Cheaters Brasileira

Autor(a): Kuma


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 21: A voz que desce do interior do labirinto

 

||TORRE DO MAQUINÁRIO||, nos limites da orla continental.

PLAYER: [Juniorai]

TIC... TAC... O tempo se vai... as sombras se projetam... sobre o passado? O futuro? Ou sobre o coração das pessoas?

 

*POOOOW*

*CRAAAASSHH*

*ZIIIIIIIIIII*

*KABRUUUUM*

 

“Urgh! *arfando* já se foram quantos?”, perguntei quase largando o machado no chão.

Os olhos de Arthur ziguezagueavam entre os [Constructos de Maquinário Defasado] Lv. 20 que preenchiam cada centímetro quadrado daquele corredor. Três deles começam a disparar contra nós com seus canhões enferrujados, o lume dos tiros sendo a única fonte de luz daquela área escura.

“Não sei..., mas parece que estamos longe de termos algum sossego.”, responde ele, também ofegante.

Arthur deflete os ataques com a Salamandra, não tão rápido como antes devido ao cansaço do combate continuo, e totalmente desajeitado. Eu apertei a pegada no machado e, reunindo toda a força, vigor – e coragem, por que não? – em um só ataque e avancei pelas costas de Arthur com a //WINGSLASH//; saltei por cima dele e desferi um corte vertical na direção dos constructos com o poder gravitacional.

O corte produziu um vácuo extremamente pesado que destruiu completamente o solo e esmigalhou completamente a lataria já danificada das máquinas – nota: a taxa de defesa deles era bem baixa por causa disso, então qualquer ataque, mesmo que simples, era quase HK em qualquer um deles. –, com o impacto e destruindo outros com as pedras que desceram com a explosão.

A única coisa realmente chata eram seus números. Mesmo podendo ser facilmente derrubados, os constructos se levantavam de novo e por vezes se remontavam no chão mesmo. Era como se cada peça de cada carcaça daquela estivesse imbuído de vida. Uma extrema força vital que estava impregnada não somente nos constructos, mas também na torre como um todo.

“*arfando* Terminamos?”

Arthur olhou em volta enquanto carregava uma bola de fogo na palma da garra. Não havia nem sinal de outros inimigos, mesmo entre os escombros.

“*arfando* Parece... que sim.”

Então eu larguei o machado no chão e me recostei sentado em uma das paredes, procurando recuperar algum fòlego. Tentava ao máximo poupar poções de vida para que durasse toda aquela raid, mas estava muito difícil o avanço.

Quantos andares já havíamos subido? 5? 10? Quem sabe, uns 50? Parecia uma subida sem fim em uma torre praticamente interminável.  

*tremores*

E aquilo estava acontecendo de novo.

“De novo! Segure-se Arthur!”, gritei.

“Merda!”

“A energia latente da torre está afetando o espaço novamente!”, disse Salamandra sentindo as vibrações. Pela reação alarmada de Picker sobrevoando nossas cabeças destrambelhado, aquilo devia ser verdade.

Eu me desequilibrei e cai, rolando de uma parede a outra do corredor com os primeiros tremores. Arthur também caiu e ficou a garra no chão, conseguindo se segurar. A sensação era de estar em um ônibus andando a 100 km/h em uma pista toda esburacada. Era como se uma mão gigantesca pegasse aquele corredor onde estávamos e movesse de lugar, colocando em outro.

De repente, as paredes se mexeram como pergaminhos sendo enrolados; elas se movem de lugar, umas somem e outras surgem em cantos aleatórios com os constructos também sumindo no processo.

O cenário daquela raid estava sendo completamente remontado bem ao nosso redor. Eu e Arthur ficamos o mais próximo possível um do outro para evitar uma separação indesejada.

Quando o grupo se separa em lugares como aquele entupidos de monstros e armadilhas, sempre dava merda. Uma fenda se abriu no chão e uma parede brotou bem abaixo de mim, me fazendo saltar para a esquerda. Arthur fez o mesmo, mas o solo se retirou bem rápido e ele quase despenca em um buraco aparentemente sem fundo. Outras paredes desceram por cima e seccionaram o corredor, formando outras novas passagens e uma bifurcação foi montada naquele pequeno espaço em que o chão se recolheu.

“Droga! O que vem agora?”

“WIWIWIWIWI!”

“Fica quieto, Picker! Que droga!”, rosnei, enfiando aquela bola de handball dourada e barulhenta dentro da minha brafoneira.

Foram bons minutos de agonia e suspense sem saber se seriamos esmagados por alguma parede, por algum teto ou cairíamos em um buraco que se abriria abaixo de nós, preparados para nos mover rapidamente mesmo com o cansaço intenso. E então, toda a torre se aquietou.

De repente estávamos em um espaço completamente diferente do corredor em que lutávamos anteriormente. Esse processo de metamorfose da torre já havia ocorrido umas três ou quatro vezes desde que entramos lá e posso dizer que sobrevivi a todas elas – e o mais impressionante: sem me separar do meu parceiro.

Quase fui partido ao meio, esmagado, triturado, empalado, queimado, soterrado, mutilado e peneirado. Do estoque de 120 poções que trouxemos, usamos 12 //POÇÃO DE CURA [M]//, 5 //POÇÃO DE CURA [G]//, 37 //POÇÃO DE CURA [P]//, 5 //NEUTRALIZANTES//– sim, ainda caímos em uma armadilha venenosa em que eu quase fui pro saco – e 7 //POÇÃO DE MANA [G]//.

Já imaginava na fortuna que eu gastei somente com cura naquela maldita raid! Contudo, com a baciada de monstros que enfrentamos no caminho – e a maioria deles era 2 ou 3 níveis acima do nosso –, nosso nível subiu loucamente em pouco tempo. Eu já alcançava facilmente o meu Lv.30 enquanto Arthur chegava perto do Lv.32.

Isso nos ajudou um pouco na progressão também, pois recuperávamos completamente nossa vida e mana ao subirmos de nível – porém nossas armaduras já começavam a pedir arrego.

Já havia inclusive maximizado habilidades importantes e que eu usaria com frequência, e outras que talvez eu usasse em uma batalha de chefe. Se eu pudesse escolher guardar aquelas habilidades para um possível elemento surpresa, eu guardaria.

E voltamos ao caminho. Como havia mencionado, o cenário mudou por completo e antes o que era um corredor longo e escuro agora se tornara uma bifurcação iluminada por duas grandes lâmpadas. A passagem da esquerda nos levava a outro corredor bem estreito e a da direita, uma escadaria que subia, talvez para outro andar.

“E agora? Tem alguma ideia por onde vamos?”, perguntou Arthur olhando para as duas direções, claramente indeciso.

Eu dei uma boa olhada nas duas passagens. Era sempre aquela mesma decisão de capital importância que todo aventureiro tinha que tomar. Qual caminho iria nos foder menos?

E a resposta estava bem óbvia:

“Vamos para a direita!”, decidi enfim.

“WIWIWIWI.”

“Mesmo? Tem certeza?”

“Claro! A direita é sempre o melhor caminho!”, não era um argumento muito convincente, muito menos naquela situação.

Arthur suspirou.

“Acho melhor irmos pela esquerda.”, contestou ele.

“Ué... se já tinha esse caminho em mente, porque me perguntou então, indivíduo?”

“Porque você sugeriu a mesma coisa há uns... três andares atrás e da última vez quase viramos picadinho em uma armadilha de serras!

“Ah, meu filho... poderia ter sido qualquer direção, não é? Eu chutei uma e infelizmente era uma armadilha. Fazer o que né?”, respondi dando de ombros.

Ele fez uma careta cruzando os braços.

“Pois dessa vez eu digo que devemos ir pela esquerda.”, contestou ele.

“AAAH? Mesmo? Esquerda nunca é um bom caminho, cara. Vai por mim.”

“E porque não?”, perguntou ele, me fuzilando com os olhos.

“É... então... é tipo assim...”

“WIWIWIWIWI!”, aquela bolinha irritante saiu debaixo da brafoneira e já começou a fazer aqueles ruídos insuportáveis.

Uma coisa era certa: pelo menos ele me salvou de uma explicação ridícula que eu teria que dar para Arthur sobre a minha escolha da direita.

“O que foi, Picker? Se estiver com fome é uma pena, porque...”

“WIWIWIWI!! WIWIWIWIWIWIII!!”, ele girava e com seu rabo de seta apontava para a direção que Arthur recomendara.

“Acho que ele também quer que sigamos pela esquerda também.”, interpretou Arthur, contente por aquela coisinha estar concordando com ele.

“Isso é verdade?”

“WIWIWI!”

Ele subiu e desceu lembrando um aceno de cabeça positivo. Ele realmente estava votando pela esquerda também.

Fazer o quê, não é? Eram dois votos contra um – sem bem que eu não sabia se Picker podia contar como um voto.

“Então tá, né. Vamos pela esquerda, então.”

Então seguimos pela escadaria que levava para cima, talvez para um possível próximo andar. Os degraus eram disformes, difíceis de pisar e feitos de um metal bem quente. As paredes da torre inteira pareciam sempre estar se movendo em um mar de engrenagens, roldanas, porcas e circuitos. Era como estar dentro das entranhas de um robô gigante.

Seguimos subindo um bom tempo várias escadas, sem encontrar monstros e armadilhas; um caminho tranquilo de fato, porém algo curioso começou a ocorrer depois de um certo ponto na subida.

Subiamos até chegar em um ponto que a escada começou a distorcer. Os degraus aparentavam ficar cada vez mais íngremes e recurvados para cima, se nivelando aos poucos para formar uma rampa lisa e escorregadia.

“Que merda... Arthur...”

“É... eu já percebi isso. A escada está sumindo!”, disse ele, confirmando o que eu já notava a um bom tempo.

“Vamos apressar o passo então ou não vamos ter onde pisar daqui a pouco!”

Então começamos a subir as escadas às pressas, por vezes até escorrendo e tropeçando em alguns degraus. A escada realmente estava desaparecendo e dando lugar a uma rampa que, possivelmente nos faria escorregar até nossa morte. Corremos mais rápido ainda – o mais rápido que nossas pernas cansadas conseguiam subir – e já estava começando a me desesperar porque eu não via o topo da escada.

“ALI!”, Arthur gritou apontando para o alto.

Nós víamos uma passagem aberta. A porta de metal estava escancarada apenas aguardando nossa subida.

“Rápido!”

E um pulo! *VUUUP*

Saltamos como se fôssemos alçar voo. Arthur conseguiu passar, mas faltou para eu conseguir também.

“Ah, merda...”

*TCHAC*

“PEGUEI!”, Arthur segurou minha mão com a garra rapidamente, impedindo de eu escorregar. Ele juntou energia e, concentrando tudo em uma única puxada, ele me jogou para dentro da porta, me fazendo rolar alguns centímetros com a projeção. Assim que a escada desapareceu, a porta se fechou sozinha e de forma claramente intencional.

“*arfando* Você... está bem... Junior?”, perguntou Arthur, ofegando bastante.

Eu demorei um pouco para responder, reunindo ar nos pulmões. O coração batia descontroladamente em um ritmo acelerado.

“*arfando* Eu... estou... obrigado... Arthur.”, agradeci sem conseguir respirar direito ainda.

Ali ficamos por um tempo, nos recuperando do susto e do momento de quase tragédia que aconteceu. Ninguém poderia saber o que teria acontecido comigo se eu tivesse deslizado aquela rampa, mas preferimos não ficar pensando em tais possibilidades.

Com o fôlego recuperado, a última coisa que fiz foi avaliar meus status atuais antes de prosseguir para o que seria uma grande sala aberta.

   


FORÇA: 430(+100)             CONSTITUIÇÃO: 412(+202)

DESTREZA: 175(0)            SABEDORIA: 200(+150)

ESPÍRITO: 365(+75)          HP: 2450 / 3500

Lv.30                                     MP: 424 / 1970

<SEM STATUS ADICIONAIS>

EFEITOS NEGATIVOS: [FADIGA] > - 130[FORÇA], - 120[DESTREZA], + 75[ESPÍRITO]


        

 

“O QUE!!”, soltei um grito súbito.

“...!”, Arthur tomou um leve susto, do outro lado do corredor.

“Por que minha [MANA] está tão baixa?! Como assim, velho?!”

“Como assim, Junior? O que você...”

“Minha mana, velho. Eu nem usei tanta skill para estar com minha mana quase no fim! O que aconteceu?!”

Rapidamente eu fucei os status de Arthur para verificar se estavam normais:

 


FORÇA: 200(0)             CONSTITUIÇÃO: 250(- 70)

DESTREZA: 150(0)            SABEDORIA: 460(+280)

ESPÍRITO: 585(+375)          HP: 6500 / 6860

Lv.32 (...)


 

“Não... a mana dele está normal. O que houve com a minha, então?”

“Junior... descansa um pouco que daqui a pouco continuamos.”, recomendou Arthur.

“Pode ser, cara. É que tipo... eu não usei quase nenhuma habilidade e minha mana secou muito rápido. Tem alguma //POÇÃO DE MANA// sobrando aí?

Arthur vasculha o inventário – que ele ainda não tinha consciência de ser um – que era sua bolsa, mas pelo olhar de negação e do modo como ele continuava procurando sem achar, eu já sabia a resposta. E eu não gostava nada dela.

“Não, Junior. Acabou. A que usamos na outra luta era a última.”, disse ele com pesar.

“Aí complica, né...”, eu fiz uma pausa, suspirei e mirei em direção ao grande salão que se encontrava mais a frente, temeroso. “Continuar sem mana é complicado. Se encontrarmos um chefe ou subchefe da Raid mais a frente, vamos estar com sérios problemas.”

E não só eu. Para alguém de uma classe mágica como a do Arthur perceber que está sem uma reserva de mana era desesperador. A única coisa que podíamos fazer era cruzar os dedos e rezar para que não houvesse mais uma horda de monstros ou um boss a frente.

“...”

 


“Desculpe, Junior..., mas não posso deixar que saiba que foi culpa minha...”


 

Arthur me ajuda a levantar com uma cara estranhamente melancólica e seguimos caminho. Mesmo sem mana ou exaustos, não podíamos ficar muito tempo parados em um canto só com receio da torre se modificar sozinha novamente. Esperava até que isso fosse algo scriptado – e até aquele momento eu ainda tinha quase certeza de que era –, mas até agora não havia identificado nenhum padrão para aquele fenômeno. Logo concordamos que se tratava de um elemento totalmente aleatório da raid.

Não podíamos correr o risco de sermos jogados para trás ou perdemos o rastro do topo.

 Ao cruzarmos o portão, nos deparamos com um grande salão aberto, com peças, fusíveis, engrenagens e todo o tipo de lataria espalhados pelo chão. Já me deu até um certo cagaço só de estar no meio de tanto ferro-velho – inclusive eu acho que já estava pegando um trauma de constructos.

Em meio a tanto lixo, havia uma espécie de pátio central com pilares enormes flutuando e demarcando a área circular que ele ocupava. Acima dele, havia um buraco gigantesco coberto por uma porta de ferro em espiral tão enorme quanto o próprio buraco. Curiosamente, diferente de todo o resto daquela área, o pátio parecia intocado, bem limpinho e sem qualquer sinal de inimigos por perto.

Mesmo depois de muito tempo rodando naquela torre, era a primeira vez que víamos uma área como aquela.

E também era uma área que estava fora do mini mapa. Por um momento meu coração parou de bater pensando que havíamos caído em alguma armadilha ou tínhamos saído da rota programada por Picker.

Mas não era o caso e o que viria a seguir confirmou isso.

“Que lugar é esse?”, perguntou Arthur, espantado.

Eu nem consegui falar de tão maravilhado que eu estava. As paredes eram feitas de engrenagens e circuitos mecânicos em toda a sua extensão e não somente em alguns lugares como era no restante da torre; era como um grande mosaico de mecanismo que giravam e funcionavam em uma sincronia perfeita e agradável aos olhos. Eu podia passar vários minutos olhando cada lugar, cada roldana, lâmpada, engrenagem, esteira e circuito daquele espaço e nem veria o tempo passar.

“Estou... surpresa... que chegaram até... aqui...”, uma voz feminina bem fininha e infantil tamborilou de repente no lugar, envolvendo toda a sala e fazendo um grande eco.

Ficamos rapidamente em guarda.

“Quem é você? O que você quer?!”, gritei, não vendo nenhum sinal de qualquer pessoa ou constructo.

“Não sinto nenhuma presença por perto. Será que ela está falando por algum dispositivo?”

“WIWIWIWI!”, Picker voltava a ficar agitado. Isso sempre acontecia quando ele sentia alguma coisa.

“O que foi, Picker? O que você tá vendo dessa vez?”

“Junior! Olha!”

Arthur apontou para um constructo pequeno e incompleto, como uma boneca mecânica que fora desmontada. Suas duas pernas e o braço esquerdo estavam faltando, tendo somente o direito e ainda pela metade. Seu tórax e abdômen estavam expostos, revelando as partes mecânicas que a faziam funcionar e do seu rosto brotavam vários cabos pesados de aço que desciam de pequenos drones que levitavam ao seu lado.

Ela estava sentada em meio ao grande pátio, lembrando uma criança perdida e confusa.

“...?”

“Eu... quantas voltas... já passaram... desde que vocês... chegaram aqui? Acho que foram... 6.554.368.237.943 voltas...”

Nos aproximamos lentamente. Mesmo com uma aparência tão inofensiva eu já estava com a //WINGSLASH// preparada.

“Ainda... não parou...”

Mais estranho do que ter uma bonequinha mecânica semidesmontada na nossa frente em um lugar bizarro como aquele era a voz que ecoava no ambiente. Mesmo que a boca dela se movesse, a voz claramente não vinha dela. Aquela bonequinha somente simulava de maneira desleixada as palavras que eram ditas por algo que certamente não estava lá.

“O que é você?”, pergunto novamente.

A boneca de repente levanta a cabeça ligeira com um ruído metálico que me deu um susto fodido! Quantas vezes eu iria quase enfartar dentro daquela torre?

“Eu? Eu... sou eu...”

“...?”

“Eu... sou... esse lugar. Sou... tudo que... existe... aqui.”, respondeu ela.

“Como?”

“Junior... será que essa bonequinha não seria o que viemos buscar?”, teorizou Arthur, pensativo.

Ponderei na possibilidade, mas eu sentia que ainda não estávamos nem mesmo perto de alcançar o verdadeiro núcleo da torre. Independentemente de qualquer quest, mapa ou requisitos, meu instinto dizia que o que viemos buscar não estava ali.

“Meu... papai... me chama de... Riful...”, disse ainda a voz, revelando seu nome.

“Riful?”

Mais do que nunca eu sabia que estávamos em uma das raids iniciais do jogo. Tudo começava a se mostrar estranhamente familiar para mim – ou nem tanto já que fui eu quem projetei aquela bagaça inteira.

“Ele diz... que... eu sou... uma boa... menina.”

“Então, Riful? Onde está o seu papai?”, perguntei sem saber muito como proceder naquele diálogo. Algo como caixas de diálogo contendo respostas prontas agora me seriam uteis.

“Meu... papai? Ele... foi embora...”, respondeu ela em um nível que quem escutava aquilo entrava automaticamente em depressão.

“Como assim embora? Ele não devia estar cuidando de você?”, Arthur pareceu ir na onda também.

“Ele... disse... que eu... tinha que cuidar... da torre...”

“BINGO!”

“Espera aí, você que cuida da torre, Riful?”, pergunta Arthur, confuso com a declaração.

Para mim já estava bem óbvio, mas não queria interromper a cena. Vai que ela soltaria mais informações ou revelasse algo de útil para chegarmos ao topo.

“Eu... sou... a torre. Eu... sou... tudo... que existe... na torre...”

“...!”, Arthur ficou embasbacado assim como eu.

“Ué... e porque a torre tem voz de loli? Que viagem é essa?”

“É melhor... vocês... irem... embora daqui!”, seu tom de voz já mudara para um jeitão mais ameaçador.

E quando você era ameaçado por uma voz mecânica de loli você não sabia muito o que pensar. Pelo menos para mim era algo que não acontecia com frequência.

“Então... você que está tentando nos impedir? Nós não queremos destruir nada. Apenas viemos pegar uma coisa e depois vamos embora.”, tentei soar o mais amigável possível.

“Essa... é... a casa... do meu papai... e eu... não... vou... permitir... que ninguém... entre!”

“Então... ah...!”, eu e Arthur recuamos alguns passos e a boneca mecânica a nossa frente começou a flutuar com as lâmpadas de seus olhos brilhando intensamente como dois faróis.

De repente a iluminação do lugar começa a falhar e aquele lugar inteiro treme com o mesmo balançar de quando a torre mudava sua forma.

“ELIMINAR! ELIMINAR! ELIMINAR! ELIMINAR! ELIMINAR! ELIMINAR! ELIMINAR! ELIMINAR! ELIMINAR! ELIMINAR! ELIMINAR! ELIMINAR! ELIMINAR!”

“Essa não! Acho que ela se irritou!”, disse.

“AH, JURA?!”, gritou Arthur em um misto de raiva e desespero.

Era como se o lugar inteiro fosse desabar nas nossas cabeças. Rapidamente saímos de cima do pátio central preparados para um combate inevitável e, de repente, todas as peças que estavam no chão começaram a ser sugadas em direção à boneca flutuante com dois refletores nos olhos.

Vários sons e ruídos metálicos e mecânicos estrondaram no ambiente e a bela paisagem escultural de todos os mecanismos nas paredes de mais cedo começava a se distorcer aos poucos.

E sabem o que isso quer dizer, não é? Lá vem boss no pedaço!

“Droga! O que ela está pretendendo?!”, perguntou Arthur, se protegendo.

“WIWIIIIIIIIII!”, Picker quase é arrastado até a boneca junto com as peças, mas antes eu agarro ele pela cauda.

“Droga! Você fica aqui, bolinha!”

“ELIMINAR! ELIMINAR! ELIMINAR! ELIMINAR! ELIMINAR! ELIMINAR! ELIMINAR! ELIMINAR! ELIMINAR! ELIMINAR! ELIMINAR! ELIMINAR! ELIMINAR! ELIMINAR! ELIMINAR! ELIMINAR!”

Enquanto ela repetia aquilo sem parar – e cada vez que ela repetia, a velocidade com que repetia aquilo aumentava – um vórtice de peças e lataria de constructos ia se formando ao redor da boneca, até chegar a um ponto onde só era possível enxergar o clarão do feixe de seus olhos dentro daquele redemoinho de metal.

E então o vórtice criado por Riful explode em uma saraivada de peças e partes de constructos são atirados para todos os lados da sala como projeteis ultrarrápidos e assassinos.

 Uma chuva de peças vinha em nossa direção!

“|NINHO DO DRAGÃO DAS CHAMAS|!”, Arthur ficou na minha frente e criou uma grande esfera de chamas que dissolveu a maior parte do ataque.

“|ZONA IMOBILIZADORA|!”

Ativei essa habilidade porque havia objetos menores e mais resistentes ao calor intenso ou objetos maiores e mais pesados que atravessariam a esfera de fogo. Criei a zona bem na frente da esfera de fogo de Arthur só para me certificar de que os objetos maiores ou mais pesados tivessem suas rotas desviadas antes de chegar até nós.

O ataque levou questão de segundos. Assim que o campo de fogo foi dissipado, desativei minha habilidade – e lá se foi a raspinha de mana que eu tinha!

“Acabou?”, perguntei.

“Parece que sim.”, responde Arthur, olhando para o centro do pátio. Aquela enorme escotilha de metal acima do pátio agora estava semiaberta e os olhos da boneca gradualmente ia perdendo sua luz.

Acho que as pilhas estavam no fim, hein?

“Ainda... estão... vivos... que... seres... inconvenientes...”, a voz mecânica de loli de Riful voltava a ressoar dentro da sala. Porém a boneca estava totalmente centrifugada. Era como se tivesse torcido ela como um pano de chão velho.

Apenas faíscas caiam dela.

“É... dizem isso direto da gente. Agora vai nos deixar passar ou não?”, perguntei em um tom de afronta.

“Papai... papai... vai brigar... comigo... porque eu... permiti... que... entrassem... na torre. Papai... vai dizer... que Riful... não foi... uma boa... menina.”

“Se seu pai realmente se importasse com você, não teria te deixado presa nessa torre sozinha.”, respondi.

“Junior! Acho melhor você ficar calado. Não sabemos o que ela pode fazer se se zangar de novo!”, resmungou discretamente no meu ouvido. Dava para sentir a vontade dele de me esmurrar em cada sílaba.

“Ué cara... eu digo é na cara mesmo! Esse pai dela é mó bundão!”

“Junior!”

“WIWIWII...?”

“...?”  

“Papai... ama... Riful. Papai... disse... que iria... voltar... para Riful. Ele... prometeu...”

“Acho que ele mentiu então.”

“Droga, Junior! Para de provocar a menina! Quer matar a gente, desgraça?!”

“Papai... prometeu... prometeu... promete... prome... pro...”

“...?”

De repente algo inesperado e assustador acontece. Um clarão absurdo nos cegou subitamente vindo diretamente do pátio.

PROMETEU! PROMETEU! PROMETEU! PROMETEU! PROMETEU! PROMETEU! PROMETEU! PROMETEU! PROMETEU! PROMETEU! PROMETEU! PROMETEU! PROMETEU! PROMETEU! PROMETEU! PROMETEU! PROMETEU! PROMETEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEUUUUU!”

“A MENINA SURTOU, JUNIOR!”, a voz de Arthur gritando quase não saía em meio ao som estridente de metal sendo dobrado e, principalmente, ao som de algo parecido com uma turbina de avião.

“WIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII!!”

Um vento forte carregou Picker para longe e nos empurrou para trás em seguida. Rolamos no meio das peças chamuscadas espalhadas pelo chão e não vimos nada além do clarão que depois foi acompanhado pela cacofonia de sons ensurdecedores.

Depois, algo pareceu explodir na direção do pátio central porque pude sentir uma onda de calor acometer meu corpo assim que parei na parede.

Depois a voz de Riful não foi mais ouvida e os sons cessaram. Eu abri lentamente os olhos, ainda meio zonzo, para ver o que tinha acontecido no meio tempo em que fomos arremessados para trás com a ventania forte que brotou na sala.

O pátio central havia desaparecido completamente! Os pilares que demarcavam seu limite agora estavam no chão, completamente destruídos e queimados. No lugar do que uma vez fora o pátio só tinha um grande buraco com um torrão preto pintando grande parte do chão da sala.

Além disso, o buraco colossal no teto que antes estava fechado e depois havia ficado semiaberto agora estava completamente escancarado – nem porta tinha mais – com uma enorme mancha de queimado em suas bordas que ainda fumegavam.

“Que merda que acabou de acontecer aqui?”, só conseguir pensar nessa única pergunta após ver o cenário.

“Qualquer dia... você vai acabar matando a gente, Junior! QUE MERDA!”, disse Arthur, completamente emputecido.

“Talvez...”, respondi, meio com aquela cara de alguém que sabe que fez merda.

Nos recompomos daquela sequência de eventos totalmente inusitada e seguimos para onde ficava o pátio e que agora não passava de um monte de escombros chamuscados. Olhando para cima não dava para ver praticamente nada, mas me perguntava se aquela passagem levaria diretamente ao topo da torre onde possivelmente encontraríamos a verdadeira Riful.

“É... vocês conseguiram tirar ela completamente do sério.”, outra voz robótica surgiu das sombras dos confins da sala.

“E agora? O que é você?”, dessa vez não esperei tempo ruim e já fui logo sacando o machado. Um “ai” errado e eu partiria qualquer lata velha ao meio.

“Sou apenas um zelador. Bem... meus protocolos não dizem exatamente isso, mas você pode se dirigir a mim assim.”

“Zelador?”, repetiu Arthur.

“Primeiro uma torre loli, agora um robô faxineiro! Hoje o dia tá rendendo, hein?”, pensei comigo, quase soltando um risinho automático.

“E porque você está aqui, seu robô safado? E de onde você veio que nós quase fomos moídos por aquela boneca e você não estava aqui?!”, o interroguei apontando o machado para ele.

Ele levantou os braços.

“Prefiro manter uma distância segura quando a mestra recebe visitas, sabe? Procedimento padrão de segurança”, ele fez uma pausa, apertando alguma coisa na parede, o que já me deixou em estado de alerta. “, mas isso o que aconteceu agora... foi algo inédito! Nunca havia ocorrido isso em todo o meu histórico de bordo nem nos relatórios complementares e de rotina!”

“Vá direto ao ponto, senhor máquina!”, é sério que o Arthur estava sendo educado com um robô?

“Fui programado para seguir minhas diretrizes à risca e por padrão, meus protocolos me impedem de fazer coisas que eu consideraria mais “corretas”, digamos assim, mesmo que fosse uma questão de lógica indiscutível. Se estiver fora das minhas diretrizes, não posso executá-lo. Mas vocês podem!

Sinto cheiro de Side Quest chegando.

“Quer que a gente faça alguma coisa pra você, não é?”, inquiri com uma expressão azeda.

“Afirmativo! Quando vi você desafiando a mestra, meus protocolos instantaneamente calcularam que vocês seriam as pessoas mais capacitadas para recalibrar os sensos cognitivos de minha mestra, coisa que um mero servo sem referência e endereço como eu jamais poderia executar.”

“Ah... então deixa eu ver se entendi direito: você está dizendo que quer que a gente vá até onde sua mestra está, que no caso é a loli que quase nos matou agora, chute a bunda dela para ela cair na real e pronto? É isso mesmo?!”

“Sim...”, responde ele.

Nos entreolhamos por alguns momentos com um clima pesado de... não, é mentira! Na verdade, o que aconteceu foi:

“Tá bom, então!”

“Que Junior?!”, O maxilar de Arthur quase saiu do lugar de tão queixo caído que ele ficou.

“WIIIIIIWI?”, eu ainda não entendia a língua do Picker, então caguei para o tom de desaprovação dele.

“Muito bem.”, de repente, um grande portão oculto se abriu ao lado dele e eu me lembrei que ele tinha apertado alguma coisa. Devia ser algum mecanismo oculto que levava para uma passagem secreta que ia diretamente a Riful.

Previsível. Muuuuuuuuito previsível!

E som característico do menu de missões apitou na minha cabeça. Dei uma checada rápida e eis que estava lá a confirmação de que estávamos no caminho certo:

 


– MENSAGEM DO SISTEMA –

NOVA MISSÃO PRINCIPAL DO [PRIMEIRO ATO], DESBLOQUEADA! –

 – 3x – NOVA MISSÃO SECUNDÁRIA, DESBLOQUEADA!

....................

[MAIS DETALHES]


 

Assim que vi as missões, já dei uma olhada na principal para me certificar do que eu já sabia.

 


– MENSAGEM DO SISTEMA –

MISSÃO PRINCIPAL, DISPONÍVEL –

|- ENCONTRE RIFUL QUE ESTÁ NO TOPO DA TORRE! -|

...........

[MAIS DETALHES]


 

Estava claro o que eu tinha que fazer agora – e puta merda, como aquele jogo era direto! Essa Riful que se autoproclamava a própria torre, ela que era a loli que guardava e protegia aquela raid e que se encontrava no topo da ||TORRE DO MAQUINÁRIO||, estava em posse do objeto que viemos buscar.

Então o robô cutuca meu ombro, cortando meus pensamentos.

“Se quiser posso conduzir vocês até lá, mas somente com uma condição.”

“E o que é? Quer que a gente lubrifique suas peças ou algo assim?”, perguntei com um sarcasmo descarado na voz.

“Negativo. Na verdade, está mais para um pedido de alguém que só quer o melhor para a sua mestra.”

“...?”

“E então? O que seria?”, perguntou Arthur.

“Queria contar uma singela e enfadonha história sobre tudo o que está acontecendo. Isso enquanto nos encaminhamos para o ||RESERVATÓRIO||.”

“||RESERVATÓRIO||?”, disse eu e Arthur ao mesmo tempo.

“Afirmativo. Pelo que consta nos meus nos meus relatórios, seus níveis de vitalidade e energia mágica estão bastante baixos e suas estruturas biológicas, avariadas. Sigam-me por favor.”

“Espera ai! Como podemos confiar em você?”, fiz a pergunta que mais me soava conveniente. Conhecemos o cara... quer dizer, o robô, agora!

“O que um humilde protótipo de análises de rotina como eu poderia lhes oferecer de ameaça? Até mesmo abri a passagem direta para que possam se encontrar com minha mestra.”

Ainda assim, mesmo com tal argumento, olhei torto para ele por algum tempo enquanto o robozinho meio enferrujado e maltrapilho me encarava com um olhar simpático.

“Fique tranquilo. Não vou fazer nada nem enganarei vocês.”, concluiu se virando para a entrada. “Sigam-me.”

Eu e Arthur nos entreolhamos e resolvemos segui-lo para o tal ||RESERVATÓRIO||; devia ser alguma safe zone para recuperarmos o gás para encararmos a loli chefona.

Enquanto isso, iriamos escutando uma historinha para passar o tempo e, quem sabe, entender um pouco nossa menininha robótica.   



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