Cheaters Brasileira

Autor(a): Kuma


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 2: O mundo que eu criei

 

Era hora de avaliar minha situação naquele combate desnecessário.

Eu era um [APRENDIZ] de nível 1 contra uma dupla de um [ARRUACEIRO] Lv.24 com um [MERCENÁRIO] Lv.38. Graças à minha Relíquia Hospedeira, Salamandra, nossos status não estavam tão discrepantes. Também não aparentavam possuir uma Relíquia Hospedeira.

Nesse mundo de magia, minha mãe vivia me dizendo que todas as pessoas possuíam seus próprios poderes mágicos, mas que apenas alguns poucos “escolhidos” possuíam uma Relíquia Hospedeira, um artefato de grande poder que eram conferidos a cada um ao seu nascimento, dadas pelas divindades.

Bom, eu nunca acreditei muito nessa história. Bom... até o dia em que recebi a minha.

 

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17 anos antes... na longínqua cidade de ||ARCÁDIA||.

“As linhas já foram tecidas”

 

Eu acordei novamente depois de sonhar com essa voz estranha. Já vinha algum tempo que eu sempre tinha o mesmo sonho.

— Droga! Droga...!

— O que foi, Arthur?

—Arf! Arf! —Estava sem voz.

Minha mãe sempre me perguntava do porquê eu acordava sempre tão assustado, mas eu não sabia responder. Eu tentava explicar que era um sonho estranho que eu tinha todas as noites.

Apesar de tentar de tudo, desde técnicas de meditação até terapias, eu nunca consegui me livrar desses pesadelos que me perseguiam noite após noite.

Até que um dia, aconteceu. Algo que estava premeditado nos meus sonhos.

A notícia chegou até o monastério onde eu morava. A sede dos Doutrinadores de Arcádia. A cidade de ||ARCÁDIA|| estava sob ataque!

 — ESTAMOS SENDO ATACADOS! — grita um dos aldeões. Ele estava mortalmente ferido por espada.

Minha mãe agiu rápido e o colocou para dentro.

— Rápido! Leve-o para a ||ALA CURATIVA BLOCO - B||! — gritou ela.

—Merda! O que está acontecendo na cidade?!

Minha mãe era uma das responsáveis pela sagrada [ORDEM DOUTRINADORA], uma ordem diferenciada de monges que purificavam almas dos monstros que residiam na região nordeste do continente, ao invés de mata-los.

A liderança da ordem era passada de pai para filho, de geração em geração, e agora minha mãe era responsável por cuidar e zelar pelo grande monastério e a ||ILHA DO DESCONHECIDO||, o qual os [DOUTRINADORES] usavam para rituais e treinamentos.

Não levou muito tempo para que o inimigo chegasse até o monastério. O primeiro ataque foi massivo e muitos dos nossos companheiros morreram. Nós tivemos que fugir para a ilha e foi lá que finalmente aconteceu. Em mais um ataque devastador, meu braço esquerdo foi decepado violentamente.

Então em um ato de coragem e loucura, ela fez o ritual para aprisionar Salamandra no meu corpo e salvar a minha vida. Depois disso, ela me mandou para longe em um feitiço de telestransporte.  

Desculpe, meu filho... espero que no futuro, você possa aprender a controlar e usar esse poder. Mamãe te ama!

O portão da sala foi destruído em uma grande explosão. Ela ainda estava conjurando o feitiço de teletransporte quando algo afiado a acerta pelas costas e a derruba.

— Fuja...

Foram as últimas palavras dela.

 

 

 

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Tempo presente...

 

Ela tinha que escolhê-lo ou você tinha que encontrá-la e obtê-la por seu próprio mérito.

PORCARIA NENHUMA!!

Aquela coisa só me trouxe desgraça! Nem todas as Relíquias Hospedeiras eram boas ou integras. Isso é apenas uma consequência de todo o histórico do mundo.

Era quase impossível que [ARRUACEIROS]ou [MERCENÁRIOS] tivessem uma. Para eles, tudo que importava era o lucro e as riquezas e não davam qualquer atenção para a qualquer tipo de espiritualidade! Nesse quesito, eu tinha uma vantagem.

O combate então começa.

Eu me esquivo dos primeiros ataques com certa facilidade. Seu estilo de luta desleixado e desprovido de técnica contribuiu.

— Desgraçado! Está brincando comigo?

— Podia pelo menos se esforçar um pouco para acertar, não é?

— O que disse?!

O tal do chefe dele olhava o combate com um semblante furioso e impaciente.

— Não deixe ele te provocar, idiota! Se concentre em acertá-lo!

—Pode deixar, chefe! Esse miserável agora vai se arrepender do momento em que passou por esse beco!

Uma aura roxa cobriu as mãos e a adaga dele. O Arruaceiro faz alguns gestos meio engraçados e se preparava para usar alguma habilidade.

—Lá vai! |Chutar Areia|!!

VUUSH!

Ele solta um chutão no chão arenoso do beco e lança um torresmo de areia na minha cara, aplicando um efeito negativo.

—Droga!

Ele tem uma maldita habilidade de chutar areia! Porque eu ainda ficava surpreso com um ataque daqueles, digno de um ladrão?

A nuvem me cegou por um pequeno período e eu não consegui perceber sua movimentação até ele me alcançar. Antes que me acertasse, uma pequena coluna de fogo surgiu e bloqueou o ataque, derretendo a lâmina da adaga.

Ele recuou, me dando tempo para limpar o rosto.

—Droga! Que merda foi essa?!

—Imbecil! Ele pode ser nível 1, mas sua habilidade é Manipulação Elemental. Não se descuide perto dele ou vai acabar virando lenha!

—Seu seboso maldito! Você chutou areia na minha cara! — Eu ainda estava cuspindo areia até agora.

Ele se afasta subitamente do pilar. Uma coisa que aqueles danados tinham era reflexos aguçados — apesar de que o capacho do [MERCENARIO] ainda estava bem mais lesado do que o esperado.

—Filho da...! Você me pegou de surpresa, mas agora eu já conheço o seu truque!

Ele sacou outra adaga de seu inventário. Claro, ele era um [ARRUACEIRO]. Todos eles têm, no mínimo, umas 4 a 6 adagas diferentes — muitas adquiridas em masmorras e outras roubadas. Por que ele não equiparia uma adaga?

Talvez um alfanje? Um punhal serrilhado? Um soco inglês?

Observando os atributos da adaga, não era grande coisa; ela proporcionava a ele mais 5% de -DEX- em seus ataques perfurantes e 15% de esquiva. Um item de raridade comum. Não era um adendo tão grande e, no mínimo, assustaria um aventureiro iniciante como eu.

—Você roubou essa adaga de algum goblin ou algo do tipo?

—Vai se arrepender amargamente dessas palavras, seu palhaço!

—Acho que você não sabe nem o significado da palavra “amargamente”. — Continuei a insultá-lo.

A provocação era divertida e proposital. Foi algo que eu havia aprendido nos tempos que estudava no monastério da minha cidade natal. “Use a fraqueza do seu inimigo como a sua maior arma”, já dizia minha sábia mãe.

Algo bem subjetivo, mas era bem mais fácil de se aplicar na prática. E bem mais divertido!

Quase todos dessa classe tem seu ego inflado — para não dizer 99,99%. E mexer na ferida dos outros era algo que eu havia aprendido a fazer e muito bem por sinal.

— O que foi? O que está esperando para atacar? Tem medo de eu derreter todas as suas faquinhas e você ficar sem nenhuma para roubar?

Os dentes dele rangeram.

—Você está morto, seu pedaço de merda!

Enquanto isso, no interior da minha mente, eu escutava a voz de Salamandra a rir com uma satisfação assustadora.

—Muahahahahahaha!

Aquela voz de novo; aquela maldita voz da minha Relíquia Hospedeira começava a rir e quando isso acontecia nunca era algo bom! Já era um sinal de que eu não poderia me empolgar demais na luta.

—Ele está vindo!

—O destino dele já foi selado!

—Espero que você não esteja pensando em fazer nenhuma gracinha...

É em momentos como esse que as coisas parecem fugir do seu controle. Por um breve momento, eu deixei de ter controle do meu braço esquerdo. Ele se levantou sozinho e eu podia sentir o calor da energia de Salamandra concentrando-se na palma da minha mão.

Seguindo apenas seus instintos mais sórdidos, ele arremessa sua adaga que ricocheteou pelas paredes do lugar e se cravou no chão atrás de mim. Talvez ele estivesse usando os dois neurônios que lhe sobraram para pensar em alguma arapuca para me pegar.

Por mais que eu estivesse suando em uma luta interna para controlar Salamandra, eu ainda estava no controle da situação. Acho que o grandão mercenário não iria interferir naquela briga inútil para ele, como bem falou antes. Acho que um mero [APRENDIZ] iniciante não valia o custo de reparo de suas armas.

PLIC! VUP! PLIC!

.....

Mais duas adagas?! O que ele está pensando? Mesmo agora, eu estava mais cauteloso ainda.

Mais duas adagas foram arremessadas e ricocheteiam em direções opostas ao que foram lançadas. Talvez...

“Um selo?!”, teorizei, apreensivo. Talvez fosse cedo demais para afirmar algo assim.

— Agora sua marra acaba agora, seu merda! Arte Secreta: |SELO DE TRÊS PONTAS|!

VUUUUSSHH

A corrente de energia correu por entre as adagas e criaram um campo que me prendeu completamente. Mas a energia latente de Salamandra continuava a crescer cada vez mais.

Mesmo me esforçando, estava quase impossível de evitar que ela disparasse aquele ataque mortal.

“Por que está me impedindo, humano?! Você vai morrer se não me deixar cuidar deles!”

—Droga! Não se meta nos meus assuntos!

“Você é um fraco que não consegue se defender sozinho!”

—Não vou deixar você agir como quiser!

“Fique quieto no seu canto!”

—Pare já com isso, caramba!

“MORRAAAA!”

Um estalo...

Foi questão de milissegundos do momento em que escutei o estalo de dedos do Salamandra e pisquei para encontrar a investida final do oponente.

O calor subitamente aumentou ao nosso redor e um pilar de chamas foi invocado de um círculo mágico debaixo de nós.

O que?!

—NÃAAOOOO!

No último momento, eu consegui desviar o curso do ataque por alguns poucos metros, ao mesmo tempo que movi o corpo para que Noisy Ruiz não acertasse nenhum ponto vital meu.

Sua adaga me perfurou e o pilar de chamas subiu violentamente e o acertou também.

Os ataques colidem. Ao ser atingido, o ladrão tem sua magia de selo dissipada quando é atingido e jogado para trás brutalmente.

 


HP — 190 / 700 -450


 

“Droga!”

O ataque me causou um dano crítico severo; além de ter arrancado quase todo o meu HP, ainda estava sangrando.

O sangramento me tirava 10 de vida a cada 5 minutos.

“Como as coisas foram acabar desse jeito?! Merda!”, praguejei em silêncio.

 Senti uma dor horrível que me fez ficar de joelhos.

O sangue escorre e a vista escurece por um momento.

No entanto, a ação precipitada de Salamandra também causou grandes danos em Noisy Ruiz, que rolou em chamas até seu mestre.

Seu HP também foi muito prejudicado nessa troca. Grande parte do seu corpo estava queimado e ele estava agonizando no chão.

Não sei se ele morreria com as queimaduras, mas já era um fora de combate.

Droga... eu... quase morri com esse ataque”, cuspi um jato de sangue, tendo dificuldades para respirar.

“Essa adaga... estava envenenada?”

CLAP! CLAP! CLAP!

—Bravo! Oh, Bravo! — gritou o outro lá de trás, batendo palmas.

—Meus parabéns! Meu comparsa não era lá essas coisas, mas eu tenho que te dar os créditos!

Eu cuspi.

—Me poupe do seu falatório! Se não quiser virar carvão como ele...

Ele solta uma gargalhada cheia. Incrível que mesmo estando na merda, eu ainda conseguia ficar bancando o “herói”.

E o “herói” iria morrer em um beco de ||AMINAROSSA|| sozinho e sem ninguém que o veja bancando o “herói”.

Tudo por causa de um braço maníaco.

—Você realmente sabe me fazer rir! Eu sei que eu não deveria me dar ao trabalho de matar um mero iniciante como você, mas agora eu sinto que não consigo me segurar!

Eu fiz um esforço e consigo me levantar, estacando o sangramento com o fogo de Salamandra. Faz muito tempo que eu não sentia uma dor daquelas.

—Você se decidiu mesmo, então?

—Meu sangue está fervendo, garoto! — Ele estava determinado a me matar agora.

Ele desequipa sua adaga e puxa uma cimitarra de seu inventário. A lâmina polida refletia a minha imagem em seu fio. Ele realmente não iria pegar leve comigo.

Diferente das armas do seu assecla, a cimitarra que portava era um item de raridade [RARO], com alguns atributos bem generosos.

Ela lhe dava FORÇA + 5, DESTREZA + 10 e incríveis ESQUIVA + 50%. Eu conhecia porque eu já vi uma arma como aquela antes e era muito popular na minha cidade.

Eu só aceitei que eu não conseguiria sequer tocá-lo em um mano a mano.

Fora que sua personalidade calma e controlada não me permitiria usar a mesma tática que usei contra o [ARRUACEIRO] tostado.

O combate seria bem difícil, mas não impossível. Com um pouco de esforço e, principalmente sorte, eu o venceria. Pelo menos iria aguentar até algum [GUARDA REAL] perceber a confusão e vir me ajudar.

—Então me diga... o que trouxe você até essa cidade apenas para ser morto em um lugar como esse?

—Nada que você precise saber!

—Vejo que ainda é um [APRENDIZ]. Não gostaria de trilhar o caminho dos [GATUNOS]? Seria um grande desperdício alguém com uma energia tão forte como você ser morto assim.

—Obrigado, mas eu não lido bem com gente da laia de vocês!

A resposta saiu automática e afiada. Eu nunca poderia trair os ideais que minha mãe lutou tanto para proteger!

—HAHAHAHA! É uma pena! Mas agora me responda outra coisa: você tem muitos atributos disponíveis?

—Como é que é?

Atributos disponíveis? O que ele queria dizer com isso? Não é como se ele pudesse roubar coisas como atributos, não é?

Não se descuide perto dele, idiota! Vou te matar se você me fizer salvar o seu rabo mais uma vez!”, rugiu Salamandra na minha cabeça.

A mão do mercenário brilhou em uma luz roxa, assim como fez o seu capanga na outra vez.

Será que ele chutaria outro bolo de areia na minha cara? Talvez arremessasse umas pedras?

—|REMOÇÃO PARCIAL|!

A luz se apaga e então ele inicia seu ataque. Ao tentar reagir, percebo que meus movimentos estavam mais lentos e não consigo me esquivar ou bloquear o golpe a tempo.

—AAAAAHHHHH!!

—O que foi, garoto do fogo? Não disse que iria me transformar em carvão?

Droga!

Fui acertado em cheio! O corte provocado pela cimitarra dele me deixou ainda mais lento.

Estava quase impossível de se mexer. Sentia-me como se vestisse uma armadura feita de chumbo. Meus braços e pernas estavam incrivelmente pesados e minha visão começava a distorcer.

Enquanto isso...

 


HP — 85 / 700 -55


 

Isso só significaria uma coisa:

—Veneno?!

—Como você é perspicaz, garoto! Acertou, miserável! Eu usei minha habilidade mágica |REMOÇÃO PARCIAL|, que me permite reduzir parcialmente todos os seus atributos. Com isso, ficou bem mais fácil te acertar com a minha cimitarra envenenada!

“Maldição! Como pude ser tão descuidado?!”, eu mal tinha atributos para enfrenta-lo e agora, com os meus poucos atributos reduzidos pela metade e sob o efeito do veneno, minhas chances de vencer eram praticamente nulas.

Ele se prepara para me finalizar, quando uma grande espada de duas mãos desce dos céus caindo entre nós dois.

O chão explodiu e a poeira se espalhou por toda a passagem.

Junto com a lâmina negra, uma energia assustadora se espalhou.

Não conseguia ver direito o que havia acontecido, mas eu já começava a imaginar se não seria outro inimigo.

—Nossa, garoto. Você realmente é alguém muito ousado para se meter em uma situação dessas em seu primeiro dia na capital!

“Essa voz... eu já ouvi essa voz antes!”, pensei, ouvindo aquelas palavras lentas e pausadas, a voz grave e viril de um aventureiro calejado por uma vida inteira de aventuras e perigos.

A poeira baixou e seu manto negro esvoaçou com o vento revolto passando pela estreita passagem.

Ele retirou sua grande espada do chão e a girou em volta do seu corpo, demonstrando grande maestria. Somente a pressão no ar causado pelo manuseio da espada era o suficiente para afastar o mercenário.

—Você é... você é o cara que estava bebendo na taverna!

—Pode me chamar de Michaelis, garoto. — Se apresentou, virando para o inimigo.

Os dois trocam olhares afiados. Dava para sentir a energia dos dois se chocando, como dois predadores prestes a batalharem.

As ataduras que cobriam meu braço esquerdo caíram com a confusão e os ataques, revelando um braço carmesim e escamoso com uma garra afiada no lugar da mão.

Em cima do punho, uma esfera amarela brilhante e ardente que lembrava o olho de um dragão.

“Merda! Meu braço está exposto!”

Uma aura vermelha e causticante tomou completamente meu corpo. Era a reação natural de quando aquilo acontecia e eu procurei o que fosse para cobrir Salamandra.

Ninguém podia bater o olho naquela coisa!

“Esse cara... não é qualquer aventureiro de meia tigela. Esse cara... é barra pesada! Acho que não vou ganhar nada se ficar e lutar com ele. Melhor eu vazar daqui!”

—Hunf! Nossa brincadeira está muito boa, mas as coisas já estão ficando muito animadas aqui e eu vou me mandar! — diz o ladrão se virando para ir embora.

—Vai fugir com o rabinho entre as pernas? E ainda por cima vai abandonar o seu comparsa? Sabe que ele ainda está vivo, não sabe?

O [MERCENÁRIO] olhou friamente para seu parceiro caído no chão como se olhasse para um monte de lixo.

Aquilo me deixou muito puto, quase que eu poderia sentir a quentura da minha Relíquia Hospedeira.

—Esse inútil não me serve mais de nada. Podem mata-lo, se quiser! — Essa foi sua resposta antes de desaparecer em uma bomba de fumaça.

Uma saída digna de um verme covarde.

O [ARRUACEIRO] que eu havia derrotado continuou deitado no chão, com seu HP quase zerado e inconsciente.

—Ele se foi. Bem, não tem porque irmos atrás dele, não é garoto?

Minha visão apagou, meu corpo inteiro paralisa subitamente e eu caio com a pouca vida que eu tinha, descendo perigosamente.

Eu mal tinha forças para sequer me manter acordado. O veneno da cimitarra de Black Cat ainda estava fazendo efeito no meu corpo. Acho que agora eu iria morrer de qualquer jeito.

“Droga! Desculpa... mamãe...”

 

 

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Enquanto isso, nos portões da cidade de ||AMINAROSSA||.

PLAYER: [Juniorai]

 

—Chegamos, meus companheiros! Bem-vindos à capital sagrada, ||AMINAROSSA||!

Eu nunca tinha visto algo parecido no mundo real! As grandes muralhas de presídios e penitenciarias pareciam muros de casinha de vizinhança comparados àquelas muralhas!

Meu pescoço com certeza iria se quebrar se eu tentasse mirar o topo delas.

—Nossa! Olha o tamanho dessas muralhas! São colossais!

Maria riu da minha reação, mas estranhou ao mesmo tempo. Fazia sentido já que eu não contei — e nem sei se contaria — a ela que eu vim de uma outra realidade.

—Você nunca esteve em ||AMINAROSSA|| antes?

—Não. É minha primeira vez.

—Então quero ver sua cara quando passarmos dos portões!

—Ainda tem mais?!

—Não é possível que você nunca tenha visitado a capital antes. De onde você é?

O Halfling, de nome Isenpo Hoper, então me analisa dos pés à cabeça, o olhar desconfiado e a mão no queixinho.

—Olha as roupas dele! Eu nunca tinha visto alguém se vestir assim na minha vida!

E o que eu diria para ele?

Eu vim de um outro mundo chamado “Mundo Real”, estou usando roupas comuns do “Mundo Real”, caí nesse mundo por que fui sugado pelo meu computador e me perdi no meio da floresta com um cabo de madeira que fala comigo.

 No mínimo me chutariam para fora da carroça.

As minhas lembranças antes de acordar na campina estavam meio zoadas, mas eu estava consciente que estava dentro de um jogo.

Era uma piada de mau gosto para eles, no máximo. Não posso culpa-los se reagissem mal. Por isso também decidi que manteria esse segredo comigo.

Ainda preferia pensar que estava em um sonho muito louco e mal via a hora de acordar com os gritos da minha irmã.

—Eu... não me lembro...— interpelei.

—Você é um sujeitinho estranho hein, rapaz? É gente boa, mas continua sendo estranho. — O anão comenta tentando não parecer muito rude.

—Obrigado... eu acho.

—Tomara que não seja um Andralino. Você terá sérios problemas aqui, se for o caso. — comenta o humano que atendia pela alcunha de Fran, o Fazendeiro — sério, porra?! Era um título que acompanhava o nome!

—Não... está mais para um Roriso. A pele dele é bem escura. — diz o anão chamado de Halfbor.

—Andra-o quê?

—Acho que ele vem da floresta. Sei lá... ele tem aparência humana. — sugere Maria.

—Não é possível que um humano viva sozinho na floresta! Existem povos bárbaros que habitam essas florestas próximas. Isso sem contar os monstros!

—Verdade. É impossível que ele tenha vindo da floresta. Nenhum cidadão normal sobreviveria lá tanto tempo! E ele não me parece ser de alguma tribo. — concorda o Halfling.

—Eu aposto 200 ouros que ele veio de ||RORISA||! — Fran grita e sacode um saquinho de moedas na mão.

—Então eu aposto 250 como ele veio de ||ANDRAS||! — Halfbor se animou.

—O que? Vocês estão apostando?!— perguntei, sem entender a animação repentina.

—Acho que ele deve ter levado alguma pancada forte na cabeça e não se lembra de sua terra natal. Tadinho... — disse Maria.

Mesmo em meio àquela aposta súbita, ela ainda se preocupava comigo.

Contudo, desde que bati o olho nela, eu estava com uma sensação estranha, mas evitava de ficar encarando-a como um maníaco.

—Acho que ele é alguma espécie de fugitivo. Não confio nele. — declara Hoper abertamente.

Ele foi o único que não foi com a minha cara desde que acordou. Era um Halfling comerciante e estava sempre sério.

—Ele me parece mais um refugiado do que um fugitivo. Um com umas roupas bem estranhas. — Fran me defende.

E eu nem sei se poderia chamar aquilo de “defesa”.

—Concordo. — diz Maria.

—ATÉ VOCÊ, MARIA?!

Enquanto o resto do grupo teorizava sobre a minha possível origem, eu preferi me entreter com a grandeza dos muros que cercavam ||AMINAROSSA||.

Mas não demorou para a voz de “mestre dos magos” de Gallatin começar a me encher o saco de novo.

“Esse é o lugar onde sua jornada começa, Juniorai.”

—De novo com esses papos? Tutorial que é bom, nada né? Tá no very hard essa porra?

“Tudo será revelado com o tempo, meu jovem. Por hora, concentre-se em chegar na cidade. Eu lhe mostrarei o caminho assim que o fizer.”

—Tomara mesmo!

Ainda não me sentia confiante para desbravar um lugar tão majestoso como aquele, mesmo em posse de Gallatin. Eu imaginava como seria a cidade; um lugar como as cidades mágicas e fantásticas dos MMORPGs — até porque eu estava em um que eu mesmo fiz, não é?

Eu encontraria pessoas de todos os níveis e classes. Meu coração começava a disparar só de imaginar essa possibilidade.

Pensando nisso, se minha teoria de que eu estava no meu próprio jogo era de fato verdade, eu devia ter um inventário, correto? Desde que acordei e me encontrei com Gallatin, eu não parei para olhar isso.

Levei as mãos até as têmporas, mentalizando um possível inventário cheio de itens. "Inventário, inventário, me mostre seus itens, ó mágico inventário..."

Claramente uma tentativa tosca de acessar uma mecânica daquele mundo.

Abro os olhos e me deparo com uma tela com várias abas, todas vazias em uma configuração bem básica. Cada vez que eu me deparava com todos aqueles menus e mecânicas, eu ficava cada vez mais convencido de que fui parar dentro do jogo que eu e meus amigos fizemos.

Meu único item era Gallatin, em sua humilde forma de cabo de madeira. Sua classificação era [DESCONHECIDA] e o item estava na aba de materiais. Fora isso, não havia nada equipado.

Roupas, acessórios, armas, efeitos... eu estava completamente nu! Não no sentido literal, obviamente. Eu estava com minhas roupas normais que usava antes de cair naquela campina, simbolizando minha falta de equipamentos.

Uma guia mais acima mostrava os atributos do meu personagem mais detalhadamente:

 


FORÇA: 50( 0 )               CONSTITUIÇÃO: 30( 0 )

DESTREZA: 10( 0 )        SABEDORIA:  5( 0 )

ESPÍRITO: 5( 0 )            HP: 1.050/1.050

                                         MP: 475/475

                                         -SEM STATUS ADICIONAIS-

                                         EFEITOS NEGATIVOS: -NÃO TEM-


 

Típico status de um noob que acabou de começar o jogo. Mesmo depois de ver os atributos de Gallatin, ao ver os meus próprios atributos, o desânimo inevitavelmente bateu. Não que eu fosse diferente de qualquer outro aventureiro iniciante, mas poxa, né?

Eu podia ter pego pelo menos itens iniciais. Potions, pílulas de estamina... até mesmo uma couraça, nem que fosse de pano. Uma espada inicial também cairia bem.

Por falar em espada, também notei que eu tinha benefícios no atributo de [FORÇA], me dando a ideia de que meu avatar tinha mais afinidade com isso.

Eu deveria pegar alguma classe que usasse de força, como [CAVALEIRO], [BÁRBARO] ou algo assim? Seria bem intuitivo se fosse o caso.

Nós chegamos aos portões onde havia guardas usando armaduras pesadas e reluzentes com elmos que cobriam totalmente seus rostos. Eles param a carroça e fazem uma revista, se dirigindo ao guia.

—Você é o guia da carroça?

Só a voz grave e ameaçadora dele me fez gelar.

—Sou eu, sim. — Fran responde.

—Preencha o formulário para poder passar com a mercadoria. Os demais, desçam da carroça!

Nós obedecemos — e eu não era nem doido de não obedecer. Eles transportavam principalmente lenha, palha e vários potes com água e azeite. Deviam ser camponeses de alguma vila próxima à capital.

Quem diria que até mesmo naquele mundo fictício existiam tais burocracias?

—Está tudo certo! Podem seguir em frente.

Nós passamos dos portões gigantescos da entrada e nos deparamos com uma cidade de deixar qualquer um de queixo caído.

As construções eram enormes e tinha até alguns prédios que flutuavam, com escadas ornamentadas que desciam em espirais.

As praças eram bem ao estilo medieval, mas a tecnologia também estava presente. Haviam classes que usavam disso para atacar e defender, ou até mesmo para utilidades.

—Meu... Deus!

—O que achou? É uma cidade e tanto, não é? — Maria é a que mais estava se divertindo com minha reação.

Eu demorei um pouco para responder. Ainda estava babando com minha própria criação.

—Isso não é “uma” cidade. É “a” cidade!

—Nós vamos levar as mercadorias para o ||MERCADO||. Se quiser dar um passeio pela praça com seu amigo enquanto isso, Maria.

Ele falou isso em um tom desagradavelmente malicioso. Ela ficou toda vermelha, escondendo o rosto com as mãos.

—N-n-não é nada disso! Seus idiotas!

Essa deveria ser a hora que meu nariz deveria esguichar sangue ao ver o quanto ela ficou fofa com aquela reação?

Esse era o meu tão sonhado momento como protagonista de uma aventura Isekai! Que sonho!

—Só não façam nenhuma besteira ou se percam. E eu estou de olho em você, hein?! — Acabei de ser ameaçado por alguém da altura do meu joelho.

—Eu só vou mostrar a praça para ele!! Não digam bobagens! — disse Maria, balançando os braços.

—Praça? Aquela lá da frente? — Apontei para o grande espaço aberto no fim da rua.

—Aquela mesma! Vamos lá!

Ela me pegou pela mão e nós saímos correndo no meio da multidão que ia e vinha. A praça que Maria menciona ficava não muito longe da entrada da cidade e geralmente era o local de encontro de vários guildas e parties antes das missões.

O local era delimitado por uma área circular de pedras brancas e polidas, com um chafariz enorme ao meio.

No topo do chafariz destacava-se a estátua de uma possível deusa que eu desconhecia. Não lembro de ter programado deuses — e nem sei se isso era possível.

Fora os aventureiros, também havia vendedores oferecendo de tudo, desde itens mágicos, receitas, materiais até armaduras e armas mágicas fabulosas.

Uma espécie de mercado negro — esse não seria o termo apropriado — também se formava ali, com os próprios aventureiros vendendo o que haviam coletado em suas aventuras.

Era uma alternativa para quem quisesse faturar um dinheiro a mais.

—Que lugar incrível!! Nunca pensei que existisse um lugar assim!

—Essa é apenas uma fração da cidade. Ela é muito maior do que isso!

—É movimentado assim todos os dias?

—E todos os horários. — Ela confirmou.  —É um dos reinos com maior circulação comercial do continente. As mais famosas guildas de aventureiros também ficam aqui.

Agora eu dava crédito ao que Gallatin dizia sobre a minha —jornada— começar nessa cidade. Havia de tudo aqui e mais um pouco!

—Você é daqui, Maria?

—Infelizmente não. Eu vivo em uma cidade próxima da floresta onde eu te achei, mas estou sempre viajando para cá para vender mercadorias. Pode-se dizer que estou aqui quase sempre, então já estou acostumada com o cotidiano daqui.

—Entendo. E aqueles três são família sua?

—Não, não. São apenas companheiros de trabalho. Nós costumamos juntar todas as mercadorias e fazer uma caravana só. — explica ela.

Havia tantas coisas que eu gostaria de perguntar para ela que todo o tempo do mundo seria pouco. E talvez ela nem soubesse me responder nada no fim das contas.

Para ela, aquele era o mundo real e eu não podia quebrar esse paradigma.

—O que os seus companheiros quiseram dizer com aquilo mais cedo?

—O que?

—Uma conversa aí de que eu teria problemas aqui na cidade se eu fosse um Andro-sei-lá-o-quê.

—Ah, sim. Bem, é porque nos dias de hoje, o Reino de ||AMINAROSSA|| está em guerra com outro reino: ||ANDRAS||. Então todos foram instruídos a delatarem qualquer Andralino que quisesse se instalar aqui na capital se tivessem notícia de algum. Então, seria meio complicado para nós se você fosse um.

Ela explicou aquilo com uma risadinha boba para aliviar a tensão formada pelo assunto. Não funcionou tanto, mas a intenção foi boa.

—Entendi. Pode ficar tranquila quanto a isso.

E de novo ela me bombardeia com aquele sorriso que me fazia derreter como manteiga no sol quente. Sangramento nasal, pode vir!

—Bom, perdoe o modo rude como falamos de você. Realmente nunca vimos alguém tão...

—... estranho, você quis dizer?

Misterioso seria melhor. — Maria recolocou as palavras.

—Misterioso é meu nome do meio!

Que merda foi que eu disse?!

—HAHAHA! Acho que nunca vi ninguém como você em todos esses anos de viagem. Sei lá... acho que os deuses queriam que eu achasse você no meio da floresta.

—Talvez...

“Espera... ela me achou no meio da floresta e me trouxe até a capital onde eu vou começar a minha jornada. Será que ela poderia ser...?!”

.....

—Juniorai? Está... chorando?

Uma lágrima escorreu pelo meu rosto. Naquele momento mágico, eu tive plena certeza. 100% de certeza. Absoluta certeza de que eu estava dentro do meu próprio jogo!

E aquela que estava ao meu lado era a personagem que eu mesma tinha criado para guiar os iniciantes para a primeira cidade para iniciarem as primeiras missões! Tudo estava acontecendo como era pra acontecer!

Eu estava vivendo a história no mundo que eu mesmo criei! Era como um sonho se tornando realidade e não pude segurar minhas lágrimas de emoção. Agora fazia sentido o meu desconforto de mais cedo com relação a ela. Por que ela era tão linda e tão simpática.

E agora ela estava do meu lado, me mostrando a cidade principal para mim como estava predestinado a acontecer. E eu estava seguindo o script que eu mesmo desenvolvi. E tudo era magnificamente real! Inclusive a visão desconfortável do rosto de preocupação de Maria olhando para mim, de novo toda vermelha.

—Eu... falei alguma coisa de errada?

Droga. Meu corpo reagiu sozinho e não pude evitar de abraça-la! Queria muita abraça-la e senti-la!

—É VOCÊ MESMA, MARIA!! QUE FELICIDADE!! — e eu me permiti gritar e chorar como uma criancinha.

Ela endureceu e ficou paralisada enquanto eu a abraçava, praticamente sem entender toda aquela situação repentina. Seu rosto fica vermelho e quente como uma pimenta.

—Aaah... nós... nós... já nos... encontramos antes?! — Sua voz travava a cada sílaba.

“Não acabe com esse momento! Siga o roteiro, Junior! SIGA O ROTEIRO!”

Soltei ela rapidamente, me recompondo.

—Ah, desculpa! Desculpa! É que você me lembra... aaah...—, Maldição! Eu não pensei em uma desculpa rápido o suficiente! —MINHA IRMÃ!

Ela me olhou confusa. Me amaldiçoei por comparar minha linda e perfeita criação com um cão do segundo livro como minha irmã.

Definitivamente, eu sou o pior!

—Ah, sim. Claro... não sabia que você e sua irmã eram tão... diferentes assim. — respondeu ela sem jeito.

Na verdade, com a típica expressão de “você é um retardado ou o quê?”.

—É QUE ELA É ADOTADA! HAHAHAHA! — Isso para mim devia ser uma verdade até na vida real.

Ela riu comigo, porém ela devia era estar com medo e planejava sair correndo ou me bater a qualquer momento.  

Antes disso, todas pessoas que estavam na praça se amontoaram correndo para a entrada da cidade repentinamente, abrindo passagem para algo que vinha pelo portão principal.

Um outro cidadão chamado Junior foi atropelado no processo.  

Os largos portões se abrem então. Tambores rufaram. Trombetas soaram. O até então calado Gallatin começou a vibrar em um timbre perturbador.

Então seguimos a multidão para ver o que era. Todo pobre é curioso, sabe como é, né?

—O que está acontecendo?! Por que está todo mundo reunido aqui?

—Você não sabe? Em que planeta você vive?

—Hmm... é bem difícil de explicar isso.

—Venha!

Ela me arrasta pelo braço de novo. Nos embrenhamos pela multidão, levando empurrões, cotoveladas, pisadas no pé...

Já havia me machucado mais tentando andar no meio das pessoas do que em qualquer luta que eu pudesse ter travado com algum monstro na floresta.

Quando encontramos um espaço com uma visão boa, eu pude ver uma cavalaria pesada adentrando pomposamente pelo portão. Maria não falou nada de desfiles pelo meio da praça.

—Cavaleiros?

—São os [CAVALEIROS REAIS] de Aminarossa! Eles chegaram da expedição! AAAAAHHHH!

A jovem parecia empolgada e eufórica, bem como todos ali. Eu era o único que não estava se esgoelando, assobiando e batendo palmas para eles.

Talvez fosse um evento que inseri no começo do jogo e eu não me lembrava.

Era quase um desfile de corcéis de batalha armadurados, todos passando pela calçada de pedra principal que levava para o centro da majestosa cidade grande. Eles teriam um longo caminho andando enquanto todos os aplaudiam.

Porém, uma figura em especial me chamou atenção.

Meu coração quase parou quando eu a vi: montada em um enorme cavalo branco de batalha, hasteando a grande bandeira com o brasão do reino e bem ao centro da tropa.  

—NEM FERRANDO!

....?!

Gallatin reagiu juntamente comigo e começa a falar:

“Sem dúvidas, ela é a presença que senti mais cedo. Você a conhece?”

—Ela... é minha amiga!



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