Volume 1 – Arco 1
Capítulo 5: Os caras que vieram do Mundo Real
Em geral, aquela situação atual era um grande, tedioso e glorioso saco! Não havia nada para se fazer naquela cela minúscula e naquele breu, além de ouvir as histórias entediantes de Marlo sobre sua família e suas noites de farra.
Ah, sim! Eu adivinhei que ele fosse mais um bêbado que havia sido preso por causar confusão em uma taberna por aí.
No fim, eu estava certo. Se tinha apostado em mim, ganhou.
Enquanto isso, meu HP lentamente começava a regenerar. Mas beeeem lentamente mesmo! Não sabia mais ou menos quanto tempo havia se passado exatamente desde que fui preso, mas devia ser uma eternidade agonizante para mim a se confirmar.
Você perdia a noção de tempo quando se estava em uma masmorra no subsolo. Quem sabe eu não tivesse passado tempo nenhum e fosse só coisas da minha cabeça? Quem sabe se realmente passou um tempo absurdo? Quanto tempo passou exatamente?
Acho que não havia nada como um relógio em um mundo de fantasia...
Acontece é que esse tempo inteiro, meu HP subiu de 10 para 50. Isso era sinal de que meu corpo estava se curando? Se sim, ainda iria demorar um bom tempo até chegar aos 500 que era o máximo de saúde que eu me dispunha agora.
Aos poucos eu me rendia a loucura e ao desespero — bem, louco eu já estava um pouco... ou eu já era? Naquelas horas, Gallatin me traria uma palavra de conforto ou uma instrução.
Algo que me daria alguma esperança.
— Aham... sim, sim... sei...
— Você está me ouvindo mesmo?
— Ah? Ah, claro! Estou, estou sim...
— Ainda bem. É muito importante...
Na verdade, eu já tinha parado de prestar atenção faz algum tempo — eu acho que... desde o sétimo conto. Só esperava que ele não perguntasse sobre o que estava falando. De vez em quando, era possível ouvir gemidos e lamentações sinistras das outras celas quando ele parava de tagarelar.
Alguns prisioneiros enlouqueciam com o isolamento prolongado e começavam a ter distúrbios psíquicos, ficando extremamente agressivos. Havia até alguns casos de canibalismo, segundo o próprio Marlo — pixels comendo outros montes de pixels. Depois iria procurar o script “zombie” no código e apagar esse também junto com o código do Marlo.
Outros morriam de fome ou por doenças. Dava para perceber pelo estado raquítico dele que não comia direito há dias ou até semanas. Os carcereiros só traziam uma refeição por dia e geralmente a comida não era a melhor do mundo.
Talvez se um mendigo vasculhasse uma lata de lixo acharia coisa melhor. Era uma espécie de gororoba marrom e elástica de cheiro terrível. Não tive coragem para saber como era o gosto, então...
Além de que só havia um sanitário em cada cela. Uma latrina descoberta e que ficava no mesmo ambiente das camas e da comida que eles comiam. Era uma situação desumana — mesmo para um jogo.
De vez em quando, alguns guardas de armadura passavam com tochas para checar cada cela. Se tivesse alguém morto em alguma, eles tratavam de tirar o cadáver logo, mas não pense que eles limpavam o local.
Fora isso, continuava-se os gritos, choros e alguns sons metálicos estranhos. Era fácil de você perder sua sanidade mental em um lugar daqueles, então preferia que Marlo continuasse com seu repertório de histórias malucas.
Um ranger de porta foi ouvido no corredor. Devia ser mais um guarda para fazer a ronda daquele horário. Logo, uma voz estranhamente familiar ecoou no corredor, fazendo meu coração acelerar.
— Ei! Psiuu! Está ouvindo?!
— O que foi? Deve ser mais um guarda...
— Não! Essa voz... eu conheço essa voz!
— Como assim, conhece?
Uma luz de tocha ia se aproximando da minha cela e eu rapidamente me sentei na cama de madeira. As silhuetas das sombras denunciavam duas pessoas, uma bem baixa e troncuda e outro mais alto e esguio. Os dois passam pela minha cela, revelando seus rostos.
— MEU DEUS! EU NÃO... ACREDITO...!!
— O que foi, cara?! Você ficou agitado do nada!
Soltei um grito involuntário. Não havia erro: quem estava ali no corredor era Arthur, um dos meus amigos do grupo do ensino médio que desapareceram naquele dia!
Naquele momento, o sentimento de alegria e de esperança novamente tomou conta do meu ser. Ele vestia uma grande capa que cobria quase todo seu corpo, uma espécie de pano surrado que vestia sua cabeça e seu braço esquerdo estava diferente. O que era aquele braço afinal?
Mesmo com todas as diferenças notáveis, eu tinha certeza que era meu amigo! Tudo começava a ficar cada vez mais bizarro e confuso. Além de Thayslânia, Arthur também veio parar naquele mundo de fantasia. Quantos amigos meus mais vieram parar aqui?!
E se ele não me reconhecesse também, assim como Thayslânia? Como eu ficaria? Então eu iria morrer ali dentro mesmo, junto de Marlo. E não tinha mais Gallatin para me reviver dessa vez.
Tudo dependia dele me reconhecer agora.
— .......?
— ARTHUR! ARTHUR! AQUIII!
— Espera… como você sabe meu nome? Nós nos conhecemos de algum lugar?
Merda! Ele também não se lembrava! O que eu mais temia realmente aconteceu. Minha abordagem tinha que ser cautelosa ou eu podia acabar assustando minha única forma de sair daquele lugar.
— Sim. Nós... ah... somos amigos de infância! Não se lembra de mim?
— Para falar a verdade, não.
Minha expressão e meu corpo congelaram.
— Tem certeza?! Por favor, tem que se lembrar... — A voz estremeceu um pouco, revelando uma ponta de ansiedade.
— Sinto muito, mas deve estar me confundindo com outra pessoa.
— Não! Por favor! Pensa um pouquinho, cara!
— Então... vamos continuar ou vai perder tempo com esse cara? Deve ser mais um lunático ou um espertinho querendo se livrar. Essas masmorras estão cheias de malucos.
— Não. Vamos continuar, por favor.
E novamente o desespero bateu. Eu me levantei cambaleando e me jogo nas barras da cela, gritando feito um maluco.
Eu não podia deixa-lo ir. Ele era minha única esperança!
— NÃO! ARTHUR! Droga! Você tem que se lembrar! Eu sei quem você é! MERDA ARTHUUUUR!
ZIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII...
— Ei, pirralho! Qual é a tua?! Por que parou de andar? — pergunta o anão carrancudo, se virando.
Arthur parou de andar de repente, ficando com a cabeça baixa. O baixinho mal-encarado observa sem entender nada. E então uma pontada acerta minha cabeça em cheio e me derruba no chão da cela.
Arthur também cai no meio do corredor, ficando de joelhos. Nós dois soltamos um berro de dor que ecoou pelo corredor inteiro, praticamente ao mesmo tempo, bem mais alto que a maioria dos murmurinhos de lá.
— AAAAAAAAAAAAAAAAAHHH!
— Ei, ei, ei! O que houve, pirralho?! Se controle!
— O que está acontecendo?! Junior! JUNIOR! Ei! — Marlo estava desesperado com as mãos na cabeça.
E então um lampejo acendeu minha mente bagunçada. Tudo se passou em uma fração de segundos.
Junior! Merda JUNIOOORR!
Um flash instantâneo... Uma queda... Gallatin.
Ele me encarava com olhos demoníacos.
......
Uma explosão, vinda de algum lugar.
Uma labareda de fogo... Asas de fogo... Um dragão!
O que está acontecendo? Por que eu estou nessa campina?
Garoto! Se controle! Para com isso!
Outra explosão...
Um rastro de fogo e destruição!
GALLATIN!
MORRAAAAA!
Última explosão
......
MERDA JUNIOR!
Essa foi a palavra!
A criatura vai embora. Não resta mais nada. O golpe... foi forte demais...
Dois corpos que nunca deviam se encontrar.
Vou lhe devolver isso. Seu propósito é bem maior...
Uma pedra. Memórias...
Propósito? Eu sou apenas um filho de um ferreiro normal e...
Não! Não aceite essas memórias falsas! Elas não são suas! Elas não dizem quem você é de verdade!
E... quem... eu sou...?
........
Você é...
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De volta ao presente...
Após minha epifania dolorosa, recebo um alerta mental. Um item havia sido adicionado misteriosamente ao meu inventário:
ITEM ADQUIRIDO! %#ASxa1dfd2546&3 — x1
No momento, eu ainda me recuperava daquela dor tão intensa e aguda. Era como se minha cabeça fosse explodir, então nem me importei com aquele aviso por hora.
— Que... merda... acabou de acontecer?!
Eu estava ofegante. Meu coração, acelerado. O olhar dando voltas e voltas. Levantei o rosto e vi Arthur se levantando no corredor também, tropicando e procurando se apoiar nas paredes de pedra do corredor.
Ele se vira para mim com uma expressão assustada e surpresa.
— Você! Eu... já me encontrei com você antes!
— Eu sei! Eu não disse que eu te conhecia? E você... também me conhece...
Eu não forcei diálogos longos porque minha cabeça ainda estava uma verdadeira bomba relógio.
— Quem... é... você? Onde... você... me conhece? Diga... agora mesmo!
Arthur veio devagar, rastejando nas paredes ásperas de terra para não cair e me agarrou pela camisa por entre as barras.
O anão, porém, não parecia muito comovido e voltou a resmungar:
— Oh, moleque! Dá para acelerar isso aí?! Eu sou alguém ocupado, sabia?
— Se você... me tirar daqui... eu posso... tentar te explicar. — Ele me levantou uns 4 cm do chão e nesse momento eu pude ouvir todos os ossos do meu corpo estalando.
Acho que se ele me soltasse naquelas condições era capaz de eu desmontar na descida.
— Acho bom... não estar brincando comigo!
— Não estou! Também encontrei... a Laninha! Ela está aqui na cidade também!
— Laninha?
— A Thayslânia!
O anão esticou as orelhas, parecendo tão surpreso quanto curioso.
— Thayslânia?! Então você deve ser o maluco que enfrentou a General na entrada da cidade, não é? Só pode ser para estar todo arrebentado assim!
— Então, era você de quem todos falavam na guilda. — Arthur menciona.
Era até legal saber que em um mundo fora das masmorras eu já era famoso, mesmo que de um jeito negativo.
— Sim... foi eu mesmo. Mas eu não quis lutar com ela à princípio! Ela me forçou a isso!
— Não deixa de ser loucura o que você fez. Você sequer tem nível!
Ele não precisava lembrar que eu ainda era um simplório Lv.1... E agora um simplório Lv.1 e sem uma Relíquia Hospedeira.
— Mas... como vocês sabem disso? Vocês também viram tudo?
— A cidade inteira sabe disso! Então os boatos eram verdadeiros: você ainda está vivo, mesmo depois de um golpe direto da grande General e aspirante ao trono de ||AMINAROSSA||! Você é bem resistente, hein garoto?
— QUEEEEEEEEEE?!
Thayslânia era uma monarca naquele mundo de fantasia?! E ainda por cima, uma monarca de uma grande potência? Eu acho que depois de saber daquilo, nada mais me surpreenderia naquele dia. Isso explicaria toda a pompa, a entrada triunfal na cidade, a reação exagerada do povo, o cavalo branco, a armadura reluzente...
Acho que se alguém estava vivendo um sonho perfeito de um herói de RPG, com certeza não era eu. E aquele anão mal-encarado não economizou nas palavras ao babar as bolas da Thayslânia.
Só faltou dizer que ela era alguma reencarnação de alguma deusa ou coisa assim.
Merda, Thayslânia! Tinha que roubar todo o meu papel de herói de Isekai, porcaria?!, pensei, sentindo um iceberg de inveja.
— Então está decidido! Vou recrutar ele para o grupo! — Arthur me largou e gritou aquela frase bem aleatória.
Não me larga de forma tão bruta, eu já disse! Eu vou desmontar, porra!
Apesar da dor insuportável no meu corpo todo, não consegui conter o sorriso. Saiu quase automaticamente.
— Ele?! Tem certeza disso? — perguntou o anão barbudo e com olhar desdenhoso. — Esse pobre coitado mal se aguenta em pé. Se passar uma ventania mais forte, é capaz de ele se desmanchar!
— Sim. Ele me convenceu.
O baixinho troncado deu de ombros. Ele me encarou como se eu não fosse grande coisa — errado não estava — e bufou. Aquilo foi até meio ofensivo, devo dizer.
— Se você diz, mas até que faz sentido. Alguém louco como ele com certeza vai servir para a sua missão, nem que seja de isca.
Então ele abre a cela, deixando que eu saísse. Eu andei mancando até me juntar com os dois. Mesmo não tendo sido escolhido, Marlo não pareceu se importar em voltar a ficar sozinho. Antes de nós voltarmos ao corredor para ir para a superfície — eu não via a hora! —, Marlo me diz uma última coisa:
— Boa sorte, parceiro! Quem sabe algum dia não voltemos a nos encontrar?
Eu sorri, passando a mesma confiança em suas palavras otimistas.
— Espero que sim. Aguente firme até lá!
— Relaxa. Meu tempo está acabando de qualquer jeito. E o seu também. — Respondeu ele com um sorrisinho.
Não entendi aquela última tirada dele, então só ignorei.
— Não tem como chamar ele pra party também não, Arthur?
— Não. Eu já nem ia te chamar também! Só te recrutei porque você sabe de alguma coisa sobre mim e eu quero que me conte o que sabe.
Aquilo doeu, mas pelo menos foi franco. Eu não podia culpa-lo também. Alguma coisa me dizia que aquelas memórias falsas não eram apenas uma coincidência.
— O problema é você acreditar...
— Ultimamente eu tenho andado muito cético com várias coisas. Acho que não vai ser um problema.
Caminhamos pelo corredor escuro, passando por várias outras celas. Era cada uma mais horrenda que a outra. Por um momento, achei melhor atravessá-lo inconsciente de novo — se bem que não precisava de muito para me derrubar nas minhas atuais condições.
Procurei não me focar muito no estado lastimável dos prisioneiros e olhei meu inventário de novo, me lembrando do item misterioso que havia recebido após meu violento lapso de memória.
Estava lá! Ao lado dos restos de Gallatin, brilhando em cor purpura e pulsante...
Um //FRAGMENTO DE ALMA//.
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Do lado de fora, o homem escolhido pelo cabo de madeira prova mais uma vez da liberdade!
A luz do sol! Como era bom senti-la de novo no meu corpo!
A luz, o vento soprando... era revigorante poder sair daquele lugar abafado, úmido e fedido! Talvez eu não durasse muito tempo se continuasse ali com meus ferimentos. Morreria fácil para qualquer infecção, apesar de eu duvidar que houvesse algo parecido em jogos de RPG.
Ao inflar os peitos com o ar puro, meu HP saltou dos sofridos 100 para 170. Talvez fosse as condições do lugar que retardavam minha recuperação. Fazia até sentindo essa lógica.
Segui Arthur e o seu guia anão para um lugar chamado de [GUILDA DA CAPITAL]. Era a primeira vez que eu realmente andava pela cidade e eu ainda não me sentia totalmente disposto. Ao chegarmos lá, somos recebidos por atendentes muito lindas, cada uma com suas peculiaridades — pra falar a verdade, as desgraçadas eram IGUAIZINHAS! Só mudava a cor do cabelo e uma usava uns óculos de fundo de garrafa.
— Que lugar enorme! Então, isso é uma guilda de verdade?
— Também tive a mesma reação, apesar de chegar quase morto aqui também. — Arthur dizia aquilo com a voz fraca.
— Senhor aventureiro! Vejo que conseguiu arrastar uma pobre alm... digo... recrutar alguém! Só escolheu ele mesmo?
Podia ver Arthur fuzilando-a com os olhos.
— Sim.... acho que basta para a missão.
.........
— Espera aí! Missão?! Que missão?!
— Exatamente! Foi por isso também que eu te tirei de lá. Você vai sair comigo para uma missão.
Eu mal tinha escapado do fogo e já ia voltar para lá de novo. No meu estado atual, quests estavam fora de cogitação — apesar de que, eu não iria upar se não fizesse nenhuma.
— Então... acho que não vai rolar...
— Por que? — Arthur levantou uma sobrancelha.
— Além de eu estar todo arrebentado, estou sem armas ou uma armadura. Isso sem falar que meu nível é baixo. — Joguei as cartas na mesa. Esperava que, mesmo tendo outra personalidade e outras memórias, a racionalidade da pessoa continuasse a mesma.
Então ele me dá umas tapinhas no ombro — e isso doeu, porra! — enquanto sorria de uma forma assustadoramente boba.
— Relaxa! Meu nível também não é alto! Sou Lv.1 também, parceiro! HAHAHAHA!
— Eu acho que isso não vai acabar bem...
Eu praticamente só apanhei até agora desde que cheguei até a capital; me separei do meu grupo, tive minha Relíquia Hospedeira explodida na base da porrada e fui mandado para o xilindró praticamente morto.
Não tive nem sequer a chance de subir de nível!
— Além do mais, temos que tratar dos seus ferimentos e arrumar uma arma e roupas para você, não concorda?
— Seria bom. A minha arma eu... perdi. — Só me lembrava com pesar dos restos de Gallatin no meu inventário.
Disse aquilo em um tom meio triste e seco. Ainda me recusava a aceitar que não tinha mais minha arma — uma arma tão boa e com uma habilidade tão zoada, digno de mim mesmo. Mesmo que fosse um cabo de madeira falante chato e rígido, era a única coisa em que eu podia contar naquele mundo.
Pelo menos agora eu estava com outro dos meus amigos, então eu já me sentia mais aliviado e seguro.
Entretanto, ainda estava encucado com o tal item //FRAGMENTO DA ALMA//.
O que poderia ser? Sempre que tentava analisa-lo, dizia apenas que era uma pedra preciosa rara de um material desconhecido, inexistente naquele mundo; eu não podia equipar — tipo pra tentar jogar na cabeça de alguém —, usar em algum outro item ou jogar aquilo fora. Estava preso ao meu inventário. Sem falar que surgiu em um momento muito bizarro onde algo inesperado aconteceu.
E minhas questões sem respostas apenas continuavam a aumentar. E eu ainda tinha muitas perguntas para fazer ao Arthur, mas não tantas quanto ele tinha para me fazer.
— Aqui. Tome isso. Vai ficar melhor.
Ele me entrega um vidro com um líquido vermelho. De acordo com minha experiência em RPG, aquilo deveria ser uma //POÇÃO DE CURA//. Sempre quis saber o gosto de uma.
— Valeu, cara!
Nós nos acomodamos em uma das mesas mais isoladas do salão, detrás de um pilar enorme. Claro que aquilo era proposital; afinal, uma conversa daquelas poderia derreter o cérebro digital de qualquer NPC desavisado que passasse na hora e ouvisse aquilo, então preferi não arriscar.
Além disso, já havia acontecido coisas demais e eu preferi evitar comoções desnecessárias.
— Muito bem. Já pode ir falando tudo que você sabe!
— O que você quer saber?
— Tudo! Primeiro... de onde você me conhece?
— Nós somos amigos desde o ensino médio. Nós caímos nesse mundo de fantasia de alguma forma...
— Opa, opa! Calma aí! Ensino médio?! Mundo de fantasia?! Que história é essa?!
Hu,hu,hu,hu... esse cara parece saber de algo...
— Essa é sua Relíquia Hospedeira?
Arthur então me encara com uma cara de paisagem, como se não entendesse. A voz assustadora que parecia vir do braço dele se calou também.
— Ué! Você consegue ouvir a voz de Salamandra?!
— De alguma forma, eu consigo. Eu imaginei que o seu braço fosse algo assim, mas preferi deixar quieto. — expliquei.
Então você consegue ouvir minha voz além de Arthur. É a primeira vez que presencio algo assim também.
A voz daquela Relíquia Hospedeira era grave e tinha uma aura imponente e ameaçadora, muito diferente de Gallatin. Parecia que eu falava com um demônio. Algo me dizia que eu tinha que ficar atento a ele.
Então continuei:
— Como eu estava dizendo, esse mundo não é real. É um mundo de fantasia e nós dois viemos para cá, junto com os nossos amigos.
— Ele cruza os braços, intrigado. O olho brilhante da manopla escarlate que mais se parecia com uma garra de dragão transplantada, também deixava transparecer a surpresa da tal Salamandra.
— PFF! Me parece bem real..., bufou.
Está falando de alguma realidade alternativa? Uma dimensão paralela a este mundo? Salamandra questiona. Pelo visto ele estava ainda mais interessado que Arthur.
— Mais ou menos. A gente vem de um lugar chamado de Mundo Real. Eu e Arthur viemos de lá, mas ele não se lembra. Outras pessoas como a Thayslânia, também vieram de lá. Não sei quantos mais vieram parar nesse aqui... — Tentei reduzir o tom da conversa quando citei a Thayslânia. Era um nome com um peso bem significativo naquele reino para sair falando de qualquer forma.
— Isso já está me dando dor de cabeça. Que negócio confuso!
Arthur coçava a cabeça, não entendendo muita coisa. Eu já esperava que não seria tão fácil convencê-lo, e muito menos fazer suas memórias voltarem.
Pelo menos ele não me chamou pra tretar nem coisa do tipo. Mesmo com amnésia, os traços de personalidade deles, mesmo que meio alterados por causa das memórias postiças, ainda se mantinham um pouco fiéis aos dos meus velhos amigos.
Hu, hu, hu, hu... Então existem outros mundos com mais almas cheias de pecados?
— Como é?
— Não liga para o que esse braço estúpido diz! Então... eu sou seu amigo e nós dois viemos de uma outra realidade chamada de Mundo Real junto com outras pessoas? E na verdade, esse mundo que estamos agora é um mundo falso com tudo que está aqui dentro?
Reprisou tudo que eu disse bem direitinho.
Eu sei. Eu sei... parecia algo surreal demais para alguém que vivia lá. Não era fácil aceitar que aquela realidade em que você vive era uma mentira. Era um jogo de RPG, feito de linhas de código em um programa de computador. E eles esqueceram totalmente que eram do mundo real, adquirindo memórias daquela realidade.
Às vezes, esses mesmos questionamentos são feitos até mesmo no mundo em que vivemos. Não posso culpa-lo por duvidar de mim. Quem sabe se até mesmo o mundo que chamamos de real, também não é algo programado por algum ser maior?
Fica a reflexão.
Seria um desafio recuperar as memórias reais deles ou pelo menos fazê-los me ouvirem. Mas tudo me indicava que a própria saída para isso estava exatamente dentro do jogo, em algum lugar.
— Eu sei... pode parecer loucura, mas é a verdade. Com relação a sua Relíquia Hospedeira, eu não sei como eu consigo ouvi-la, mas eu consigo. Também estou descobrindo várias coisas aos poucos...
Esse moleque não é alguém comum. Parece que ele realmente não está louco ou inventando isso.
A voz de Salamandra ficou subitamente séria. Diria até mesmo que ele estava preocupado com o que falei.
— Sei lá... isso parece tão... abstrato! Não sei... Quer dizer... então minha vida inteira foi uma mentira? Não há sentido na busca e nas coisas que estou fazendo agora ou fiz?!
Pensei um pouco antes de responder. Eu estava usando o dobro de massa encefálica para desdobrar uma conversa tão subjetiva como aquela e aquilo me cansava.
— Suas memórias foram trocadas. Não sei ao certo como viemos parar aqui e como tudo isso aconteceu, mas eu acho que tem a ver com isso.
ZUUP!
Eu mostrei o item //FRAGMENTO DE ALMA// para ele. A pedrinha purpura se materializa na minha mão, brilhando como um cristal. Procurei mostrar aquilo da forma mais discreta possível, mas era quase impossível. Além do item ser bem chamativo e ter uma característica bem única de qualquer outro material que eu poderia encontrar naquele jogo, a reação de Arthur também não ajudou muito.
— UOOOOOOUU! O que é isso?! Nunca vi esse item na minha vida!
— Pra falar a verdade, não sei. Ele foi adicionado ao meu inventário quando estávamos na masmorra. Foi depois que...
Nos entreolhamos como se tivéssemos tido o mesmo pensamento.
— Aquela visão... você teve também, não foi?
— Sim. — Anui com cabeça.
HAHAHAHAHAHA! SIM! Eu me lembro perfeitamente agora! Você disse uma palavra parecida, seu idiota. E então, esse moleque caiu dos céus. Salamandra saiu do silêncio com uma gargalhada bem sinistra.
Naquela hora, meu cérebro centrifugou e os acontecimentos se misturaram e se emaranharam mais que os milhares de fios atrás do meu computador.
— Não entendi... o que você quis dizer com isso?!
— Eu sempre soube que essa coisa estava escondendo algo! Realmente não dá pra confiar em você, hein?!
Você estava lutando contra mim. Uma luta inútil, tenho que salientar. Então você proferiu uma palavra estranha e esse humano caiu do céu, com um machado.
Eu... caí do céu? O que?!
— O que raios eu disse afinal?
Algumas palavras estranhas, mas talvez tenha se parecido com um MERDA JUNIOR.
— O QUE?! — Gritamos quase ao mesmo tempo.
Isso mesmo. Agora isso explica o porquê de eu não ter reconhecido tal conjuração. Nunca havia me recorrido que meu portador era de uma realidade alternativa! De um outro mundo. MUITO INTERESSANTE! MUAHAHAHA!
Mas ele só falou uma frase comum e não um conjuro. Será que estávamos falando alguma língua que não o português padrão?
— Você não entendeu o que o Arthur falou? Que língua vocês falam?
Outra pergunta que Arthur parecia não ter entendido.
— A maioria fala a ‘Língua Comum’. Eu pelo menos estudei um pouco de língua élfica, mas não entendo muito bem...
Eu falo e entendo várias línguas, mas nunca havia ouvido algo assim.
Entendi. Então devíamos estar nos comunicando em Língua Comum e o Português não era nem conhecido aqui. Era algo que era importante guardar, apesar de que, para mim, estávamos falando Português.
— Mas mano... que merda foi essa?! Eu vim parar nesse lugar porque você disse Merda Junior?!
— E tu acha que eu me lembro?! Depois que Salamandra se apossou do meu corpo, eu passei vários dias lutando contra ele até despertar em uma vila isolada perto de ||AMINAROSSA||. Não me lembro de ter feito conjuração nenhuma e muito menos de você caindo. Além disso, nunca estudei essa língua estranha, então não teria como eu saber falar algo assim e nem Salamandra saberia também!
........., a Relíquia de Arthur permaneceu em silêncio.
Termino de beber a poção, quase botando tudo para fora. Senti que aquela conversa não levaria a lugar nenhum e então desisti. Por mais que eu tentasse, seria inútil tentar entender a bizarra cadeia de eventos que nos levaram a chegar aqui. Me foquei em continuar seguindo o roteiro, ou melhor... continuar jogando.
Faria isso, pelo menos por hora.
Eu me sentia revigorado como nunca! Olhei novamente meus status para checar minhas condições:
FORÇA: 30(0) CONSTITUIÇÃO: 20(0)
DESTREZA: 5(0) SABEDORIA: 5(0)
ESPÍRITO: 5(0) HP: 500 / 500
Lv.1 MP: 100 / 100
SEM STATUS ADICIONAIS
EFEITOS NEGATIVOS: NÃO TEM
Não estava a tragédia de antes, mas também não havia aumentado muito. Agora eu realmente tinha consciência da força que eu possuía. Aproveitei e dei uma pequena fuçada no status de Arthur também:
FORÇA: 110(+20) CONSTITUIÇÃO: 25(-20)
DESTREZA: 30(-15) SABEDORIA: 25(0)
ESPÍRITO: 200(+50) HP: 1925 / 1925
Lv.1 MP: 1350 / 1350
STATUS ADICIONAIS: SALAMANDER IGNITE + 20% ||FORÇA|| - 20% ||CONSTITUIÇÃO||, ||DESTREZA||.
EFEITOS NEGATIVOS: NÃO TEM
Arthur tinha alguns bons status para esbanjar. Não havia nem como comparar também, né?
Se eu estivesse esse mesmo Lv.1 e ainda em posse da minha Relíquia Hospedeira, estaria tão forte quanto ele.
Assim que ele percebeu que eu já estava recuperado, nós fomos de novo até a Atendente da Guilda para requisitar alguns itens para mim. Ainda estava desequipado. Estava desequipado desde que caí naquele mundo, a não ser que uma bermuda jeans e uma camisa regata surrados fossem considerados armadura.
— Então aventureiro, nós temos um sistema de empréstimo de armas para quem não tem uma ou perdeu a sua em uma missão e não pode pagar por uma nova por hora.
Me surpreendo. Aquela guilda tinha algumas mecânicas e sistemas que eu nunca havia ouvido falar — e nem me lembro de ter implementado.
Geralmente não se empresta armas em mundos de fantasia medieval ou derivados, mas aquele lugar era diferenciado. Melhor para mim!
— E tem alguma taxa?
Ela nos encarou com uma expressão azeda, como se já esperasse por aquela pergunta.
— Claro. Nada é de graça, não é? — Dava para sentir que ela estava forçando um sorriso e uma gentileza desagradável. Para uma NPC, até que ela era bem carismática.
Ele podia ter dormido sem essa.
— E quanto seria? — perguntei.
— Nas primeiras duas semanas nós cobramos um valor tabelado de 200 peças de prata. Claro que essa taxa tem adicionais para caso perca ou danifique a arma que alugou.
Arthur fez uma careta.
— Acredito que não seja um valor caro para vocês, concorda? — Ela enfatizou bem a parte do “caro” como se estivesse tirando uma com a nossa cara.
— 200 peças de prata... 200 peças de prata... 200...
Ele me fitou como se quisesse me estrangular de repente. Pegou seu saquinho de moedas e catou o que seria suas últimas economias. Naquele instante eu havia dado uma facada de 200 peças de prata, que aparentemente não era muito, mas ele devia estar planejando fazer algo com aquele dinheiro.
Ele acabou de gastar dinheiro com um estranho. Sei bem como é essa sensação...
— Pegue o melhor machado! Não quero ter que gastar com reparos também.
— Pronto! Só escolher sua arma, aventureiro e assinar esse termo de responsabilidade. — Disse a atendente em meio ao tilintar de moedas.
Ela me mostrou uma estante repleta de armas lindas e cada uma com o status melhor que a outra. Confesso que não foi fácil escolher; a ideia inicial era um machado, mas fiquei tentado a utilizar outras armas. Não sei se precisaria de algum atributo específico para usá-las. Quem sabe uma maestria? Um treinamento?
Um treinamento faria mais sentido, já que eu nunca tive muita pinta de guerreiro.
Também nunca tinha empunhado um machado de batalha na minha vida e o fiz sem sequer suar. Claro, ele era a minha Relíquia Hospedeira. Em memória de Gallatin, eu escolhi um machado novamente. A ficha técnica do item subiu e se posicionou um pouco acima da lâmina:
NOME: WINGSLASH
CATEGORIA: MACHADO DE BATALHA.
TIPO: CORTANTE
PORTE: MÉDIO
ATRIBUTOS: +30 DE FORÇA
-10 DE DESTREZA
Não era grande coisa, mas me serviria. Eu não poderia cobrar muito...
Afinal, era um machado de nível básico, digno de um iniciante como eu.
Além disso, tinha a propriedade [VERSÁTIL], o qual eu poderia empunhá-lo com uma ou duas mãos. O ganho de força razoável para meu nível também cairia bem.
Arthur comprou também algumas poções e ervas da atendente. Eles tinham sua própria lojinha dentro da guilda, onde os aventureiros podiam se equipar antes de saírem em suas quests. Eram um pouco mais caras que as do mercado da cidade, mas tínhamos certeza de que não sofreríamos com as oscilações de preço dos comerciantes.
Confesso que achei algo bem maneiro e mesmo eu não teria pensado nesses detalhes.
No caminho para a [GUILDA DA CAPITAL], eu tinha pedido para que Arthur e o anão rabugento guardassem segredo sobre o fato de eu ter saído no braço com Thayslânia. Só assim, ninguém saberia que eu era o louco que tentou ter o seu fim nas mãos da heroína de guerra do reino.
Iria causar muito tumulto se todos soubessem que tem um cara desses andando tranquilamente por aí.
Ainda assim, eu tinha medo que alguém me descobrisse.
E já era hora. Em posse do machado e com o visual trocado — ou pelo menos, maior parte dele —, nós saímos da guilda e rumamos para os portões da cidade. Posso dizer que estava um pouco nervoso.
Até porque, querendo ou não, era a minha primeira missão naquele jogo.
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ENQUANTO ISSO, NAS MASMORRAS DE ||ABISMAVAK||...
TRAC! CLENC! CLANC!
Sons de passos ecoando pelo corredor.
Um guarda veio balançando sua chave, passando de cela em cela para a revisão diária. Vinha assobiando, despreocupado. Alguns cadáveres, lunáticos, assassinos e pessoas sem esperança...
Mais um dia na rotina maçante de um guarda que patrulhava as masmorras terríveis de ||ABISMAVAK||, situados debaixo da cidade em um grande e inacabável sistema de tuneis e compartimentos subterrâneos.
Porém, o guarda ouve um assobio como se chamasse por ele. Vinha de uma cela do lado direito do corredor.
— .....?
Era Marlo, o beberrão que havia dividido a cela com Juniorai.
— Acho que o dia está lindo hoje, não acha?
O guarda segurou um riso.
— Bah! Como você saberia? Não dá pra ver o céu daqui de baixo, seu maluco! — Cuspiu.
Marlo solta uma risada boba.
— Acho que sim, mas..., seria uma pena se... não pudéssemos apreciar o que está para vir, não é mesmo?
— Como ass...
O guarda fitou fixamente para os olhos de Marlo, sorrindo com uma expressão fria e rasteira. Segundos depois, o guarda não fazia nada além de olhar para o homem com os olhos esbugalhados, a face congelada e boca aberta. Estava completamente hipnotizado.
Então com o molho de chaves que vinha girando na mão, ele seleciona a chave da cela de Marlo e a destranca, permitindo que ele saia.
— Que bom que é compreensível — Ele saiu todo sorrisos, andando cinicamente pelo corredor enquanto desaparecia. — Agora se me dá licença...
... tem um certo ‘Herói’ em quem estou interessada...
O guarda então acordou, balançando a cabeça. Ele olhou para a cela aberta e vazia, como se não entendesse o que aconteceu.
Estranho... essa cela tinha alguém mais cedo? pensou consigo, a mão coçando o queixo.
Ele deu de ombros, fechou a porta da cela e voltou à sua inspeção.
Acho que foi só impressão minha...