Cheaters Brasileira

Autor(a): Kuma


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 20: Diligências

 

Região distrital ||LOVELACE||, zona residencial oeste, ||CIDADE DOS COMERCIANTES||, algumas horas mais tarde...

PLAYER: [Justine]

 

Meia noite...

Poucas pessoas nas ruas e muitas sombras. Contudo, havia muitos distritos que pareciam não fazem distinção quanto a horário. Meu pai costumava dizer que a ||CIDADE DOS COMERCIANTES|| era uma cidade que não dormia.

Após muitos anos, eu entendia o que ele me dizia.

“Continue de olho nele, Lucy. Não o perca de vista.”

“Certinho!”

Adlay Barns, um bem abastado dono de uma das guildas mercantes mais influentes da cidade, foi avistado seguindo para o distrito ||LOVELACE||, conhecido por suas casas de chá altamente requintadas. Nós o seguimos – ou melhor, eu o segui – até o seu estabelecimento favorito, uma casa de chá situada no fim de uma estreita rua em ladeira, conectada a grande avenida principal.

Nesse estreito, uma reca de gente estava apinhada na entrada da casa de chá, com grandes nomes do cenário marítimo. Também consegui distinguir alguns tabeliães e fiscais conhecidos da Comerca lá dentro.

Nossa agente de campo já estava no local para colher informações do nosso investigado.

“Tudo certo? Ele já entrou na casa de chá.”, sussurrei para //JOANINHA COMUNICADORA// acoplada ao capuz.

Esperei alguns momentos antes de enviar a mensagem. Tive certeza de averiguar que não haviam outros intrometidos além de nós.

Tudo certo. ENVIAR!

*ZIIIIIIIIIIP*

A mensagem foi enviada. Esperava a confirmação de Lucy de dentro do estabelecimento. Alguns dos oficiais já se retiravam do lugar. Tirando as entradas extremamente iluminadas por grandes tubos cristalinos contendo o que julguei sendo fogo alquímico – um dos mais poderosos podia gerar luz o suficiente para iluminar uma cidade inteira –, o resto da rua era praticamente intocada na penumbra.

Então somente cobri meu rosto com o capuz e passei andando por eles naturalmente. Muitos deles conheciam minha família e meu pai, então seria um problema se alguém visse meu rosto e me reconhecesse.

Entrei então. Lucy está cantando e dançando no palco junto de outras dançarinas; o lugar está cheio, a música, agradável e a comida está com um ótimo aroma. Ainda assim, não é capaz de esconder a podridão que rola por debaixo das mesas.

As piscadas discretas e as mensagens ocultas, passadas por sussurros ou bilhetes enfiados roupa adentro. Tive muito tempo para observar meu pai vivendo toda essa rotina diariamente. Procuro um lugar o balcão onde eu tivesse uma vista ampla de todo o palco e as poltronas reservadas aos magistrados e tabeliães da Comerca – em outras palavras, uma área VIP e restrita a alta burguesia.

De lá, conseguia ver Adlay curtindo o show e mirando principalmente em nossa agente, Lucy, com seus olhos lascivos. Me dava até ânsias de vomito ao vê-lo olhando para ela daquela maneira.

Mas havia funcionado. Lucy conseguiu atrair a atenção do nosso alvo para si. Com isso, só tinha que garantir que ela conseguiria seduzi-lo e leva-lo a um lugar especial onde Laimonas estaria esperando.

“Vamos lá, seu porco nojento e ganancioso. Eu sei que você não pode resistir...”

Lucy caminha até ele de modo provocador, enaltecendo suas curvas finas e corpo esguio. Seu corpo ainda era bem condicionado e atlético também por ter recebido treinamento militar quando esteve em ||LACUNA||. Rapidamente o mercador caiu nos encantos da maga.

“Ela conseguiu. Se aproximou do alvo.”, mandei a mensagem pela //JOANINHA COMUNICADORA// a Laimonas para que ele tomasse posição.

“Entendido”, ele responde.

“Ei, ei... aqui não. Não quer continuar com isso...”, Lucy desliza seus dedos de jeito sedutor pela gola da camisa do balofo, aproximando seu rosto dele e sussurrando em seu ouvido. “... lá fora?”

“Ora, ora! Menina levada! Vou lhe ensinar a não brincar com os desejos de um homem desse jeito!”, responde animado.

Lucy soltou um risinho sapeca.

“Estou louquinha para você me ensinar.”

“Por favor... só saiam logo antes que eu vomite!”, imaginei ao ouvir todo aquele diálogo pela joaninha.

Assim que os dois se levantam para pegarem a saída secundária, eu também me levanto. Deixo o copo no balcão, lanço umas moedas ao mestre do balcão – sim eles não gostavam de serem chamados de “taberneiros” – e os sigo discretamente.

“Eles estão indo ao local combinado agora. Prepare-se para interceptação.”

“E então? Vamos fazer isso aqui mesmo, princesa?”

“Isso...”, antes que o comerciante pudesse tentar alguma gracinha, Lucy agarra seu pulso e o torce para baixo, rendendo o balofo. “Vamos fazer isso aqui mesmo.”

“AAAAAHH! Que merda...!?”, ele não teve muito tempo para fazer escândalo.

Laimonas surgiu das sombras do telhado e o rendeu rapidamente, amassando sua cara flácida contra o chão gorduroso do pequeno espaço. Lucy tratou rapidamente de amordaça-lo para que ele não fizesse muito barulho.

Eu cheguei pouco tempo depois, ainda com o rosto encoberto pelo capuz. Laimonas o levantou e o colocou frente a mim, mas acautelando-se para que ele não pudesse ver minhas feições e me reconhecer.

“Senhor Adlay Barns, líder da Guilda [CÃES SELVAGENS] e um dos responsáveis pela Nova Reforma, não é? Agora você vai me dizer tudo que você sabe?”

“Mmmmmmfffgh!!”, ele esperneava e babava. Sua voz abafava lembrava um porco grunhindo antes do abate.

Eu fiz um meneio de cabeça para que Lucy tirasse a mordaça por um momento. Assim que ela o fez, antes que sua voz rouca e irritante ousasse sair, eu o calei com um tapão bem dado em seu rosto. Adlay cuspiu um jato de sangue com o golpe e se calou:

“Melhor assim. Agora me diga Adlay... você foi um dos responsáveis pelas licitações ilegais de materiais para a ||CIDADE DE LIDOOBERRY||, sem falar que você tem um longo histórico de relações com meu pai... digo, com Louis Lidooberry. Quero que me diga tudo o que sabe, inclusive sobre os desaparecimentos.”

“Desaparecimentos...? Como...”

Já que ele estava dando uma de sonso, eu balancei minha mão e sua cara mais uma vez.

“Eu não sei... do que você está falando!”, disse Adlay, pigarreando.

“Ah, é mesmo? Pois o nome da sua Guilda nesses documentos diz exatamente o contrário!”, saquei os documentos que havia roubado do escritório do meu pai de dentro do sobretudo e estava quase esfregando os papéis na cara dele.

“O que é isso?!”

“Licitações, meu amigo. Licitações! E todas com as assinaturas dos larápios que conspiraram contra a cidade!”

“Eu... eu... não sei do que você está falando...! Eu juro!”

“Vai continuar negando até o fim?”, retruquei com a voz falhando de raiva.

“Isso são ordens de serviço, garota! Não licitações! E são ordens de construção de obras públicas para a própria cidade que Louis solicitou! Nem sei o que você está querendo dizer com conspiração, sua maluca!”

Mais um tapão foi desferido no rosto flácido do comerciante.

“NÃO MINTA PARA MIM! VOCÊS SÃO CONHECIDOS PELAS PRÁTICAS ILEGAIS NESSE RAMO! COMO NÃO ESTARIAM ENVOLVIDOS?!”, por um momento, me permiti alterar o tom da voz.

“Você é... UMA LOUCA DE PEDRA!”

“...”

 .   

.

 

 

Algum tempo depois...

 

“E mais uma vez, não conseguimos nada. Investigamos mais uma guilda e de novo saímos com as mãos abanando!”, reclamei enquanto tomava outro gole convulso de cerveja.

Laimonas riu meio desconcertado e provavelmente sem saber o que deveria dizer para me confortar diante de uma situação tão desastrosa.

“AAAHH! E eu estava mandando tão bem, seduzindo aquele zé mané! Sou uma espiã muito boa, não é?”, Lucy perguntou, levantando a caneca de cerveja.

A voz dela já estava lenta e arrastada. Estava claramente bêbada já.

“Claro, Lucy! Você mandou muito bem enganando aquele gorducho! Ele não desconfiou de nadinha! MWAHAHAHA!”

“As duas estão bêbadas já...”, Laimonas suspira.

“O que você quer, Laimonas?! Se tiver algo para falar, fale agora seu maldito!”

“Isso mesmo, LaiLai! Pode dizer o QUAAAAAAANTO eu fui I-N-C-R-Í-V-E-L!!”, disse Lucy com outra dose de cerveja.

“Certo... pode ser que tenhamos falhado de novo, mas não é como se estivéssemos tão fora do rastro deles. Com certeza, meus bravos companheiros devem estar bem melhor que nós agora com a investigação deles...”

“Guarda essas palavras para você, meu amigo.”

De repente, Ludwig e Stuz aparecem na mesma taberna que estávamos. Eu bati a caneca com força na mesa e soltei uma gargalhada alta.

“LUDWIG! STUZ! COMO SE SAÍRAM COM A INVES... MGHH!?”, Laimonas cobriu minha boca rapidamente com suas mãos grandes e pesadas.

Enquanto isso, Lucy só ficava rindo como uma hiena pra tudo que acontecia.

“A senhorita Justine e a senhorita Lucy beberam... um pouco além da conta. Elas ficaram um pouco chateadas porque a nossa investigação não gerou frutos.”, explicou ele. “Realmente, Adlay parecia não saber de nada. Só para garantirmos, vasculhamos seu escritório na Comerca, mas não encontramos nada que o ligasse aos desaparecimentos, muito menos a conspiração.”

“Mesma coisa com a gente.”, disse Ludwig, meio cabisbaixo. “A Madame Choux e os [ESTANDARTES PRATEADOS] também não tem nenhuma ligação com os fatos. Inclusive, os últimos contratos dela foram encomendando peças e equipamentos de ||BASIN-C|| para um projeto aqui da cidade.

“Sim... mesma coisa do Adlay. O que será esse projeto, afinal?”, pergunta Laimonas.

“Não faço a mínima ideia.”, respondeu Ludwig.

“Ainda assim, acho que estamos seguindo as pistas... erradas. YUP!”, disse Stuz, pensativo.

Enquanto isso eu só queria beber mais e aquela mão parruda continuava a tapar minha boca. Daqui a pouco alguns dedos seriam mastigados!

“AAAAH! QUE DROGA! DÁ PRA ME SOLTAR?!”, grasnei empurrando a mãozona dele pra longe.

“Ah, desculpe-me senhorita!”, Laimonas se retratou.

“Creio que continuar seguindo os líderes das guildas não vai dar em nada. Precisamos de outra estratégia. De outra direção...”

“Direção é o ESCAMBAU! PRECISAMOS É SENTAR A MÃO NESSES CARAS DE BUNDA, DE UM POR UM! HAHAHAHA!!”, gritou Lucy, balançando a caneta pra cima e pra baixo.

“ISSO! É ASSIM QUE SE FALA! PRA CIMA DELES, MIGAAAA!”, gritei ainda mais alto, brindando àquela frase genial.

“Essas duas...”

“ESSES PINTOS MOLES NÃO ESTÃO COM NADA! VAMOS MOSTRAR PRA ELES COMO SE FAZ UMA INVESTIGAÇÃO! IUHUUUUUUU!”

“PODER FEMININOOO!”, Lucy bebeu mais um gole e percebeu que a caneca estava vazia e começa a rir. “AH... tá vazia, ué... que coisa estranha.”

Nós duas nos entreolhamos e depois rimos ao mesmo tempo.

BWAHAHAHAHAHAHA!!”

“Elas estão muito bêbadas! YUP!”, diz Stuz, claramente preocupado.

“Acho que elas não superaram a frustração das investigações.”, concluiu Ludwig, suspirando.

“TRÁS MAIS UM... PFF!?”, eu tapei a boca de Lucy subitamente.

“...?!!”, os três mercenários olham para mim, confusos.

De repente eu levantei o dedo indicador sutilmente, fazendo o máximo de silêncio que eu conseguia. O lugar em si ainda era barulhento, mas atentei os ouvidos de todos ali para uma conversa ao fundo da mesa – mais precisamente na mesa de trás. Era uma conversa sobre dois aventureiros que bebia próximo a nós.

“... e então acharam esses corpos. Agora, não cheguei a ver com detalhes...”

“Tem certeza de que eram de Fauneses?”, perguntou o outro, impressionado.

“Sim”, ele responde em tom condescendente. “Eu tenho certeza de que eram, por tudo que está acontecendo atualmente em ||BLYK DO SUL||. As autoridades inclusive já se mobilizaram para lá.”

“Parece que o que as histórias contavam era verdade. Eles estão mesmo caçando Fauneses.”

“Acha que estão contratando algum mercenário?”, pergunta um deles com uma ponta de interesse na voz.

“Não sei, mas eu não iria. Me parece mais perigoso que o necessário.”, responde o outro, a voz temerosa.

“HAHAHAHA! Já esperava essa resposta. Você sempre foi muito cauteloso!”

Ludwig aproximou o seu rosto do meu e sussurrou:

“O que foi isso, chefia? Por acaso percebeu alguma coisa?”, pergunta Ludwig, perdido em meus gestos.

Eu não pude evitar um sorriso de satisfação.

“Não, Ludwig. Encontrei a nossa direção!

Então continuamos nosso escarcéu rotineiro na taberna depois de um dia intenso de perseguições, investigações e escutas de conversas alheias. Os meninos estavam bem cansados e então dei esse tempo de descanso para eles, mas eu mesma não sabia o que era descanso.

E principalmente, não podia deixar essa pista maravilhosa escapar das minhas mãos!

Por muito tempo eu fiquei investigando, espiando e seguindo líderes e pessoas importantes da Comerca na esperança de arrancar de seus comedores de lavagem alguma informação, tanto sobre a conspiração em Lidooberry quanto os desaparecimentos, quando tudo que eu precisava era estar no lugar certo e ouvir as vozes populares.

As fofocas e as histórias de taberna. Os sussurros do povo sobre acontecimentos impactantes. E qual acontecimento mais impactante do momento na ||CIDADE DOS COMERCIANTES||?

Assim que terminamos, Ludwig, Laimonas e Stuz voltaram para a pousada, com Ludwig carregando o corpo dormente e alcoolizado de Lucy nos braços. Me despedi deles e disse que ainda ia ficar para beber um pouco mais – uma desculpa talvez nem um pouco convincente – e permaneci na mesa, fingindo que bebia enquanto observava o local.

A taberna ia ficando cada vez mais vazia com o passar das horas, até que só sobrara um punhado de aventureiros lá e o taberneiro. Alguns já havia capotado em cima das mesas mesmo e outros já terminavam seus barris de cerveja para irem embora e esse era o caso do meu alvo.

Pela armadura que vestia, eu julguei poderia ser um cavaleiro da classe [RETIARUS], especializado em controle de terreno. Tinha seu tronco corpulento com uma barrigona de cerveja amostra, uma ombreira de ferro escamada e modesta que descia em uma manopla que cobria todo seu braço direito e trajava uma armadura de cintura com um grande cinturão de couro vergastado que carregava suas ferramentas de combate e pequenas bolsas.

O homem era alto, de pele morena, careca e de corpo forte e revelando singelos e discretos traços da terceira idade, o que me fez chutar que já devia estar passando dos seus 50 anos de idade.

O outro que estava com ele era bem mais jovem – em torno dos 30 anos de idade –, cabelos levemente grisalhos e penteados para cima, feições duras de um mercenário e com uma cicatriz bem visível do lado direito do seu rosto, escondido de forma tosca por algumas bandagens. Tinha uma armadura mais robusta que o [RETIARUS], com largas ombreiras, peitoral brilhante mesmo com a sujeira e as avarias de muitas batalhas, um gorjal que parecia quase cobrir completamente metade de seu rosto e um grande e pesado elmo de ferro repousado sobre o balcão. Carregava uma grande lança com o símbolo da ACC cravado nela, o que me fez deduzir prontamente que se tratava de um oficial da guarda da cidade.

Isso me fez dar ainda mais credibilidade ao que escutei mais cedo.

Esperei pacientemente o oficial se retirar para fazer minha abordagem. Como eu previa, ele saiu primeiro e deixou meu alvo sozinho e bem no ponto para um interrogatório. Já não havia mais ninguém – pelo menos sóbrio ou consciente – na taberna.

“Bebeu muito, companheiro?”, sentei ao lado dele no balcão, com o rosto encoberto pelo capuz.

“Hã? Como assim?”

“Eu ouvi uma conversa mais cedo. Uma que envolvia... Fauneses.” Disse, meus dedos brincando com uma caneca de madeira vazia deixada pelo oficial.

“Ouviu é? Você tem bons ouvidos para escutar conversas alheias, mesmo no meio de tanto barulho.”, comentou ele, soando irritantemente irônico. Eu poderia mata-lo ali mesmo se ele não me fosse útil.

“Vou considerar isso um elogio.”

“E por que você quer saber? É algum oficial da guarda ou mercenária, por acaso?”, pergunta ele.

“Sou uma pessoa curiosa apenas.”, interpelei, indiferente. “Gosto de saber sobre as coisas que me rodeiam.”

O mercenário soluçou.

“Acho que uma menina como você não devia procurar saber sobre conversas de adulto. Não sabe no que está se metendo e pode acabar encontrando coisas das quais não vai gostar nem um pouco.”

“Isso seria uma ameaça, senhor [RETIARUS]?”

“Considere um aviso.”, respondeu enchendo a caneca de novo com outra bebida trazida pelo taberneiro. “Agora vai procurar um vestido pra tricotar e some daqui.”

“Acho que você não está entendendo a gravidade da situação.”, respondi, a voz agora em um tom real de ameaça.

O grandão se levantou da cadeira de uma vez e ficou parado na minha frente, inflando sue grande peitoral em uma postura intimidadora. Confesso que tomei um leve susto, mas consegui manter minha posição neutra.

“Não estou entendendo o quê?! Por acaso, tem algo para me dizer, pirralha?”, ele já começava a ficar alterado.

Se a situação fugisse do controle, não sei o que eu faria. E aquele cenário inconveniente caminhava para isso.

Tomei coragem e fiz um dos maiores blefes que eu poderia fazer naquele momento: me levantei e fiquei cara a cara com um sujeito duas ou três vezes maior do que eu, completamente desarmada e indefesa. Ou era muita coragem ou muita loucura.

“São raros os casos em que uma fedidinha consegue me tirar do sério tão facilmente.”, disse ele com a voz baixa e ameaçadora.

“Podemos resolver isso de uma forma mais amigável.”, retruquei, lutando para manter a voz firme. As pernas também já começavam a tremular.

Porém, ele começou a me encarar atentamente por longos momentos, como se estivesse tentando forçar uma lembrança em sua mente. Isso me fez lembrar que o meu capuz havia escorregado um pouco da cabeça e tinha possibilitado o [RETIARUS] ver meu rosto.

“Essa não! Meu capuz!”, pensei comigo, já à beira do desespero.

“Você é muita esquisita, menina... sinto que já vi você em algum lugar.”,

Puxei rapidamente o capuz e sai da frente dele, fugindo da taverna o mais rápido que minhas pernas conseguiam caminhar. O mercenário grandão, para a minha infelicidade, vem atrás de mim.

Do lado de fora, ele agarrou violentamente meu pulso antes que eu tentasse uma fuga e me arrasta para um beco escuro ao lado da taverna, removendo bruscamente o capuz da minha cabeça e me derrubando no chão acidentado da pequena passagem.

Tentei gritar, mas de nada adiantou. A esse momento da noite, ninguém ouviria e se ouvisse, duvido que alguém se meteria. Mercenários mal-encarados e parrudos como aquele cara geralmente tinham carta branca para fazer o que quisessem fora da Comerca.

“Você... você é a filha de algum nobre comerciante da cidade ou de algum líder de guilda, não é? Não minta para mim! Dá para ver pelo seu rosto que sim!”

Engatinhei no chão, tomando distância dele e me encolhendo entre alguns caixotes de lixo e a porta dos fundos da taverna. Mesmo diante daquele cenário assustador, eu ainda tentava a duras penas manter a postura de “durona”.

“O que foi? E se eu for? Vai me estuprar por acaso? Vai me vender como alguma escrava ou vai me fazer de refém? Duvido muito que você vá conseguir alguma vantagem com isso, seu palhaço!”, disse em tom ríspido.

Ele bufou, me olhando com desprezo.

“Não sei ainda, mas posso dizer que você irá desejar a morte, sua pirralha.”

“Merda... como pude ser tão burra em pensar que eu poderia arrancar alguma informação de caras assim sozinha? Agora eu... vou morrer... ou pior...”, pensei comigo mesma, o corpo já se entregando ao medo e ao desespero enquanto ele se aproximava.

Apertei os olhos e me preparei para o pior quando eu escuto um som abafado de um agarrão e depois um grito bem alto. Ao abrir os olhos, me deparei com Ludwig na minha frente, torcendo o braço do [RETIARUS] e rendendo-o completamente. O grandão ameaçador de há pouco agora parecia um menino birrento e chorão, esperneando no chão.

“O que pensa que está fazendo sozinha em um lugar como esse, senhorita?”, perguntou Ludwig com a voz gelada e séria.

Eu soltei um suspiro involuntário de alívio e me levantei.

“Ludwig! Eu disse que fosse para a pousada, não disse? O que está fazendo aqui?!”, eu não sabia se ficava feliz ou envergonhada de vê-lo ali.

Feliz por ele ter me salvado daquele mercenário e envergonhada pelo mesmo motivo.

“Eu poderia ter feito isso, mas imaginei que você não ficaria só de boa bebendo, então deixei Lucy aos cuidados de Laimonas e voltei. E voltei bem na hora, pelo visto.” Disse puxando o braço do grandão mais para si.

O mercenário rendido no chão grunhiu de dor.

“O que foi?! Não parece mais tão valente agora beijando o chão né, seu laranja?”

“Senhorita Justine. Eu sei que quer muito avançar nas suas investigações e que estamos ficando sem tempo, mas nunca mais faça algo tão tolo como isso! O que teria acontecido com você se eu não tivesse aparecido?!” Ludwig falava como se fosse meu pai e isso me incomodava um pouco.

Estava levando a maior bronca do meu próprio subordinado!

Eu inflei as bochechas e virei o rosto, meio desconcertada com o puxão de orelha. Podia quase sentir meu rosto enrubescer também com o vexame.

“Ce... certo... acho que... você tem razão...”, resmunguei de braços cruzados.

“É claro que eu tenho razão!”

“AH... agora... agora eu me lembro! Sabia... que já havia visto você em algum lugar! Você é... uma dos Lidooberry, não é? Daquela família de ricos que financiam os projetos da cidade!”, disse ele espumando pela boca.

“...!”

“Olha só... se você sair espalhando isso por aí...”, Ludwig ameaça, forçando ainda mais seu peso sobre o braço do mercenário que grunhiu.

“Então vocês querem saber sobre o incidente com os Fauneses, não é?”, de repente, uma voz cansada e amigável soa no ambiente.

Rapidamente eu me dei conta de que a porta dos fundos da taverna estava aberta e velho taverneiro que trabalhava lá assistia a tudo. Não teria de ter que silenciar um senhor com uma cara tão gentil como a dele. Me partiria o coração, mas ele citou os fauneses então ele devia saber de alguma coisa e um cara assim é mais útil vivo.

Tínhamos um rumo afinal.

“O senhor sabe de alguma coisa?”, pergunta Ludwig, desconfiado.

O velho sorriu.

“Só entrarem e me ajudarem com o balcão que eu contarei tudo. Afinal, não tenho mais o gás de vocês, jovens. HAHAHA!”, disse ele com um tom bem-humorado.

Deixamos o [RETIARUS] ir e ele saiu correndo, sumindo rua abaixo. O velho senhor com avental branco manchado fez um humilde gesto convidativo para entrarmos. E sendo sincera, eu tinha mais expectativas nas palavras dele do que qualquer outra investigação que eu faria daqui em diante.

 

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||VILA JECHT||, um dia depois...

 

Depois de falar com o taberneiro, seguimos para a ||VILA JECHT||, um pequeno povoado situado a alguns quilômetros da ||CIDADE DOS COMERCIANTES||, à direita do ||RIO TORA||. Lá onde ocorreu o ultimo incidente com os Fauneses comentado nos últimos dias.

Mesmo que ainda não tivéssemos sequer uma só pista, o gentil e idoso taberneiro nos revelou uma informação interessante:

 

“Um faunês escapou com vida dessa chacina. Ele está sob custódia das autoridades da ||CIDADE DOS COMERCIANTES|| e se mantem escondido agora. Talvez vocês tenham dificuldades para encontra-lo.”

 

“Tem certeza que é aqui?”, perguntou Ludwig, esquadrinhando com seus olhos hábeis cada canto da entrada da vila.

“Certeza. As coordenadas que o velho Bisnaga deu param exatamente nesse lugar.”, conferi de novo só para me certificar.

“Comparado à capital, esse lugar parece abandonado.”, comentou Lucy meio incomodada. “E ainda por cima faz um calor desgraçado!”

“Estamos em uma zona de convergência tropical do continente, perto de uma grande floresta à Nordeste. Essas vilas não têm climas muito agradáveis mesmo. YUP!”, disse Stuz, categórico.

“E por onde começamos a procurar?”, pergunta Ludwig.

Eu ponderei por um momento, sem fazer ideia por onde começar. De repente, a única opção mais razoável para nós no momento veio a mente.

“Que tal irmos ao local onde tudo aconteceu? Pode ser que ainda haja alguma coisa lá para nós.”, sugeri.

“Eu não tenho nenhum lugar melhor em mente mesmo.”

“Também estou de acordo, senhorita.”, concorda Laimonas.

Stuz concorda também com um aceno de cabeça.

“Por mim tudo bem.”, disse Lucy.

“Muito bem, vamos lá então!”

Não foi difícil encontrar o lugar; isso porque as pessoas evitavam o lugar que agora estava tomado por resquícios de uma energia muito pesada e depressiva. Era uma das últimas casas do conjunto a oeste – estava mais para um galpão – cercado por uma vegetação descuidada e enorme.

O lugar estava largado aos ratos. Não havia muita coisa para se ver lá, além de vários caixotes, tonéis e máquinas de extração abandonados. Contudo, no meio do lugar havia um enorme buraco no chão com suas extremidades perfeitamente delineando um círculo sem qualquer falha.

Poderia ser um negócio bobo ou irrelevante se não estivesse em um lugar abandonado como aquele e se o círculo não estivesse nas condições em que estava.

“Parece um círculo de conjuração...”, observou Lucy, com uma leve surpresa.

“Tem certeza, Lucy?”, perguntei.

“Certeza eu não tenho, mas é o que pude deduzir só olhando.”, ela se agachou na beira do buraco e apontou para as bordas. “Esse espaço aqui está perfeitamente separado do resto do ambiente, como se esse buraco tivesse sido desenhado exatamente para ter essas proporções. Também consigo ver que as bordas ainda estão marcadas e quentes.”

“Eu não estou vendo nada. YUP!”, disse Stuz, coçando a cabeça e olhando para o espaço de forma confusa.

“Vai ver não tem nada e ela está querendo mostrar serviço para a senhorita Justine.”, disse Laimonas de canto de boca.

“TEM SIM, CARAMBA! COMO OUSAM DUVIDAR DA MINHA GENIALIDADE? Eu sou uma maga e entendo dessas coisas!”, protestou Lucy, cerrando o punho.

“Hum... sabe identificar que tipo de magia é, Lucy?”, perguntei pra ela.

A maga deu novamente outra olhada minuciosa, deslizando os olhos por cada fresta daquele buraco. Ela aproxima o rosto lentamente das bordas e começa a cheirar como um cão farejador.

“Certo... parece ser algum tipo de magia proibida...”, concluiu a maga.

“Proibida? Como assim?”

“Bem... não tenho mais informações ou elementos que me ajudem a discernir qual tipo de magia, mas é uma magia que mexe com alguma energia muito poderosa e proibida. Algo que, com certeza não deveria ser manuseada por humanos.”

“Essa descrição me parece bem vaga.”, disse Ludwig, suspirando.

“Foi o máximo que consegui apenas analisando esse buraco. Existem tantas magias que até mesmo uma maga genial como eu não conseguiria aprender todas.”

“E então, maga genial, o que é aquilo ali?”, questionou ele, apontando para o interior da pequena cratera.

Apertei os olhos para enxergar o que Ludwig estava apontando – e acho que não foi só eu que fiz isso; era algo brilhante e semienterrado no meio do buraco, de cor violeta escura e ainda fumegando suavemente.

“Ih, é mesmo! Tem algo ali.”, confirmou Lucy após ficar alguns segundos encarando o solo chamuscado.

“Caramba, Lud! Você tem uma visão tão boa que as vezes me assusta. YUP!”, disse Stuz, impressionado.

“Vamos ver o que é então...”

Antes que eu pudesse descer para ver o que era, o braço parrudo do mercenário bloqueia meu caminho.

“...?”

“Não, senhorita. Se o que a senhorita Lucy diz é verdade, então não posso permitir que você entre no buraco e muito menos toque nisso.”, declarou Ludwig em um tom irritantemente autoritário.

“O que? Mas temos que...”

“Deixa que eu verifico.”

“O que?”

“Lud, tem certeza? É muito bravo da sua parte, mas ainda não sabemos o que é isso.”, advertiu Laimonas, tocando o ombro do amigo.

“Eu sei, mas alguém de nós tem que verificar. Lucy é nossa única conhecedora de magia e você e Stuz também sabem de coisas essenciais para nossas investigações. Não posso arriscar que algo aconteça a vocês também.”

“Ludwig. Não sei se sabe, mas dependendo do que seja aquilo, pode até te matar. Não há dúvidas que seja restos residuais da magia ou ritual que foi feito aqui, então pode carregar a mesma energia pesada que paira esse lugar.”, aconselhou Lucy, dessa vez em um tom bem mais sério.

O mercenário engoliu em seco.

“Tudo bem... eu... assumo os riscos.”

“Ludwig! Você não precisa ir até lá!”, gritei.

O grandalhão deslizou a parede do buraco e chegou ao fundo, ficando frente a frente com o pequeno objeto violeta queimado.

“Tudo bem, senhorita. Isso é o meu dever.”, retrucou com confiança.

Então ele se virou e agachou-se próximo àquela coisa, estendendo a mão lentamente para pegar naquilo.

“Tome cuidado... Ludwig.”, só conseguia pensar naquilo, tensa com toda a cena.

Ele usou seu polegar e seu dedo indicador para formar uma pinça e agarrar o pequeno objeto submerso na faixa quente e chamuscada de terra. Ao tocar, ele afasta a mão rapidamente, parecendo se queimar.

“Urgh!”, grunhiu Ludwig, balançando a mão.

“Tome cuidado!”, gritei outra vez, o coração a mil.

“Parece bem quente.”, diz Laimonas.

“Se a magia foi feita a pouco tempo, então deve estar ardendo.”, analisou Lucy, a voz pausada e rija. Ela estava tão nervosa quanto eu.

“Certo... agora vai.”

Então Ludwig novamente agarrou o objeto rapidamente e firme em seus dedos e puxou rápido para fora. O som do objeto tamborilou no ambiente e o que parecia ser uma lasca de alguma pedra ou algo assim cintilou com a luz violeta escura, fazendo Ludwig gritar e depois cair.

Ludwig!”, gritei, me jogando buraco abaixo.

“Espere, senhorita!”, Laimonas ainda tenta agarrar meu braço, mas não dá tempo.

“...!”, Lucy ficou paralisada com a cena.

“Lud!”

Eu corri até ele e levantei sua cabeça levemente, repousando-a em minhas pernas. Então começo a tapear levemente seu rosto tentando despertá-lo, mas ele não reagia.

“Ei, ei! Ludwig! Acorda! Eu disse que não era pra você fazer isso, seu idiota! Por que não me escuta?!”

A pedra ao lado tremia até que a luz forte que acometeu o mercenário parou de brilhar e uma fumaça branca brotou de sua superfície. Logo após isso, o pequeno fragmento se despedaçou e evaporou completamente em uma poeira negra.

E Ludwig acorda subitamente.

“Ah!”

“Ludwig! Ludwig, você está bem?”, perguntei, feliz por ele ter acordado, mas ainda preocupada. Ele ainda não parecia nada bem.

Ele suava frio, seus membros estavam tremendo e estava ofegante. Claramente havia acontecido algo ruim com ele no momento que tocou a pedrinha. Assim que ele desperta, Lucy desce a cratera também, talvez já julgando que fosse seguro para ela vir até aqui.

“Ludwig?”

Ele ainda não falava nada. Apenas estava arfando, de olhos esbugalhados olhando para o nada. Seu corpo estava com calafrios e suava muito.

“Você está bem? Ludwig?”, Lucy se pôs na frente dele.

Ele tentava recuperar o fôlego para poder falar.

“Eu... vi... as memórias deles.”, murmurou ele, quase sem voz.

“Memórias de quem?”, pergunta Lucy.

“Dos... Fauneses...”

“...!!”

“Eu... sei onde está o sobrevivente.”, afirma Ludwig, se recompondo aos poucos.

“Sabe? Como você tem tanta certeza?”, perguntei.

“Eu explico no caminho... vamos andando.”, ele estendeu o braço, pedindo ajuda para se levantar. “Vamos... para a floresta.”

“Floresta? Que floresta tem aqui perto?”, perguntei para Stuz.

“||FLORESTA DE BISMAKKAL|| é a mais próxima daqui e a maior da região.”, responde ele, precisamente.

“Então é para lá que vamos!”, diz Ludwig.

“Mas porquê...”

Creio que vocês não irão a lugar algum...

De repente, algumas silhuetas aparecem na entrada do galpão e interrompem nossa conversa. Tinham estatura mediana alta, a maioria magros e alguns até esqueléticos, usando grandes sobretudos escamosos com capuzes pretos e detalhes dourados. Um grande símbolo Seus rostos estavam ocultos na penumbra.

Era um grupo de 12 caras estranhos e não pareciam nada amigáveis.

“Parece que pegamos alguns enxeridos inconvenientes se metendo onde não são chamados.”, disse um deles com a voz rouca e arranhada.

“Quem são vocês?”, perguntei já imaginando que não bateriam um papinho amigável conosco.

“Somos nada. Não somos ninguém.”, respondeu outro deles.

“O que?!”

“Dá pra falar sem ser em parábolas, cacete?”, reclamou Lucy.

Eles riram.

“Somos membros do Culto Manju a serviço da nossa Deusa Salvadora! Somos ferramentas para cumprir os seus desígnios!”, anuncia um deles em voz alta e abrindo os braços.

Culto Manju?!”, eu e os três mercenários gritamos em uma só voz.

Lucy não entendeu nada e muito menos nossa reação diante daquele nome.

“Não entendi nada...”, murmurou Lucy.

“O que vocês estão fazendo aqui? Vocês que estão por trás dos desaparecimentos?”, perguntei, com minha cabeça prestes a explodir de tantas teorias e possibilidades que começavam a pipocar na minha mente.

“E porque diríamos isso para alguém que irá morrer agora?”, responde o primeiro em tom de ameaça.

“Isso... vocês irão se converter em sacrifícios para a nossa deusa!”, bradou o outro ao lado.

“Glorifiquem e se ajoelhem perante ela! Deixem que suas almas e corpos pereçam e sua energia se converta em glória!”, ainda gritou outro lá de trás e os outros acompanharam com um cantarolar conjunto.

“Essa não. Eles estão vindo!”, gritou Ludwig sem conseguir se mexer direito ainda.

Ainda estava bem claro e marcado na minha memória o terror que senti nas mãos daqueles maníacos, mas não era hora para relembrar temores do passado. Naquele momento, só uma coisa pulou fora da minha garganta:

“Preparem-se para lutar!”

E os quatro responderam em uma só voz:

Entendido, senhorita!



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