Volume 1 – Arco 1
Capítulo 4: Vida extra
TUDUM-TUDUM... TUDUM-TUDUM...
O golpe foi rápido e cirúrgico. Uma fração de segundos apenas. Foi tão rápido que minha mente não acompanhou o depois. Meu corpo reagiu erguendo o machado para tentar bloquear o golpe, mas era tarde demais.
Sua velocidade era esmagadora. Sua força, brutal. O tempo pareceu se curvar ante seus movimentos.
Vi ante meus olhos pasmos Thayslânia estraçalhar Gallatin completamente com apenas um soco! UM SOCO! Depois de explodir o cabo do machado, o trajeto do punho continuou até meu corpo e me acertou em cheio. Só me lembro de ter sido arremessado com uma força e velocidade violentas, capotando várias e várias vezes até parar no chafariz do centro da praça.
Me descuidei e fui derrotado facilmente por ela.
— |FORMA DA VALQUÍRIA: CANHÃO CELESTIAL! |
Meu corpo se desmontou ao bater com força contra o chafariz e destruí-lo completamente.
Minha visão escurece. Meus status zeraram e minha barra de HP estava praticamente zerada e trincada em todos os cantos. O DANGER agora estava em plena evidência. Minha cabeça girava e meu corpo estava dormente.
Umas das últimas coisas que me lembrei de ter visto antes de apagar foi a multidão alvoroçada se aglomerando ao redor da praça destruída.
Eu estava... morrendo?
Morrer em um jogo era Game Over! Fim de jogo, não é? Como na vida real.
Ou será que eu tinha uma vida extra? Um Checkpoint? Ou eu voltaria para aquela campina e começaria tudo de novo?
Droga...
As vozes abafadas e cada vez mais distantes das pessoas ao meu redor zuniam no ar. Estavam mais para sussurros agora.
Ele está morto?
Nada mais que o esperado da General.
É o fim para ele...
Bem feito!
Ele queria se matar, eu acho...
Acho que ele não tinha família.
Esse maluco não sabia o seu devido lugar!
Achei foi pouco ainda.
Alguém viu aquele corno do meu marido?
As vozes mais e mais longes. Tudo ficava escuro.
Murmúrios incompreensíveis...
Antes que os sentidos me abandonassem, meus olhos semicerrados alcançaram Maria, completamente parada no meio da multidão frenética. Não consigo ver os detalhes muito bem, mas ela estava estática e intocável dentro do mar de pessoas.
Ma... ria..., a voz saiu completamente muda.
De repente, poucos segundos depois, sua expressão mudou; ela me encarava com olhos frios e malignos, um olhar que congelaria até mesmo a alma. Se eu conseguisse descrever o que me lembro com exatidão, seria uma face ameaçadoramente diabólica.
Perversa. Nociva. Ardilosa.
O quê...?
Nem parecia mais a mesma Maria que conheci.
Então seus lábios se movem. Palavras mudas brincam em sua boca se mexendo. Ela dizia algo, mas eu não ouvia mais nenhum ruído.
E depois? Só o silêncio e o escuro para responder.
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Vazio... Não existe nada na tênue fronteira entre a vida e a morte...
Somente o gelado sopro convidativo do abismo!
Depois que a luz dos meus olhos se apagou, uma figura estranha se mostrou parada na minha frente. Era algo que eu não sabia descrever ao certo o que era. Lembrava ser uma coruja, mas tinha alguns aspectos humanos.
........
*som profundo de vento carregando folhas*
*um grilo*
Você se saiu bem... humano.
Silêncio.
— Quem... é você?
Não está me reconhecendo?
A voz talvez fosse familiar, mas eu não associei a nada que eu já tivesse conhecido.
Eu sou Gallatin! Essa é minha verdadeira forma.
— Você é uma coruja gigante e deformada? Quer assustar quem uma hora dessas?
Digamos que sim. Mas vamos ao que realmente importa....
— Eu morri, não foi?
Eu praticamente adivinhei; não era algo difícil de se perceber. Ainda me lembrava claramente do brutality que levei bem na fuça.
Infelizmente sim. Mesmo com todos os status, o oponente era muito superior.
Trocamos olhares tristes e silenciosos por um tempo Então ele continua: Nós nunca tivemos nenhuma chance de vencer!
Eu só concordo mexendo a cabeça.
— Bom... E agora?
Eu pergunto aquilo praticamente sem chão. Literalmente sem chão, já que eu estava flutuando em um vazio eterno e escuro. Apenas a voz de Gallatin era audível naquele lugar.
Me pergunto se todos os personagens, avatares e heróis dos nossos jogos que morriam encostando o testão em algum inimigo, caindo na lava borbulhante ou até perdendo para o chefão já passaram por aquele lugar, no mínimo, tenebroso.
Eu encarei naturalmente aquele espaço como uma sala de espera onde o personagem ficava aguardando seu respawn ou o temido GAME OVER!
E agora tinha chegado a minha vez.
Ainda há esperança, jovem aventureiro!
Esperança era exatamente tudo que eu não tinha. Mal tinha chegado ao meu jogo e já tinha morrido miseravelmente em um x1. Sequer fiz alguma missão, entrei em uma guilda ou salvei alguma princesa ou reino.
Eu era um fracasso como protagonista de Isekai e como jogador!
— Eu morri. M-O-R-R-I! Que esperança um morto tem?! Quando se morre, morre pra valer! Aqui pode até ser um jogo, mas eu não tenho nenhuma vida extra!
E então uma cena bem abstrata e inesperada acontece: a imagem de Gallatin começa a se desfazer em um pozinho brilhante que voa pela interminável imensidão negra. Era praticamente a única coisa que brilhava ali, como um enxame de vagalumes.
Ele fecha seus olhos lentamente. Mesmo eu não sabendo se corujas podiam sorrir, eu sentia que agora ele estava sorrindo.
Creio que seja hora de nossos caminhos se separarem, jovem Juniorai.
— Espera aí! O que está dizendo?!
O que você está vendo agora é o que sobrou da minha energia. Já que não há mais uma Relíquia Hospedeira, minha essência se juntará ao cosmos novamente....
— E-e-espera! Você... não pode me abandonar assim!! E quanto a mim?! Eu vou ficar preso nesse lugar para sempre?!
Não irá. Estou transferindo o que restou da minha energia para que possa sobreviver.
Todo aquele brilho luminoso que se separou da imagem borrada da coruja agora se fundia ao meu corpo.
Minha mente e meu raciocínio não consigam absorver toda aquela cadeia de acontecimentos tão imprevisíveis. Não acreditava também no que estava acontecendo ali, de fato. Ele realmente... estava me deixando?
— Gallatin...
Esse é meu último presente para você, Juniorai: uma vida extra!
— Uma... vida extra?!
Agora... eu preciso... ir.
— Não! NÃO VÁ! Deve haver alguma forma... POR FAVOR, NÃO ME DEIXE SOZI...
O que restava da imagem da coruja se desfez lentamente até desaparecer completamente. O lugar volta a ficar escuro e de começo parecia que nada havia mudado. Meu corpo que antes estava praticamente sem peso e flutuando no ar como um bolo de poeira carregado pelo vento, começa a ficar pesado.
Quando me dei conta, já estava despencando no escuro em um abismo sem fim.
— AAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHH!
A última palavra que pensei ter ouvido ele falar enquanto caia, foi:
Conto com você para detê-la, Juniorai!
— AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHH!
ZUUP!
Depois uma eternidade caindo, eu acordei gritando em algum lugar. Era uma sensação horrível de quando você acorda de um pesadelo com o coração na quinta marcha.
— AI! Ai, ai, ai, ai, ai, ai! DROGA!
Procuro ritmar a respiração e me recompor. A cama estava molhada, mas eu tinha certeza de que não havia mijado nela — pelo menos, eu acho que eu tinha certeza —, sem falar que meu corpo todo estava enfaixado e mais quebrado que o Ômega Rugal no KoF 98.
Na verdade, era só o meu suor — nunca duvidei. Acordei bem ofegante e transpirando muito. Não sei como eu não derreti ali em cima, vítima de desidratação. Acho que por isso múmias deviam ser enrugadas.
Levantando o rosto, eu olhei em volta e percebo que estou em uma cela e todo enfaixado. Uma cela pequena e escura — e vocês sabem né?
Cela pequena e escura = masmorra!
A única coisa que iluminava aquele espaço e o corredor do outro lado das grades era uma pequena tocha na mesma parede, bem próximo das barras de ferro. Além da derrota, agora eu era um prisioneiro daquele reino e sem qualquer expectativa de ver a luz do dia novamente.
E quem sabe, eu não estivesse esperando uma execução formal? Era a possibilidade menos provável porque eu estava praticamente morto, mas ainda era uma possibilidade...
Morrer... aquela palavra me fez lembrar de uma coisa: Gallatin! Vasculhei minhas roupas e ataduras — e haja atadura, hein! —, mas a única coisa que encontrei foi um pedaço de madeira quebrado, provavelmente a única coisa que havia sobrado do machado.
Gallatin...
Fiquei vários longos minutos encarando o pedaço destroçado de madeira na palma da minha mão, completamente desolado e com o espírito e a vontade abatidos.
Além de saber que eu tinha sido jogado naquele buraco escuro e fedido, agora eu estava sem minha única companhia e minha garantia de sobrevivência naquele jogo. Sem minha Relíquia Hospedeira...
Dei uma olhada rápida no meu inventário. Mais vazio que seu inventário quando você vai parar no hospital em GTA. O único item que eu tinha anteriormente, o cabo de madeira, agora se converteu no item [LASCAS DE MADEIRA] — x10, com a seguinte descrição:
|- Restos da Relíquia Hospedeira, Gallatin. -|
Um cadáver! UM MALDITO CADÁVER! Eu nunca mais iria olhar madeira quebrada da mesma forma, porcaria!
Não havia mais nada além disso. Nenhuma evidência de que algum dia eu poderia reaver minha arma de novo. Aquele fato começou a instalar um verdadeiro estado de pânico em mim.
Sem parar, eu fui direto pros status e que agora estavam bem piores que antes:
FORÇA: 10(-40) CONSTITUIÇÃO: 5(-25)
DESTREZA: 0(-10) SABEDORIA: 0(-5)
ESPÍRITO: 0(-5) HP: 10 / 500
MP: 0 / 100
SEM STATUS ADICIONAIS
EFEITOS NEGATIVOS: NÃO TEM
Meus olhos sangram ao ver aqueles status! Só agora eu via a diferença de que Gallatin fazia nos meus atributos iniciais.
Aqueles deveriam ser os atributos normais de qualquer pessoa comum daquele mundo. Os 10 de HP e o 0 redondinho na minha barra de energia refletiam meu estado de merda atual.
Naquele momento, até o monstro mais insignificante podia me matar facilmente. Eu me sentia totalmente indefeso e a mercê da própria sorte — atributo que eu não tinha nem no mundo real. A situação podia ficar pior do que já estava?
E cacete... como podia!
— Até que enfim, você acordou! Já estava imaginando que tinham me prendido junto com um cadáver. Já ia reclamar com o guarda.
Eu me assustei e quase caí da minha cama de madeira improvisada. Um indivíduo escondido pelas sombras falava comigo do fundo da cela — e aquele lugar por ser escuro aparentava ser bem menor do que realmente era.
— Droga! Quem está ai?! QUEM É VOCÊ?!
— Opa, opa! Vamos com calma aí, garotão!
E com mais um movimento brusco, a dor visceral atacou meu corpo inteiro de novo, como se o elefante mais gordo da África inteira tivesse caído em cima de mim.
— Ai, ai, ai, ai, ai! QUE DOR! Aaaaiiii!
O desgraçado começa a rir com as mãos na barriga.
— Isso é o que dá ficar dando piripaque com esses ferimentos! Não consegue sequer se mexer direito.
— Droga! Você apareceu do nada, cacete! Como queria que eu não me assustasse?!
— Isso é uma cela. Você está em uma masmorra. Queria uma cela própria para você, por acaso?
A ironia dele me faria socá-lo, se eu não estivesse semimorto. Procurei respirar fundo e me acalmar mais uma vez. Pelo menos eu tinha alguém com quem conversar agora, ou talvez ele mesmo terminasse o que a Thayslânia começou dependendo da sua índole.
Se estava ali, com certeza eu apostava na segunda opção.
Tudo agora me assustava também. Eu tinha acabado de gastar minha vida extra. Estava sem HP e sem qualquer arma ou equipamento. Estava vulnerável a qualquer coisa. Só me restava a desconfiança até da minha própria sombra.
— Então... qual é o seu nome?
— Bem... eu não tenho um nome, mas se quiser pode me chamar de Marlo.
Isso pra mim era ter um nome.
— Meu nome é Junior. Pode me chamar de Juniorai.
— Juniorai, hein? Que nome estranho! Você não é daqui de ||AMINAROSSA||, não é?
Essa era a pergunta que eu sempre tentava evitar responder, mas era quase inevitável. Eu não era tãaaaao diferente assim dos demais, era?
— Não. Eu... sou de fora.
— Imagino que seja um Roriso capturado. A tal General Implacável recentemente voltou da sua campanha de lá. Com certeza ela deve ter conquistado todo o reino a essa altura!
Maria havia citado algo parecido antes da chegada de Thayslânia. Que vários países estavam em guerra e que a tensão na cidade aumentava cada vez mais. Eu facilmente podia ser confundido com algum prisioneiro de guerra. Eu não o culpava pelo julgamento errado.
E falando nela, o que será que eu tinha visto momentos antes de apagar? Aquilo teria sido real ou somente um delírio insano da minha cabeça antes da morte? Isso até agora me intrigava, principalmente o movimento de seus lábios dizendo algo para mim.
Por mais que eu tentasse lembrar agora, era impossível...
— Não. Não sou um Roriso.
Mesmo? E então o que aconteceu para você ficar nesse estado tão deplorável?
Digamos que eu... arranjei briga com a pessoa errada.
Ele soltou uma risada largada. Provavelmente acreditou na minha mentira e se identificou. Só podia ser mais um daqueles beberrões que sempre se via enchendo a cara em tabernas e brigando até por um caroço de feijão.
Ele se aproximou de mim, sentando na outra cama de madeira do outro lado da cela. Era um rapaz jovem, mas meio barbado, magro e usando um colete de tecido surrado e rasgado. Ele tinha minha idade — vi na ficha sofrida dele —, mas parecia bem mais velho. A vida não foi gentil com esse cara.
— Mesmo?! HAHAHAHAHA! Isso acontece com muita frequência aqui na cidade. Vai se acostumando!
Eu não sabia se ele estava tentando me animar ou me colocar ainda mais para baixo me comparando com ele.
— Ah, não é por nada não..., mas tem algum jeito de sair daqui?
Ele me encarou com a expressão confusa.
— Sair daqui? HAHAHAHAHAHA! ESSA FOI BOA!! Já gostei de você, Juniorai!
— Comeu carne de palhaço, foi? Qual é a graça afinal?! — Eu já estava me estressando bem mais do que deveria com uma conversa.
— A graça é que é impossível escapar dessa masmorra! Só saímos daqui se for para a execução ou se formos designados para servir em missões de alguma guilda que esteja precisando. Se não é o caso, apenas ficamos aqui até apodrecermos mesmo.
E o desespero voltava para me dar um oi de novo. E ainda voltou acenando.
— Tá brincando, não é?
— Queria eu estar brincando, meu parceiro! Digo isso porque já faz um tempinho que estou aqui. Não sei quando vou sair, se é que vou sair! Talvez só quando eu morrer aqui dentro.
A minha vontade era de grudar naquelas barras de ferro e começar a gritar por socorro como uma harpia louca, mas nem isso eu podia fazer.
Estava praticamente inválido ali e deixado para apodrecer em uma cela junto com um rato de taberna. Não tinha mais com evitar o desespero — eu já estava usando bem a vida extra que tinha ganho, pelo visto.
No momento, só me restava rezar para alguma divindade fictícia de RPG para que eu conseguisse sair dali de alguma forma. E para minha infelicidade, eu não programei nenhuma.
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[GUILDA DA CAPITAL], ||AMINAROSSA||, no limiar entre a vida e a morte, surgem mais vidas extras.
PLAYER: [Arthur]
Cabeça girando. Uma sensação nauseante.
ZUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU
Vozes distorcidas de longe no meio do chiado...
Eu estava em um ambiente claro. Iluminado e que doía os olhos. Será que eu morri e eu estava no paraíso?
— A-C-O-R-D-AAAAAAAAAAAAAA!
PAAM!!
— OOOOUUUUUCHHHHH!
Senti um grande peso sobre cair em cima do meu estômago — era o peso de uma pessoa e ela ainda caiu sentada! — e eu cuspi um jato de saliva e ar. Eu mal começava a despertar e já queriam me nocautear de novo.
E então vozes ao meu redor falavam:
— Ah! Estou vendo que ele acordou! HIHIHI...
— Não é que esse elixir funcionou mesmo? Sou um gênio!
— Deem espaço para ele respirar, por favor! E Kakuran... eu disse para acordá-lo, não MATÁ-LO!
— Foi maaaal! Eu me empolguei! Hihihi...
— Cof! Cof! Onde... onde eu... estou?! — Ainda estava desorientado e sem ar, ainda por cima.
Em uma rápida olhada, eu parecia estar em um saguão enorme de algum estabelecimento. Estava organizado demais para ser uma taverna e tinha muitos aventureiros. Alguns estavam ao meu redor e outros apenas me olhavam com desdém e passavam reto.
Acho que eu estava na sede de alguma guilda. Alguém tinha me socorrido quando caí e me arrastado até lá.
— Como se sente aventureiro? Seria um porre se eu tivesse tido todo o trabalho de te carregar e você morresse aqui.
Aquela voz... não tinha dúvidas: era Michaelis, o cara com a espada maneira!
— Michaelis?! Você... me salvou?
— Bah! Não precisa me agradecer. Eu só estava passando por perto e não tinha nada de importante para fazer, então decidi salvar seu couro por hoje, moleque! — Ele falou até bem arrogante.
— Ah... obrigado... eu acho.
Uma maga de rosto gentil e corpo pequeno e jovem, vestindo um manto preto e um grande chapéu com olhos gigantes e vermelhos me trouxe um vidro com um líquido viscoso roxo e malcheiroso. Provavelmente devia ser outro remédio maluco feito por ela.
— Acho que isso deve servir. Beba tudinho, está bem?
Ela era tão bonitinha e pediu com tanta gentileza que eu estava disposto a remediar o cheiro daquela coisa.
Virei o frasco em uma única golada convulsa. Acho que nunca passei tão mal na minha vida quanto bebendo aquilo. A comida do monastério perto do gosto de terra daquele troço parecia um maná dos deuses.
— BHAAAAAAAAAAAAAHHHH!
— HAHAHA! Você se acostuma! Agora trate de melhorar... Senão, eu te mato!
A voz dela mudou tão repentinamente de fofa para ameaçadora que eu me assustei.
— E... onde eu estou? Eu... estou com a minha cabeça toda zoada... — E senti uma pontada forte no crânio.
— Você está na [GUILDA DA CAPITAL], garoto! — Disse Michaelis para a minha surpresa.
— O QUEEEE?! Mas então você... você...
— Isso mesmo! Eu sou um dos cabeças daqui! HAHAHA!
Eu senti todo o elixir voltando pela minha garganta com a surpresa. Eu saltei do sofá e me curvei no chão, agradecendo-o de forma exageradamente solene — e bote exagerado nisso!
— MUITO OBRIGADO, SENHOR! NÃO VOU ESQUECER DO QUE FEZ POR MIM!
Ele fez uma careta confusa, parecendo não entender o que eu estava fazendo.
— Ei, ei! Vamos parando com isso! Eu já disse que não precisava agradecer, não é?
— Desculpa! Mas..., porque o senhor salvou um estranho como eu?
Deve estar se perguntando por que alguém tão experiente e já aposentado como ele salvaria um iniciante como eu. Bom, devo dizer que isso é uma pergunta tola.
Ele iria me cobrar alguma missão depois, é claro! Geralmente era isso que a maioria dos aventureiros que já haviam deixado o campo de batalha faziam, mas sua aura não me dizia isso.
Chame de intuição ou pressentimento, mas talvez eu estivesse enganado quanto aquele aventureiro.
O velho cruzou os braços, deixando a grande bainha de sua espada encostado na mesa quadrada de mármore ao lado. Ele me fitou, seus olhos sérios, mas não ameaçadores.
— Você me lembra muito eu quando estava começando também. Aposto que deve estar aqui por algum motivo importante, não é?
— Ah... sim. Vim até aqui por causa da minha mãe... — Não sei porque eu deveria me explicar para vários estranhos, mas aquilo não tinha importância agora. Eles salvaram minha vida de qualquer forma.
Michaelis continuava a me encarar, seu olhar sempre questionador.
— Você ainda está todo ferido. Aqui... beba essa poção e ficará novo em folha em questão de segundos. — Então ela tira outro frasco embaçado da sua bolsa de couro mágica.
O líquido parecia uma geleia e tinha um cheiro mais barrento ainda. Eu sequer tinha me recuperado do primeiro e ela já queria me enfiar outro goela abaixo.
— Não tem nenhuma magia para remover debuffs, não?
— Infelizmente não. Beba logo isso, seu fresco!
Eu fiz uma careta, tapei o nariz e fechei os olhos para beber. Por incrível que pareça, o gosto era até bom se eu bebesse de nariz tampado. Acho que funcionou.
Já não me sentia nauseado ou tonto e aos poucos, minha força foi voltando. Aquela poção maximizava ao extremo a taxa de recuperação de HP — quebrando o limite de recuperação do meu próprio nível!
Era uma poção bem poderosa e só poderia ser produzida por uma maga de alto nível.
Não esperava menos de uma maga da [GUILDA DA CAPITAL].
Meu braço estava exposto e ela se oferece para cuidar dele também. Eu recuso.
— Tem certeza?
— Absoluta! Eu já estou bem. Obrigado pelo antídoto!
— Pelo menos deixa eu dar uma conferida nele para ver o que pode ser. Parece que as coisas estão realmente feias aí!
— Não! Espera...
Então ela tocou em Salamandra e a Relíquia Hospedeira começa a sugar o MP dela como uma sanguessuga. Além disso, ela paralisou subitamente.
Essa coisa... está sugando minha magia?!
Eu dei um empurrão nela para afastá-la de Salamandra antes que tivesse sua magia completamente drenada — e se fosse, sequer ia pra mim — e o protegi contra olhares alheios. Alguns em volta perceberam a reação estranha da maga, inclusive o próprio Michaelis.
— Está tudo bem mesmo! É sério! Não precisa se preocupar com isso. — Eu fiz outro agradecimento curvando a cabeça. — Obrigado pelos seus cuidados!
Depois de um tempo fora do ar, ela piscou várias vezes e pareceu voltar a si.
— Não precisa agradecer, mas é bom tomar mais cuidado! E suas roupas também estão um trapo também.
— Esse braço é muito estranho. É algum tipo de maldição?
Um [CLÉRIGO] e outro [MAGO] de algumas mesas depois também sussurram entre si:
— Ele deve ser fruto de algum experimento com magia arcana.
— Deve ser um híbrido! Aqueles híbridos de humanos com dragões.
— Dragões ainda existem? Eles são bem raros inclusive, né?
— Melhor deixa-lo quieto. Vai que ele passa alguma maldição pra gente!
Até o [FERREIRO] ouviu e participa da conversa:
— Eu nunca tinha visto um braço como esse! Será que ele é algum tipo de demônio?
— Ele é bem suspeito... Será que ele vem de fora?
O pior é que eu conseguia ouvir alto e claro todos os burburinhos de todos que estavam no saguão — nem pareciam que estava sussurrando. Todos teorizavam alguma teoria bizarra sobre Salamandra; essa era a razão pela qual eu vivia com meu braço esquerdo idiota enfaixado.
Esperei um tempo sentado para me recuperar. Logo o assunto de praticamente toda a guilda mudou — ainda bem! — quando um doido passou correndo pela porta de entrada, todo esbaforido.
— GENTE! GENTE! Vocês não vão acreditar! Um maluco desafiou a General do exército Aminarosiano na entrada da cidade!
Toda a guilda praticamente parou. Todos estavam em choque com o que ouviram, menos eu. Devia ser algum maluco suicida ou algum aventureiro desmiolado atrás de fama. Nada que merecesse minha atenção.
Pelo menos, todos esqueceram o meu braço.
— Sério?! Quem foi? — Perguntou um dos atendentes.
— Nunca pensei que tivesse alguém louco a esse ponto. Nem o cara mais bêbado faria algo assim! — A [MAGA] não consegue esconder todo o seu espanto perante aquele relato absurdo.
— Estão dizendo que ele é alguém de fora. Provavelmente do reino rival! A General derrotou ele com um golpe só! — E o doido que parecia ser mais um comerciante socou o ar várias vezes, empolgado.
— Nada além do esperado. Realmente a General é alguém com uma força impressionante. — Afirmou o [FERREIRO].
— Esse maluco morreu?
— Parece que ele está morto, mas levaram ele para as masmorras mesmo assim. Acho que deve estar vivo, né?
Um dos guerreiros que bebia em uma mesa do lado da entrada, bateu a caneca de madeira com força na mesa e rindo, diz:
— Admiro a coragem dele!
— Você quis dizer loucura, não é? — Disse um dos [CLERIGOS] em um tom ácido.
— Não me admiraria se ele estiver à beira da morte agora. Nesses tempos de guerra, estão aparecendo lunáticos em tudo que é canto! — A [MAGA] suspira.
— A cidade inteira está falando disso! Realmente é a primeira vez que alguém desafia a General em público!
Com tantos comentários sobre o assunto, até eu começava a me interessar pela história. Contudo, eu não estava ali para conversar. Após recuperar minhas forças, me levanto e caminho à uma das atendentes.
— Tem alguma missão para o lado da região de ||LHASA||?
— Hm! Deixa-me conferir aqui...
Ela parecia meio aérea quando me atendeu. Talvez fosse por conta do assunto polêmico que estrondou no lugar. Então procurou em uma grande pilha de papéis empilhados, procurando pelas Quests Pendentes.
Eram separados por região e cada região possuía um número de missões as quais os aventureiros poderiam escolher quais aceitariam ou não. Acontecia de um grupo aceitar apenas uma missão como apenas uma pessoa sozinha poderia pegar duas ou mais.
As missões também eram classificadas em ranks, que variavam de 1 a 5 estrelas. Era bem simples: quanto mais estrelas, mais difíceis e mortais eram as missões. Fiz questão de aprender essas formalidades antes de vir para ||AMINAROSSA||.
— Está aqui. Infelizmente, só temos duas missões requisitadas nessa região e uma já foi aceita por um grupo. Só sobrou essa de rank 4 estrelas.
Ela me entregou a carta contendo todos os dados da missão. Eu a li calmamente. Segundo o que estava escrito, o cliente era uma família nobre de uma cidade da região de Lhasa, a qual estava sendo ameaçada por um Troll monstruoso. A missão era para encontrar e dar fim no monstrengo.
Confesso que nunca havia visto um Troll na vida, mas eu ouvia as histórias que minha mãe me contava quando ainda estava no monastério.
Ela me dizia que eram seres enormes e monstruosos, desprovidos de racionalidade e totalmente imprevisíveis. Talvez justificasse o rank de 4 estrelas que a missão ganhou.
— Vou ficar com essa!
— Já montou sua equipe para a missão?
— Equipe? — disse, pendendo a cabeça para o lado.
Nós nos entreolhamos, ambos confusos.
— Ah... sim. Missões de rank 3 ou acima é recomendável que vá em equipe. Claro que não é uma regra. Se for da sua vontade ir sozinho...
— Tenha em mente que missões de rank 4 sem uma equipe é morte certa — disse, de repente, uma voz tão grave quanto serena ao meu lado e me assustando.
De onde aquele paladino pomposo de cabelos lisos e loiros saiu? Ele estava sentado do meu lado, tomando uma caneca de vinho e exibia sua enorme espada cromada e armadura brilhante.
Acho que estava me avaliando pela minha aparência, visto o jeito desagradável que me fitava dos pés à cabeça. Além disso, sua postura e aparência lhe passava um ar de ser da realeza.
Como eu não vi um cara tão presença quanto ele ali?! Eu devo ter me deixado levar pelas conversas paralelas no ambiente.
— Obrigado pela dica, senhor intrometido!
— Por nada, embora eu saiba que você não vá ouvi-la. Seria pedir demais de um iniciante da ralé.
— Como é que é?
— Talvez consiga resistir um pouco com esse seu braço esquisito, mas é suicídio enfrentar um Troll sozinho. Principalmente se for um Troll das Montanhas.
Troll das Montanhas, refleti nesse nome. Só o nome já soava ameaçador.
— É um tanto óbvio. ||LHASA|| é uma região montanhosa ou você também não sabia disso?
Aquele paladino já começava a me dar nos nervos. Aquele jeitinho esnobe de quem achava que sabia de tudo me fazia querer fazer aquela pelezinha de pêssego e aquela armadura escandalosa virar carvão.
— Hunf! Não importa! Se eu conseguir arrumar uma equipe ou não, eu vou completar essa missão de qualquer jeito!
HAHAHAHAHAHA! É assim que se fala, iniciante!
— Guilvolt tem razão. Sem uma equipe você não vai sobreviver, garoto! — Michaelis reforça a deixa do senhor sabe-tudo.
Ele se levantou do banco de madeira e se reuniu com a [MAGA]que me trouxe o antídoto, o [GUERREIRO]carrancudo de armadura quebrada, armado de uma enorme lança e que tinha um topetão exagerado, e por fim o [CLÉRIGO]idoso com vestes brancas que portava um cajado de madeira retorcida com uma esfera na ponta que brilhava.
Percebi que os quatro eram do mesmo grupo e todos tinham níveis e atributos bem altos.
— É desses tipos de aventureiros que a [GUILDA DA CAPITAL] precisa.
— Vamos andando! Ainda vamos andar muito! — A maga já reclamava, aos suspiros.
O topetudo se animou.
— Isso não é problema para mim! Posso caminhar por até dois dias inteiros sem descanso! BAH-HÁ-HA!
Acho que temos outro lunático aqui.
Eles saem.
Fiquei refletindo: Será que eu realmente deveria arrumar uma equipe? Olhei a minha volta procurando por possíveis candidatos. A maioria dos que encontrei já estavam em grupos.
Os poucos que estavam sozinhos queriam estar sozinhos ou possivelmente não me aceitariam em sua party, por causa do meu nível — e convenhamos, ninguém aceitaria um cara de Lv.1 a não ser que também fossem do mesmo nível.
A vida de um aventureiro iniciante era complicada, principalmente em uma guilda como aquelas que só deveria ter pessoas de alto calibre.
Me dirigi para a atendente de novo.
— Aonde posso achar alguém para a minha equipe?
— Para você chamar alguém da guilda para a sua equipe, primeiro você tem que se afiliar. Cobramos uma taxa de afiliação anual.
O nome “taxa” atingiu meu coração desprevenido como uma flecha — acho que uma flecha seria mais de boa.
— De quanto?
— Apenas 200 peças de ouro.
— QUÊEEEEEE?!
Sério que ela usou a palavra Apenas?! Quase tive um enfarto ao ouvir aquela quantia absurda. A missão de rank 4 que eu peguei dava como recompensa 30 peças de ouro! Ainda levaria uma vida para eu conseguir me afiliar!
— Muito caro! Tem outra opção?!
A atendente revirou os olhos, como se pensasse “estou atendendo um pobretão!”. Minha região, principalmente a cidade onde eu vivia e onde ficava o monastério, nunca foi uma das mais ricas. Longe disso.
— Bom... tem outra opção sim.
— Diga! E por favor, sem envolver dinheiro!
Disse aquilo quase chorando — era duro ser um aventureiro pobre. Se ela ainda tinha dúvidas de que eu era um falido, agora tinha certeza.
— Você pode tentar recrutar prisioneiros para a sua party!
— Tá de sacanagem comigo, né?!
— É sério! Os aventureiros que não tiverem quem recrutar da guilda, podem recorrer ao sistema prisional para requisitar um parceiro ou um grupo. Só não garanto que vá encontrar alguém com... aaah... como posso dizer? Grandes habilidades ou pessoas muito boas...
Pela voz dela e a forma como me olhava com aquela expressão zombeteira, aquela desgraçada estava claramente me avacalhando.
Maldita!
Porém que escolha eu tinha? Ou era aquilo ou eu iria enfrentar um Troll das Montanhas muito puto sozinho. Não que eu não confiasse em Salamandra, mas também não queria depender única e exclusivamente dele — e isso seria a última coisa que eu pensava em fazer. E também, se fosse para ir pra vala eu não iria sozinho, é claro.
— Tá bom, tá bom... como eu faço para recrutar alguém de lá?
— Ótimo! Preencha esse pequeno formulário e depois um guia irá com você até as masmorras para que recrute sua equipe.
Ela invocou um pergaminho inteiro que se desenrolou magicamente sobre o balcão na minha frente. Eu iria levar o dia inteiro pra ler tudo isso! Só o contrato era maior do que qualquer escritura que li na biblioteca do monastério!
— Está certo...
— Escolha sabiamente para que possa ter êxito em sua missão. Embora nenhuma escolha seja boa de qualquer forma.
Aquele último comentário foi tão animador quanto desnecessário.
Eu terminei de preencher o formulário quase interminável e esperei pelo meu guia aparecer. Um anão mal-encarado de longas barbas e trajando uma armadura de ferro entrou no saguão e se apresentou para mim.
Era meio estranho ele ser meu guia; mais se parecia um guarda do que um guia e tinha a truculência e o olhar ruim como o de um mercenário. Inclusive eu questionei se não estava ali era para me matar ao invés de me guiar.
— Me siga, pirralho! — Curto e grosso!
Espero que não tenha entendido a piada...
— Boa sorte! Lembre-se que você deve completar a missão em até duas semanas.
— Ainda tem tempo limite?!
— Claro que sim! Faça uma boa viagem! — ela disse aquilo acenando e sorrindo, embora eu soubesse que aquele rostinho lindo e simpático fosse só de fachada.
Ela sorria e acenava, me fazendo ficar ainda mais puto. Não chamavam a [GUILDA DA CAPITAL] de a guilda mais complicada e difícil à toa; enquanto estive no balcão, passei o olho em algumas quests em outras regiões de relance.
Era difícil você encontrar uma missão naquela guilda que fosse de 3 estrelas para baixo. Geralmente eram missões de rank 3 ou mais!
Tudo era bem complicado. Até mesmo uma simples formalidade como aquela. Enquanto caminhávamos até a masmorra, eu refletia nas opções. Digamos que a própria atendente não me animou muito para aquilo.
Só imaginava quem seriam os azarados escolhidos para serem minha equipe. Dependendo da escolha, o único azarado seria eu.