metros de altura, largos braços e um corpo truculento que escondia em sua silhueta, sua cabeça pequena. Em cima dele, uma outra forma feminina estava sentada de pernas cruzadas e se segurando no que seria o grande e pesado gorjal de sua armadura.

“O que vocês...”, estava quase em transe, talvez uma reação natural diante da morte e do medo.

E então vários soldados surgiram marchando entre colunas de fogo e pilastras ruindo, entrando em formação; de fundo, um horripilante som de gritos, explosões e o som vil da carne sendo dilacerada por lâminas preenchiam meus ouvidos. Minha vontade era de sair correndo dali, mas meus músculos paralisaram e só conseguir observar, com meus olhos esbugalhados de medo, minha morte se aproximando.

“É ele mesmo?”, a voz feminina perguntou ao grandalhão.

Ele parecia andar recurvado devido ao peso de seus potentes músculos, tanto que quando ficou de postura ereta, seu tamanho pareceu duplicar.

“Não consigo ver bem, mas acho que é ele sim.”, responde uma voz grave e grosseira.

“Então nossa visita já valeu a pena. Hihihi...”, a menina riu em um malévolo retoque de crueldade.  

De canto de olho, eu pude ver o grandão arrastando algo com sua mão gigante; para o meu horror, era o velho Honfuu que estava ali, ferido e derrotado. Um de seus braços havia sido arrancado e um grande buraco que espirrava sangue fora feito na região de suas costelas, lhe proporcionando uma dor inescrupulosa.

Não sei sequer como o velho não havia morrido ainda.

“Pode mata-lo.”

“....!”

“Mesmo? Posso mesmo?”, perguntou o monstro, animado.

“Só temos que garantir que algum doutrinador fique vivo, não importa qual. O resto, podemos brincar à vontade.”, disse a mulher suprimindo um riso sádico.

“Muito bem!”, ele levantou o mestre Honfuu pela cabeça e o deixou suspenso em minha frente.

“Você é Arthur, não é?”, perguntou a mulher em um timbre perigosamente baixo.

Eu não consegui responder. Minha garganta se fechou completamente e eu estava quase sem ar.

“Deve estar sentindo muito medo e desespero agora, não é? Um sentimento tão ruim que não consegue sequer falar, não é?”, e ela continuava a falar aquilo enquanto o monge grunhiu e esperneava de dor. “Pois saiba que isso não é nada comparado ao nosso sofrimento!”

“O que... o que vocês...”

“Acho que ele sabe falar.”, comenta o grandalhão.

“Observe atentamente, Arthur. Todo o inferno que nós passamos. Todo o sofrimento, angústia e desespero... sinta tudo isso! Sofra com isso!”, ela fez algo que assimilei sendo um sinal de cabeça.

Então os segundos que se passaram a seguir foram extremamente rápidos e lentos ao mesmo tempo. Rápidos porque aconteceram em uma fração de segundos, mas foi lento porque os segundos que se transcorreram no momento em que olhei pelo que seria a última vez para o meu mestre e mentor, pareceram uma eternidade.

Sua face semimorta me dizia algo. Seus lábios feridos e velhos mexiam-se lentamente e com dificuldade, tentando me passar uma mensagem.

“San... tu... ário...”

“...!”

E então o som de vários ossos se partindo e quebrando simultaneamente junto com o da carne sendo apertada penetrou meus tímpanos, acompanhado da agoniante imagem do meu mestre sendo brutalmente morto na minha frente. Por um momento, é como se o mundo tivesse fugido dos meus pés.

O Monge Honfuu teve seu crânio completamente esmagado por aquela mãozona e seu corpo suspenso convulsionou algum tempo antes de ficar completamente inerte, segundos depois. Uma cachoeira de sangue e miolos escapou por entre os dedos do monstro e então ele arremessou o corpo na minha frente para que eu comtemplasse, em primeira mão, aquela barbárie.

Após isso, várias imagens desconexas vieram na minha cabeça; a imagem da minha mãe que me salvava daquelas duas figuras malignas e ficava para trás para ganhar tempo para mim e outros Doutrinadores, um portal e uma grande santuário onde estava uma espécie de manopla antiga selada dentro de um grande círculo mágico.

E então, a imagem dele penetrou minhas lembranças.

Salamandra! Um grande demônio escarlate que eu via de vez em quando envolto em chamas e com enormes e mortais olhos vermelhos expiando minha alma; sempre estava no canto mais escuro da minha alma, se esgueirando pela escuridão e esperando o melhor momento para possuir meu corpo e toma-lo de mim.

Tomar tudo que eu tenho!

“Não... NÃO POSSO PERMITIR ISSO!”

 

 

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Momento presente...

 

“NÃO!”

“...?!”

De repente eu estava de volta naquela escadaria circular ascendente, dentro da torre. Juniorai vacilou na passada com o susto que tomou.

“Que porra é essa, Arthur? Tá tudo bem?”, perguntou Junior, levemente irritado e preocupado.

Eu me escorei na parede, ofegante. Coração palpitando e eu sem conseguir respirar direito, então demorei algum tempo para responder:

“N-nada...”

“Quem nada é peixe. Anda logo! Diz o que é.”

“Eu só... me lembrei de algumas coisas ruins, só isso.”, respondi, cadenciando a respiração para me acalmar.

Junior arqueou uma sobrancelha.

“Quer conversar cara?”

“Não há necessidade.”

“Tem certeza?”

“Tenho sim. Devemos... continuar”, me levantei e continuei subindo as escadas tentando passar uma postura firme. Não sei se fora tão convincente, mas Junior também não fez mais perguntas.

Tudo que eu queria evitar naquele momento era perguntas que eu me via na obrigação de responder. Perguntas que trouxessem aquelas lembranças envoltas por fogo e morte de volta.

“Huhuhuhu...”

E como sempre, Salamandra ria em seu modo zombeteiro habitual, então só poderia ignorá-lo como todas as outras vezes. Mesmo depois de vários anos, nada mudou.

“Mamãe... mestre... o que vocês estavam pensando quando me deram essa tarefa impossível?”, esse questionamento ficou comigo durante todo o resto do percurso.    

    

 

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||SALA MÃE|| da torre, alguns minutos depois...

 

Estávamos lá finalmente. Atrás de um grande portão de ferro, uma sala que não sabíamos se era grande ou pequena, estreita ou larga, nos aguardava. Tudo estava escuro – uma escuridão absoluta, tão escura que nem mesmo elfos com suas visões aguçadas conseguiriam enxergar lá dentro.

Eu e Junior nos reorganizamos na entrada de forma que sempre estaríamos andando um do lado do outro. Era como estar entrando em um abismo frio e profundo sem qualquer traço de luz ou esperança.

Pode parecer poético falar assim, mas para quem iria se enfiar naquela escuridão sem saber o que nos aguardava lá dentro não era nada poético.

“Arthur...”

“Sim, eu já sei.”

Meio relutante, eu usei de Salamandra para criar uma pequena tocha na palma da mão. Porém, algo bem inusitado aconteceu: mesmo eu criando uma tocha na minha mão, nada parecia estar mais claro e a escuridão continuava intensa na sala.

“Que merda é essa? Bugou o fogo por acaso?”, disse Junior.

“Bugou? O que é isso?”, perguntei, confuso.

“Ah, deixa pra lá! Vamos andando então, um do lado do outro.”, respondeu Junior, meio impaciente. Mesmo o brilho de Picker não irradiava de forma alguma naquele espaço. Era como se a escuridão estivesse nos nossos olhos e não no ambiente.

“Por que não está ficando mais claro?!”

Wiwiwiwi”, Picker parecia incomodado, o que significava sempre problema.

“É... tem alguma coisa errada com esse lugar.”, comentei, apagando o fogo na mão.

E de repente, um grande pilar de luz surgiu de longe, focando em uma menininha que estava sentada de costas para nós. Sendo o único foco de luz naquela imensidão escura, por um momento nós não conseguimos encará-la diretamente até que nossos olhos se acostumassem com aquela claridade.

Além disso, nenhum barulho podia ser ouvido naquele espaço. Ao surgir aquela luz, uma série de ruídos e barulhos metálicos de engrenagens e peças trabalhando incansavelmente ressoaram na sala, preenchendo e ecoando em cada fresta do lugar. Eu e Juniorai nos entreolhamos, talvez decidindo silenciosamente entre nós se nos mantínhamos naquela distância aparentemente segura ou se nos aproximávamos mais.

Entre olhares e gestos com a cabeça, decidimos por continuar chegando perto da menina que julgamos ser Riful.

*NHEEEC... NHEEEEC*

“Gira… gira… gira… gira… gira... gira... gira...”

“...!”

“Ela está... sozinha aqui?”, questionei enquanto engolia em seco a cada passo.

“Riful?”

“... gira... gira... gira... gira... gira... gira... gira... gira... gira... gira...”

Ela parecia não saber que estávamos ali ou estava nos ignorando totalmente.

“Ei, pivete! Tá ouvindo?”, gritou Junior de novo.

E então o som das engrenagens cessa subitamente, quase nos matando de susto. Paramos de andar a poucos metros dela.

“E agora...”

Wiwi... wiii”, pelo som de Picker, ele estava tão assustado quanto nós.

“Há... já nos... conhecemos?”, só a cabeça de se virou e o corpo continuou de costas. Seu rosto era vazio de qualquer tipo de sentimento ou expressão.

Nós recuamos alguns passos, as pernas trêmulas e os braços rijos. Era uma cena bem assustadora considerando que estávamos praticamente no “nada” junto com ela. Até mesmo a possível única saída por onde viemos havia se perdido no meio do escuro infinito.

Dizendo aquilo, Riful se levanta de seu lugar. Ela parecia brincar com algumas roldanas no chão enquanto sempre repetia a mesma palavra, metodicamente. Em dado momento, seu rosto antes inexpressivo agora sorria como se lembrasse de algo bom repentinamente.

“Ah, sim... já são... 48.874.323.436.734.234.123.445.679 voltas... que coisa... né?”

“O que?”, exclamou Junior, não entendendo absolutamente nada. Não que eu estivesse entendendo também.

Ela havia se levantado, mas não exalava nenhuma aura perigosa ou com intenção de no atacar. Além disso, suas ações, bem como suas palavras eram completamente desconexas e aparentemente sem contexto nenhum. Então de repente, como se ela se lembrasse de que éramos inimigos e que estávamos ali para enfrenta-la, o rosto sorridente de Riful então se nublou.

“Papai... não permitiria... a entrada... de... estranhos...”, além disso, tudo que ela falava era irritantemente pausado, como se estivesse quebrada.

“O que?”

“Acho que agora ela se tocou que somos inimigos, Junior.”

Deduzi que seria isso. Pelo modo como seu olhar pareceu se transformar de um segundo para outro em um olhar ameaçador e assassino me dizia que agora ela nos via como inimigos ou, no mínimo, invasores indesejados.

De repente, outra ação inesperada; ela virou sua cabeça em 180 graus de novo, focando nas roldanas as quais estava brincando a poucos momentos atrás e percebendo que as mesmas haviam parado de girar.

“Parou...”

“...?”

“Parou... de... girar... porque... parou... de novo...?”

“O que essa maluca está dizendo? Do nada ela parece que vai atacar, depois foca em outra coisa diferente e então começa a falar várias coisas sem sentido!”, pensava, sentindo calafrios.

“Acho que já vi esse filme antes... se prepara, Arthur.”, advertiu Juniorai, pondo a mão no cabo de seu machado.

GIRA, GIRA, GIRA, GIRA, GIRA, GIRAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!!!!”

Então a torre inteira é abalada por grandes tremores que nos derrubaram, a escuridão agora se tornara um caos de luzes cinzas e vermelhas piscantes dentro da sala, e todas as engrenagens começam a girar enlouquecidamente em uma velocidade absurda, tendo algumas inclusive voando de seus lugares ou se quebrando. Faíscas e ruídos metálicos ensurdecedores preencheram nossos tímpanos.

“DROGA! ELA ENLOQUECEU DE NOVO!”, gritou Junior, as duas mãos tampando os ouvidos.

“MERDA! MERDA! O QUE DIABOS VEM AGORA, PORCARIA?!”, praguejei.

Depois do show de pisca-piscas, a luz voltou para o lugar e finalmente podemos ver o quão vasto era a ||SALA MÃE|| da torre; tinha o comprimento médio de um quarteirão de Aminarossa inteiro, em formato oval com uma grande cúpula ao centro. E pudemos perceber com isso também que duas enormes sombras se projetavam em cima de nós.

Então como reflexos involuntários, recuamos para trás na direção de Riful e batemos os olhos em dois Golens de Maquinário Antigo gigantescos que tinham 4 vezes o tamanho dos que enfrentamos nos corredores antes de chegar aqui. Um era um grande robô vermelho de grandes lâminas saídas de suas costas e corpo mais fino e mais biônico se comparado ao outro, mas também com grandes armas que entupiam quase todas as partes livres de seu corpo na parte da frente; já o segundo era mais largo e robusto, de um metal temperado e amarelo com um grande núcleo de energia em sua barriga, uma cabeçorra pequena se comparada ao seu grande corpo em formato esférico e gigantescas mãos mecânicas. Em suas costas havia vários tubos que lembravam descargas que liberavam fumaça.

“Que droga é essa agora?!”, gritou Junior, sacando seu machado.

“Droga! E eu achando que teríamos que lutar só com ela!”

Wiwiwiwiwiwiwi!”

“Se acalma, Picker! Que droga!”, gritou Junior.

“Gigaton... Megaton... se livrem... dos... invasores... antes que... o papai... volte.”, ordenou ela.

Os dois robôs gigantes liberaram uma cortina de fumaça por entre suas juntas e começaram sua caminhada para nos pegar. Pelo jeito, não seria hoje que eu me livraria da sensação de perigo, muito menos de Salamandra.

Salamandra essa que agora tinha todo o contexto que precisava para me importurnar.    



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