Volume 1 – Arco 1
Capítulo 1: Aminarossa chama pelos destinados!
A mudança de ideia veio quase que instantaneamente. Minha vontade era de sair correndo daquele lugar apavorante em que aquele cabo de madeira estupido havia me enfiado para chegar em uma cidade que eu nunca havia ouvido falar. Por que eu estava passando por tudo aquilo? O que havia acontecido para eu ter chegado até aqui?
E aquele pedaço de pau desgraçado não falou uma palavra sequer! Eu já começava a pensar que minha própria loucura havia feito eu falar com objetos inanimados.
— Vai ficar em silêncio mesmo?
Ele não respondeu nada e aquilo me deixou puto da vida.
— Qual é a sua?! Você me trouxe até aqui só para me ignorar, seu cabo de madeira desgraçado?!
Alguns barulhos de folhas se movendo e galhos se partindo chegaram aos meus ouvidos desavisados. Parei de dar atenção à Gallatin e olhei a minha volta. Estava apreensivo e nervoso.
Me sentia observado a todo momento andando por aquela trilha. Para o meu desespero, as marcas de queimado estavam cada vez menos visíveis e a própria penumbra que as arvores largas faziam no ambiente não ajudava em nada.
Eu estava em claro estado de pânico, agarrando a haste de madeira com toda a força que eu conseguia.
De repente várias folhas se mexem ao mesmo tempo e aquele som repentinamente assustador — eu não me lembro de ter feito um jogo de terror — foi o gatilho para eu sair em uma corrida frenética pelo meio do mato escuro. Já estava pouco me lixando para a trilha ou para a cidade. Corri o máximo que minhas pernas conseguiam sem olhar para trás ou para onde estava indo.
Já podem imaginar o resultado disso, não é?
Eu tive o infortúnio de bater com a cabeça em um galho mais baixo de arvore e caí duro para trás, com a visão girando até apagar. A única coisa que eu visualizava era uma luz fraca vindo do meio das copas das arvores. Acho que morri de verdade agora e poderia acordar em outro lugar — espero acordar na minha cama agora, de preferência.
Um lugar mais feliz e colorido, sem cabos de madeira que falam. Era isso o que eu desejava!
Durmo por um bom tempo, até acordar com alguém cutucando minhas costas com algo pontudo e incomodante. Eu fiz um movimento brusco e ele recuou rapidamente para longe de mim.
—Está vivo. Que bom!
Demorei um pouco para responder, com minha cabeça a latejar como se fosse explodir. Ao passar a mão, senti um galo alto saindo do meio da minha testa.
—Caramba! Onde eu... AAAAAHH!! QUEM É VOCÊ?!!
—AAAAAHH!! Desculpa! Desculpa! Desculpa!
—AAAAAHHH!!
Parecia que disputávamos para ver quem estava mais assustado. Os dois berrando que nem duas gralhas no meio do mato, um mais alto que o outro.
— O senhor está bem?
Mesmo meio tonto, eu pude ver que era uma linda jovem — aparentemente da minha idade, apesar de que idade em um jogo era algo irrelevante —, usando um vestido modesto de pano sujo e um turbante que amarrava seus lindos e despenteados cabelos loiros. Também carregava um fardo abarrotado de lenha nas costas.
— Eu estava passando por aqui quando encontrei você caído no chão. Você é um viajante? — E a voz dela era como ouvir a voz de um anjo.
Ainda estava tão hipnotizado com tamanha beleza que demorei um pouco para responder.
— Ah, ah, sim! Sim! E-e-eu... bati com a cabeça... ai! Ai!
—Deve ter doído bastante.
—E como...
“Tenha cautela, Juniorai! Sinto uma presença estranha vindo dela.”
Eu quase tive um enfarto quando ouço a voz do cabo de madeira falando comigo de novo e na pior hora possível.
— E VOCÊ VEM ME RESPONDER SÓ AGORA, SEU DESGRAÇADO?!! — gritei segurando-o como se eu pudesse esganar um pedaço de pau.
— O senhor está me assustando! Está falando com quem, senhor?
— Humano idiota! Só você pode escutar minha voz!
Naquele momento, eu queria incorporar um avestruz e enfiar minha cabeça na terra. Será que era possível uma habilidade dessas?
— E vem me dizer isso só agora, maldito?!
—Senhor? Eu acho que eu vou deixar você conversar sossegado com quem quer que seja e...
—OPA!! Me desculpe!! Eu estava apenas pensando alto!! Hahahaha!!
Amaldiçoei Gallatin mentalmente por me fazer passar vergonha na frente de uma menina tão linda — agora que eu tinha finalmente a chance de me aproximar de uma!
—Entendi... bom, já que está bem e está vivo, acho que vou andando.
—Espera!
— ...?
A moça se assusta. Acho que ela pensava que eu era algum tipo de louco maníaco que poderia fazer algo de ruim com ela.
Isso era o que eu mais temia e odiava de certa forma. Mesmo que seja um mundo alternativo e mágico, ainda era algo imperfeito e criado pelas mãos de homens imperfeitos e que carregavam as mesmas imperfeições
— Eu estou meio perdido e faminto. Por acaso, poderia me ajudar?
Ela me olhou hesitante, talvez se questionando se deveria me ajudar ou não.
— Bem... nós não temos muito, mas... eu acho que deve ser o suficiente para aguentar o resto da viagem.
Meus olhos brilharam e meu estômago continua a roncar. Estava diante de um anjo em vestes humanas! Ela relutou a princípio, mas depois permitiu que eu a acompanhasse.
Você se depara com um doido caído no meio de uma floresta escura, sem nenhum sinal de outras pessoas próximas. No mínimo, alguém pensaria ser uma emboscada feita por ladrões. E então, eu ficaria ali para morrer de frio, fome ou até por algum monstro — e eu nem sabia qual era o nível daquele lugar. Eu teria ficado cabreiro da mesma forma.
Eu sou alguém de muita sorte, sem dúvidas. Acho que não ganhei nenhum atributo de sorte de Gallatin, imagino.
Caminhei ao lado dela e nos enfiamos por entre os matos estreitos e traiçoeiros. Noto que o ambiente estava bem mais escuro que o normal e logo deduzo que havia se passado várias horas desde que apaguei. Já era noite.
—Então, qual é o seu nome? — Não sei se ela já estava confortável o suficiente para puxar algum papo comigo, mas arrisquei.
—Meu nome é Maria.
—Que nome... comum. Você é humana?
Temi que a pergunta soasse em um tom indesejado ou intrometido.
— Digamos que eu seja “meio humana”.
Ainda era misteriosa, hein? Logo teorizei várias coisas sobre sua real identidade. Nem precisei ficar muito tempo pensando porque logo uma outra ficha surge em cima de sua cabeça. Ela não parecia ter consciência daquilo. Um tipo de aba flutuava em um azul bem claro e neon, se destacando no ambiente escuro com as seguintes informações:
NOME: MARIA
RAÇA: [DESCONHECIDA]
ORIGEM: ||DESCONHECIDA||
IDADE: DESCONHECIDA
CLASSE: [DESCONHECIDO]
HABILIDADE: -DESCONHECIDA-
Lv.???
Aquela droga de ficha não me dizia mais do que eu já sabia, mas era no mínimo interessante saber que eu poderia acessar as informações de outras pessoas.
Era como se houvesse um banco de dados na minha cabeça e eu poderia consulta-lo a qualquer momento. Segundo Gallatin, eu poderia ver os status de qualquer item, mágico ou não, inclusive de outras Relíquias Hospedeiras.
Isso significa que Maria era um item? Ou talvez Gallatin havia omitido esse detalhe de mim? Era uma possibilidade.
Comecei a imaginar se eu poderia ver minha própria ficha também e fiquei pensando naquilo como um louco. Ainda não entendia como funcionava aquele sistema de análise, mas eu deduzi que fosse por pensamento. Talvez algum comando mental? Um input? Um comando por voz? Uma tag? Um sinal com as mãos?
Tentei então mentalizar uma “ficha de personagem” saindo de mim. Não era algo muito agradável de se fazer.
Depois de um tempo olhei para cima da minha cabeça enquanto andava e estava lá, linda e maravilhosa, flutuando em cores neon: a minha própria ficha de personagem!
NOME: JUNIORAI
RAÇA: [HOMINA]
ORIGEM: ||DESCONHECIDA||
IDADE: 20 ANOS
CLASSE: [APRENDIZ]
HABILIDADE: -PSICOCINÉSE/MANIPULAÇÃO GRAVITACIONAL-
Lv. 1
Ainda não entendi o porquê de o campo “ORIGEM” estar com “Desconhecido”. É uma coisa que eu acabei aceitando naturalmente — até porque eu não pertencia àquele mundo.
Logo meus olhos localizaram um ponto de luz brilhante no meio da floresta. Era uma fogueira com um grupo de viajantes maltrapilhos ao redor. Estava mesmo de noite e eles faziam uma festa em volta da fogueira.
Eram três ao todo; o maior era um [ANÃO] barrigudo e peludo, vestindo uma túnica de seda com um macacão de couro e botas de metal sujas — e aparentemente, o mais papudinho do grupo. O mais afastado estava dormindo enrolado com alguns cortiços surrados e pela estatura, julguei ser um [HALFLING]. O terceiro estava mais ao centro da fogueira e era um humano também, vestindo uma armadura leve e com uma espada na cintura. Contudo, a raça dos dois primeiros eram [DEMI] e eu não entendi muito bem essa parte. Devia ser uma categoria específica de raça que eu não me lembrava de ter botado.
Ao verem a gente, eles param de rir e virar as canecas.
—MARIA! Até que enfim você chegou, mulher! Pensávamos que havia se perdido no meio da floresta!
—Desculpem a demora. Eu trouxe alguém que encontrei perdido.
Ela me apresenta para o seu grupo de beberrões. Eles me encararam com uma cara não muito boa de começo. Em qualquer hipótese eu tenho meu bordão mortal e falante em mãos.
—Você o encontrou no meio da floresta?
—Qual o seu nome, esquisitão?
—Eu atendo por Juniorai. — Era estranho falar meu nickname assim em vez do meu nome, mas usá-lo aqui seria obrigatório pelo visto.
Eles se entreolharam e depois soltam uma gargalhada bem alta juntos.
—Bem-vindo ao grupo, Juniorai! Vamos, sente-se! Pegue uma bebida!
—Eu ouvia dizer que essa floresta tinha vários peregrinos que haviam se perdido aqui dentro, mas nunca pensei que fôssemos encontrar um vivo!
Um deles — o mais barrigudo e com trancinha na barba que lembrava um viking — bateu a caneca no pedaço de tronco ao lado.
—Mais um motivo para bebermos!
—Vocês estão indo para a cidade de ||AMINAROSSA||?
—Evidente que sim. Partiremos ao amanhecer, aventureiro!
Me senti bem mais aliviado. Eles eram estranhos, mas eram pessoas em quem eu podia confiar, pelo menos por hora.
Aproveitei para comer bastante e recuperar minha energia. Maria foi bem gentil e tratou dos meus machucados e depois da pequena festinha em volta da fogueira, quando todos foram dormir, continuei acordado.
O céu era ainda mais lindo à noite. Como o acampamento estava em um campo aberto no meio da mata, eu pude comtemplar com meus olhos todo o esplendor daquele céu estrelado. Duas luas gigantes que pareciam orbitar entre si, uma vermelha e outra amarela, marcavam o céu noturno banhadas em um mar de estrelas e pedaços de terra flutuantes.
Era uma visão magnifica demais para eu conseguir fechar os olhos.
Ainda tinha muitas coisas que eu não sabia sobre tudo o que estava acontecendo. Afinal, eu havia sido sugado para dentro do jogo que eu mesmo criei e agora estava vivendo uma aventura de um herói de Isekai.
Eram coisas demais para digerir fora a comida.
O mais bizarro é que a única pessoa — ou coisa — com quem eu poderia contar era um cabo de madeira que falava e agora, um grupo de viajantes estranhos. Claramente eu não conseguiria fechar os olhos naquele jogo sem levar um K.O.
Eu fiz um esforço e consegui me virar para dormir, finalmente.
Amanhã era a nossa partida para a grande Capital.
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Dia seguinte, em ||AMINAROSSA||. Um estranho caminha pela ponte principal.
PLAYER: [???]
Aminarossa era uma cidade de se impressionar. Grandes construções de se ver de longe e a se perder de vista através das nuvens. Prédios voadores que enfeitavam o espaço aéreo da cidade e com várias pontes, estradas e distritos inteiros que se estendiam por quilômetros.
Era interessante lembrar também que a cidade em si foi construída em cima de uma grande porção de terra que se desprendeu da superfície do continente, suspensa em cima de um precipício que segundo as lendas, levava aos confins do próprio inferno.
— Uma cidade inteira construída em cima de um abismo? Interessante!
Não tinha muito tempo para me admirar com a toda a majestade do lugar. Tinha que continuar andando.
Caminho pela ponte até chegar aos portões gigantescos que separavam a cidade do resto do mundo. Lá haviam vários guardas vestindo armaduras pesadas e elmos que cobriam seus olhos afiados que monitoravam quem entrava e quem saía.
Faço uma rápida avaliação:
NOME: GUARDA REAL XsF02345-2
RAÇA: HÍBRIDO
ORIGEM: ||AMINAROSSA||
IDADE: 32
CLASSE: [CAVALEIRO REAL]
HABILIDADE: -BLINDAGEM RÚNICA-
Lv.70
Rapidamente cuidei para não parecer tão suspeito quanto eu já aparentava ser. Não seria muito bom chamar atenção de dois Guardas Reais de Lv.70 — as duas fichas variam quase em nada, mudando o código nome que os identificava.
Após me revistarem, eles permitem a minha entrada e me entregam um bilhete de estadia que brilhava em um tom roxo claro pulsante.
Passando do portão, andei mais um pouco e alcancei uma praça bastante movimentada. Era possível ver de tudo, desde mendigos até nobres passeando em carruagens.
— Poções! Poções aqui por metade do preço! Poções de todos os tipos!
Mais a frente, um grupo de aventureiros conversam entre si. Haviam vários grupinhos como aquele, espalhados pela rua principal da cidade.
— Então aqui é a lendária cidade de Aminarossa? É bem maior do que eu imaginei!
— Onde será que fica a [GUILDA MEISTER]? — pergunta um deles.
— Vai pegar alguma quest hoje?
—Tenho que treinar primeiro. Estou quase subindo de nível!
Alguns clérigos também estavam próximos.
—Oh, deuses! Ouçam minhas súplicas!
—Hoje o dia está bem movimentado, não é? — comenta outro.
—Já se tem notícias da última expedição? — pergunta mais um.
—Você não me pega! Você não me pega! — Até mesmo algumas crianças brincando pelo meio da multidão.
Era angustiante a vida cotidiana em uma cidade tão movimentada, principalmente para quem vinha de uma região quase isolada do mundo como eu.
Procurei a taverna mais próxima. O lugar estava bem cheio e agitado, com várias músicas e pessoas rindo e gritando. Andei até o balcão e me acomodei, chamando o possível dono da taverna, um senhor bigodudo e gordo usando um avental branco engomado com um chapéu bizarro na cabeça.
—Bom dia, senhor! Já fez seu pedido? — Ele me recebeu com muita educação para um taverneiro. Até estranhei.
— Me traga uma bebida não muito forte e algumas uvas.
Ele prontamente me atendeu. Enquanto saboreava o cacho de uvas junto com a bebida, pensava aonde eu iria ficar aqueles dias em que passaria em ||AMINAROSSA||. Um outro aventureiro se sentou ao meu lado, bebendo uma cerveja bem forte.
Era um moreno grande e corpulento, vestindo uma regata simples e surrada com um colete de couro batido por cima e calças largas e rasgadas, presas por botas de marinheiro. Também carregava consigo uma grande espada de dois gumes embainhada nas costas, presa por uma fivela.
—Esse machucado aí deve ter sido bem feio.
Temi que alguém prestasse atenção no meu braço enfaixado, e aconteceu que o infeliz notou. Eu apenas segui o assunto.
— Sim. Ainda estou me recuperando.
— Se for um aventureiro como eu, boa sorte. Feridas como essa atrapalham e muito qualquer quest que tente fazer. Infelizmente para nós, não existem exceções. — Ele falou aquilo com certo pesar na voz.
— Concordo.
Ele tomou uma golada cheia e bateu a caneca de madeira no balcão com força. Claramente estava bêbado e eu evitei conversas o máximo possível. Ninguém ali era confiável. Antes de sair, me atrevi a fazer outra pergunta:
—Você é um aventureiro, não é? Sabe onde fica a [GUILDA DA CAPITAL]?
Ele limpou a boca suja de cerveja com o braço e se virou para mim.
— [GUILDA DA CAPITAL]? Você é um sujeitinho ambicioso, hein? Gostei de você!
Ele me entrega um tipo de carta. Estava amassada e um pouco molhada, os deuses sabem do quê.
—Isso seria...?
—Um mapa da cidade. Se guie por ele que você chegará ao lugar que procura. E mais uma coisa: Tenha muito certeza do que quer, espertinho! A [GUILDA DA CAPITAL] não é um lugar para qualquer aventureiro meia-boca. Só as melhores quests e também as mais difíceis são oferecidas lá!
Ele saiu cambaleando no meio da taverna, tropeçando nas outras mesas.
— Boa sorte lá!
— Espera! Por que você me deu isso?!
Cavalo dado não se olha os dentes, não é? Mas naquela cidade, as coisas não funcionavam assim.
— Eu vi que você tem algo que me identifico, garoto! E hoje em dia, eu não preciso mais disso. Meus dias como aventureiro... se acabaram há muito tempo.
— ......
O taberneiro volta, trazendo a conta.
— Esses aventureiros de hoje em dia! Sempre se arriscando nessas missões e para quê? Somente para vim encher a cara aqui nos fins de semana!
Eu apenas ignorei o comentário desprezível dele e paguei a conta, saindo do estabelecimento.
Ao voltar para as ruas, meu braço esquerdo começa a doer e aquela voz aterradora retorna a falar comigo:
“Hmm! Quantas pessoas nesse lugar e todas carregadas de pecados!”
— Fique quieto! Agora não estou com tempo para as suas manhas!
“Sinto tantas almas carregando fardos pesados em toda parte! Gostei desse lugar!”
O braço começa a latejar e o pressiono contra o corpo em uma tentativa vã de parar a dor que aquele membro amaldiçoado me causava. Demorou algum tempo até que eu conseguisse contê-lo.
— Não viemos aqui para isso, Salamandra! Trate de se aquietar!
“Acha que pode controlar minha fome, humano? Quanta presunção!”
— Sem mim, você não é nada. Então, trate de me obedecer já!
A voz grave e demoníaca solta uma risada de deboche. As vibrações no meu membro lentamente vão se acalmando.
“Pois, muito bem. Vou deixar que você pense que pode mandar em mim. Pelo menos por enquanto.”
E com uma breve discussão com meu maldito braço enfaixado, continuo meu caminho seguindo o mapa que havia recebido. Aproveitei para dar uma boa olhada na cidade durante o percurso.
Acho que eu aproveitaria muito mais o turismo sem ter um braço maníaco com vontade própria.
Era sempre a mesma coisa quando eu estava em lugares com muita gente. Ele começava a querer assumir o controle do meu corpo e fazer o que bem desejasse.
Por isso eu me isolei por algum tempo de tudo e de todos, até descobrir uma forma de controla-lo. Confesso que ainda sou péssimo nisso; Salamandra não era alguém fácil de se lidar, mas me conferiu um poder extraordinário.
Um poder que eu usaria para resgatar minha mãe.
— Muito bem! Passa tudo que estiver carregando aí, velhote! E nem tente fugir ou gritar!
Eu tive o desprazer de pegar um atalho por entre dois distritos comerciais e encontrar dois ladrões da capital fazendo mais uma vítima.
Porém sempre foi assim; uma grande e majestosa cidade também tinha suas mazelas.
Os dois assaltantes me olharam torto, assim que cheguei à estreita passagem. A dupla vestia armaduras leves e maltrapilhas — provavelmente roubadas de algum soldado aposentado —, além de adagas e alfanjes de fácil manuseio.
Aproveito e dou uma rápida fuçada em seus status:
NOME: NOISY RUIZ
RAÇA: [HOMINA]
ORIGEM: ||AMINAROSSA||
IDADE: 29 ANOS
CLASSE: [ARRUACEIRO]
HABILIDADE: -PERDEU, PLAYBOY!-
Lv. 24
E ainda havia seu companheiro:
NOME: BLACK CAT
RAÇA: [HOMINA]
ORIGEM: ||RORISA||
IDADE: 25 ANOS
CLASSE: [MERCENÁRIO]
HABILIDADE: -ACERTO TRAIÇOEIRO-
Lv.38
O último, o mais definido em corpo, era o que possuía o nível mais alto. Passava a impressão de que já era antigo no ramo por conta de algumas cicatrizes em seu corpo. Talvez eu tivesse problemas com ele.
Seu companheiro de nível mais baixo com certeza se aproveitava das vantagens de ter alguém com alguns status melhores. Mesmo em dupla, os dois não eram páreos para um aventureiro de nível mais regular, então se aproveitavam de cidadãos mais indefesos.
Não sendo guerreiros comuns, dificultava ainda mais lutar contra eles por serem imprevisíveis. Nas cidades grandes, classes como [MERCENÁRIO] eram bem raros. [ARRUACEIROS] eram mais frequentes, mas haviam guildas especializadas somente nessa classe. Fora isso, você quase não os encontrava também.
E eu, sortudo como sou, me deparei logo com um caso bem raro de presenciar, principalmente se tratando da “Capital Sagrada”.
— Olha só quem apareceu! Hoje o negócio está rendendo, hein?
— Se der meia volta e fingir que não aconteceu nada, nós deixamos você sair daqui vivo, esquisitão. — ameaçou o mercenário.
— Por que não damos uma geral nele também? Com certeza, se o deixarmos fugir, ele vai chamar os Guardas Reais!
— Esse é um pobre coitado! Seu nível é baixo e não está carregando nada além das roupas do corpo. Além disso, está com um dos braços feridos! Provavelmente já foi assaltado no caminho para cá.
O desgraçado conseguia ver meus itens equipados também, além do status. Ele possuía a |Análise Aprimorada|. Nada que eu já não esperasse de um [MERCENÁRIO]de nível mediano.
Era assim que a dupla selecionava suas vítimas. Claramente que alguém como eu que não tinha nada em itens ou muito ouro não interessava a eles.
— Estou apenas de passagem.
— Hoje é o seu dia de sorte, amiguinho! Mas nem pense em chamar alguém, está ouvindo?
O pobre velho que estava tendo seus itens levados me encarou com um olhar de desespero. “Vou fingir que não vi nada. Não é da minha conta! Sou cego!”, esse era meu principal pensamento passando por eles.
Caminhando passei pelos dois, apressando as passadas. O tal do Noisy Ruiz ficou me encarando para ver se eu não faria nada de estranho.
Faltava pouco! Eu já podia ver a luz no fim da viela. Eu sairia sem causar tumulto nem problemas — apesar de que o velho iria se ferrar de qualquer jeito e depois eu ia ficar com uma bigorna de 350Kg na consciência por não ter ajudado ele.
Fazer o que, não é? Coisas como essa aconteciam todos os dias e estava além das minhas capacidades atuais. “Não é possível salvar todo mundo”, repetia o pensamento na cabeça, caminhando com o rosto erguido e suado.
— Que seres humanos patéticos! Vou deixa-los aproveitar suas vidas miseráveis por mais algum tempo!
— Ah?!
— ......
“DROGA! PORQUE EU DISSE UMA COISA DESSAS?! EU ESTAVA QUASE LÁ!!”
“Humano patético! Não acredito que ia deixar esses dois pecadores saírem impunes!”
Os dois se entreolharam, segurando uma risada. Eu também senti vontade de rir de mim mesmo, mas somente para disfarçar minha vontade de chorar. Acho que Salamandra realmente estava querendo me assassinar de todo o jeito.
Eu apenas continuei andando como se não tivesse dito nada, mas o que acontece é que aquelas palavras já haviam sido ditas. Não adiantava mais fingir nada e nem tentar correr.
Mas que raios de chance eu tinha contra dois ladrões com um nível acima do meu e com mais equipamentos? Mas existe duas coisas que não voltam atrás e uma delas são as merdas que falamos. E eu acabei de falar a minha — ou melhor, minha Relíquia Hospedeira falou por mim.
— HAHAHAHAHA!! Acho que essa foi a coisa mais engraçada que escutei hoje! — O cara realmente levou a sério?
— Um comediante, chefe! Um maldito comediante!
— Fuja daqui! Eles são perigosos!
— Eu disse para você ficar quieto, seu velho caduco!
O desgraçado desce um murro no senhor rendido e ele cai no chão, se contorcendo.
— A-a-agora... vocês dois estão muito ferrados! — Subitamente me virei e adotei uma postura trêmula de combate.
O que eu estava dizendo, cacete?! Nem parecia eu falando! Seria mais uma das tramoias de Salamandra?!
“Estou com água na boca! Posso cuidar desses dois para você se quiser, Arthur!”
Além de agora está completamente ferrado, Salamandra começava a me incomodar de novo. Ele era o único responsável por toda aquela situação desnecessária.
— TUDO ISSO É CULPA SUA, SEU DESGRAÇADO!! ISSO TUDO É MUITO CONVENIENTE PARA VOCÊ, NÃO É?!!
“HAHAHAHA! Que humano insolente! Você iria deixar dois vermes como eles escaparem da punição...”
— NÃO É VOCÊ QUEM DECIDE ISSO, CACETE!
O [MERCENÁRIO] puxou uma de suas facas de bolso e ficou balançando entre os dedos, olhando para mim com uma expressão assustadoramente sombria.
— Até deixaria você sair daqui sem mais problemas, mas agora estou realmente puto, moleque!
— Chefe! Posso cuidar dele? Estou quase subindo de nível! — O [ARRUACEIRO] toma a iniciativa.
O outro suspira, parecendo impaciente.
— Faça como quiser! Esse lixo está em um nível tão baixo que não vai me dar pontos de qualquer forma.
O arruaceiro solta uma risada de satisfação e caminha na minha direção, balançando sua adaga surrada nos dedos. Eu vim para a cidade apenas para arrumar briga com dois ladrões da capital, tudo por causa do meu braço estúpido?
Ele criava essas situações de propósito apenas para satisfazer suas vontades infames.
Agora não tinha mais volta. Tinha que, de alguma forma milagrosa, cuidar daqueles dois sozinho. Pelo menos com esse teatro causado por Salamandra, os dois ladrões focaram suas atenções em mim e o velho conseguiu fugir com os seus pertences.
— Isso vai ser divertido, moleque!