Uma Cidade Pacata – Nova cidade, Nova vida
Capítulo 8: Do Outro Lado
— Todo mundo tá só falando desse novato hoje… O que será que esse cara tem de tão especial assim?
— Ah, tô vendo que alguém tá com inveja…!
— Inveja?! Eu?! Eu só acho que não justifica essa atenção toda que esse maluco tá recebendo…!
— Vai, eu finjo que acredito. Quero ver ficar pagando de humilde se algum dia você humilhar um daqueles filhos da mãe na frente de todo mundo…!
— Ei…! Eu tô falando sério! Espera aí…!
O casal de estudantes vai embora, falando sobre o ocorrido principal do dia, nada que importasse para ela.
Assistia a sala ficar cada vez mais vazia ao fim da tarde. Da janela, notou o céu ficando mais escuro, embora ainda estivesse longe de ficar noite. Era hora de ir…
E seria melhor fazer isso rápido.
Apressada, arrumou com dificuldade os vários lápis coloridos e canetas no estojo. Seus dedos tremiam, ameaçando derrubar os delicados objetos.
Não se tratava apenas de sair, mas sim, de escapar.
Suas pernas tremulavam, dificultando sua caminhada, mas ainda assim se manteve firme, encarando os corredores surpreendentemente escuros.
Os primeiros passos mostraram que não havia ninguém e apenas isso já tirou um enorme peso de seus ombros.
Ela poderia deixar de se preocupar tanto.
Tocou o peito, sentindo as pulsações violentas se acalmarem subitamente, suspirando.
“Ainda assim, é melhor ir embora logo”, pensou, de olho nas sombras.
Em um bom ritmo, acelerou sua passada, conquistando os espaços grandes demais para sua forma pequena.
“Não tem ninguém… Ainda bem.”
Abriu o armário. O silêncio geral era inebriante, calmante demais, embora ao mesmo tempo tão perigoso.
Mesmo com tanta tranquilidade, não conseguia relaxar.
Seus dedos quase não miraram a chave na abertura da fechadura, vacilando e errando tantas e tantas vezes.
“Eu preciso sair daqui…”
Respiração acelerou, coração bombeou agressivo, o frio em sua face formou-se em suor…
“Eu preciso voltar para casa…!”
Passos no corredor soaram infinitos, mais e mais perto. Ríspidos, secos, frios e cruéis.
Ela tinha de fugir imediatamente.
— Ora, ora! Veja só quem nós encontramos aqui…! Se não é a nossa pequena amiguinha Phoebe!
Congelou, seu tempo prestes a parar. Mais uma vez, não foi veloz o suficiente para escapar.
— Apareceu para dizer um oi para a gente, Phoebe? — perguntou a primeira víbora. — E então? Trouxe o que a gente pediu?
Era um grupo de dois pares, um de garotos, o outro de garotas, velhos conhecidos da menina paralisada, e não por um bom motivo.
Essas pessoas não podiam ser chamadas de “boas”.
— Não vai dizer para a gente que esqueceu… — Um dos rapazes altos se aproximou. — Logo quando pensamos que viramos amiguinhos, Phoebe…!
“Por favor… Para…”
Sua pequena forma recuava diante dos avanços violentos, cobrindo o rosto.
— Não, você não esqueceria. Nossa amiguinha mais esperta não cometeria esse erro!
E sabendo que só havia um jeito de lidar com aquilo…
— Eu… Eu trouxe…! — Quase gritou. — Eu… trouxe as respostas das tarefas de matemática…!
Derrubou a mochila, abrindo tão depressa que fez os zíperes chorarem. De dentro do caderno, puxou um monte de folhas dobradas.
— Aqui… — entregou, temerosa. — Todas estão aí… Todas as respostas.
E não demorou para que fossem puxadas com tanta violência.
— É disso que eu tô falando! Sabia que podíamos contar com a nossa melhor parceirinha!
Eles riam. Esses grandes desgraçados riam sem parar de sua dor.
— Parece que tá tudo de boa! Agora, Phoebe — falou uma das garotas. — Temos um trabalho de química na semana que vem… Vai fazer para a gente, né?
Esses malditos nunca cansavam de se aproveitar.
“Se eu pudesse fazer alguma coisa… Se eu tivesse poder…!”
Então não precisaria mais sofrer pelas ações e palavras dessas criaturas vis. Apenas havia um problema: ela não passava de uma garotinha fraca, magricela e pequena.
— E então? O que diz para a gente? Vai ajudar os seus amigos? — A pergunta veio cheia de ironia.
Cerrou os punhos, e…
— Eu vou… Eu vou fazer…
— Ótimo! Eu sabia que não nos decepcionaria, melhor amiguinha! Muito bom mesmo! Esperamos sempre poder contar com você!
As risadas no final de cada fala demoliam o sentido e mostravam a verdade. Não passavam de um bando de cobras.
— E isso aí? O que é isso na sua bolsa? Podemos dar uma olhada como os amigos que somos? Ah… Você não vai negar, né?
“Não…”
Cada centímetro de seu corpo travou. Tudo: trabalhos, atividades, ou o que fosse… Tudo menos aquilo.
— Isso é… Um caderno de desenho? Ei, galera! Vamos dar uma olhada nisso aqui! Nossa amiguinha é uma artista…!
“Não… Isso não…!”
Se acumularam ao redor de sua mochila. A pobre Phoebe já podia sentir as lágrimas nos cantos dos olhos.
— Deixa a gente dar uma olhada…
Quando a causadora de problemas colocou suas mãos imundas contra a capa dura…
— Puta que pariu… — exclamou, parecendo surpresa. — Phoebe, isso que você desenha…
… Soube que apenas mais dor dali viria.
— Você só desenha merda!
O barulho de rasgos arranhou sua alma, enchendo-a de náuseas. Foi como ter sua mente arrancada do corpo.
Era como se nada disso pudesse ser real, embora tão dolorosamente fosse.
— Sério, eu sei que não sou nenhuma crítica de arte ou nada disso, mas… Phoebe, essa tua arte é uma porcaria! Para de desenhar! Tu não presta para isso… Sério, galera… Olhem para isso!
Uma vida onde nem mesmo seu único lugar de refúgio era seguro.
— Mas é uma Picasso mesmo… Depois de cega! — falou um dos rapazes.
— Por que tu ainda tenta, na moral? — perguntou a segunda garota, cínica.
— Isso era para ser um sol? Caralho, que horrível! Só desiste, Phoebe! — concluiu o último rapaz.
Rasgaram as páginas, jogando os pedaços para cima. Em questão de segundos, um dos últimos prazeres de sua vida foi estraçalhado.
— Fica triste não — A mesma garota tocou seu ombro. — Quem sabe um dia tu não encontra algo que compensa essa cara feia?
E assim sairiam felizes da vida, rindo igual um bando de hienas, deixando seu espírito despedaçado.
Se ela ao menos tivesse sido um pouquinho mais rápida… Talvez conseguisse salvar ao menos isso?
Não, ela sabia que não. Apenas aconteceria de novo no dia seguinte e nos outros depois. Não havia a menor chance de sair desse ciclo tão injusto.
Tudo o que ela mais queria era chorar.
“Por quê…? Por quê…?!”
Ajoelhou. Uma lágrima pesada molhou a folha rasgada de uma paisagem arruinada. Seus dedos frios e pálidos fincaram o papel.
“POR QUE EU?!”
Mostrou os dentes, tristeza aos poucos a virar ódio. Em sua imensa raiva, chutou os remanescentes de seu caderno desenho, pisoteando os pedaços de folhas. Não podia se importar menos caso alguém a visse.
“POR QUE ISSO TEM QUE ACONTECER COMIGO?! O QUE DIABOS EU FIZ PARA MERECER ISSO?!”
Sua vida sempre foi marcada pela injustiça e a violenta indiferença da realidade, e dizer que o destino a escolheu casualmente para ser alguém “sem sorte” não seria um exagero.
“Esse desgraçado… Cadê ele agora… CADÊ ELE QUANDO SOU EU QUEM PRECISA?! ONDE ELES ESTÃO QUANDO É A MINHA VEZ?!”
Não podia sentir ainda mais ódio da conversa do dia, o maldito novato que deu uma surra em um deles. Por todos os cantos que ia, era certo que ouviria alguém falando tão animadamente sobre aquilo.
Às vezes, também, escutava as conversas de seus colegas de classe, que ocasionalmente falavam de um casal de estudantes que lidavam juntos com esse pessoal.
Eram sempre glorificados, tratados como heróis por todos os cantos…
… Mas eles, de um jeito mágico, nunca apareciam quando era a vez dela ser resgatada. Seus nomes significavam nada para Phoebe Martinez.
Se vingaria de cada um se pudesse e jurava por seu próprio sangue que, se em algum momento adquirisse os recursos para isso — seja lá quais fossem —, iria fazer um inferno da vida de cada um.
“Se eu pudesse… Se eu pelo menos pudesse fazer alguma coisa…”
Mas a realidade não tinha espaço para sonhos impossíveis e bastava olhar para sua forma franzina para que se fizesse claro.
Phoebe Martinez levava a alcunha de “garota estranha” da Elderlog High. Desde a infância, sempre teve peso e altura abaixo da média, mesmo se alimentando bem. No momento, com quase 17 anos, tinha um corpo que lembrava o de uma criança de 12 ou 13.
Para combinar com isso, a pele pálida e oleosa de seu rosto era sempre cheia de grandes espinhas vermelhas, prontas para explodir em nojeira a qualquer segundo, suficientes para espantar a maioria.
Tinha sardas e olhos castanhos não muito brilhantes, acompanhando as olheiras profundas em cada base, dando-lhe um ar melancólico e cansado.
E para finalizar, seus cabelos ruivos eram crespos e duros, difíceis de pentear e ainda mais de manter contidos, sempre criando um grande tufo redondo ao redor da cabeça.
Por acabar não fazendo tanta diferença, nunca se dava ao trabalho de arrumá-los.
Tudo na vida a ensinou a não ser sociável, se sujeitando a ficar sozinha com seus pensamentos e estudos. Não ter com quem conversar além das vozes em sua cabeça e os personagens dos livros que lia era a rotina.
“Mamãe… Vai ficar preocupada se… Se eu… Não voltar logo…“
Catou as únicas folhas sobreviventes na carcaça do caderno de desenho, dolorosamente guardando na bolsa e, lenta, cruzou o ainda enorme caminho até a saída.
Todos fingiam não dar a mínima atenção aos seus soluços e gemidos baixos. Era assim que sempre faziam.
“Eu… Eu não posso chorar assim na… Na frente dela…”
Agarrava o guidão de sua bicicleta, mas não encontrava forças para pedalar. Por isso, decidiu arrastar pelas ruas, deixando os cliques da corrente abafarem os sons de seu sofrimento.
Não podia aparecer daquele jeito na frente de sua amada mãe. Não podia preocupá-la com uma bobagem igual aquela. Tinha que secar as lágrimas e engolir o choro.
Nada de colocar ainda mais preocupações em sua mente cansada.
Porém, por mais que secasse nas mangas azuis do moletom, nunca paravam de escorrer.
— Eu… Eu não quero mais isso… — parou no meio do caminho. — Eu não quero continuar chorando…!
Não importava o quanto se esforçasse, o choro nunca cessava. Percebendo isso, tudo o que fez foi se recostar na madeira da ponte velha e ficar ali.
O som da corrente foi substituído pelo do fluxo constante e turbulento do Rio Attwood. Ao seu redor, o que se via era a relva de pinheiros, crescendo verdejante. Tal lugar era distante demais de onde morava.
— Talvez eles estejam certos…? Talvez… Gente que nem eu não tenha nascido para viver?
Podia falar alto. Sozinha, apenas o bosque e o céu daquele fim de tarde seriam seus confidentes.
— E se eu só morresse…? Será que…
Uma imagem clara foi pintada em sua mente: a visão de sua mãe.
— … Será que as coisas melhorariam para ela…?
Seguir tal linha a encheu de ainda mais tristeza. Reclinou sua cabeça na estrutura, olhando diretamente para o grande lençol de água esverdeada.
A correnteza era violenta e a água fazia um barulho forte ao colidir com as pedras. Não parecia, mas o rio era muito fundo.
Olhando atentamente para seu reflexo borrado pela velocidade do fluxo, só podia pensar em como seria fácil alguém se afogar ali e nunca mais ser encontrado.
— Huh…?
O momento de curiosidade a tirou de sua introspecção, quando viu algo incomum preso entre as tábuas de madeira do chão da ponte.
— O que é isso…?
Parecia já estar quase caindo no rio, perdurando fixo, por um fio, entre a madeira. Seus dedos pequenos a permitiram, com cuidado, puxar o objeto.
— Uma carta…?
Olhou curiosa para o estranho envelope branco sem qualquer identificação. Estava lacrado, parecendo ter algo dentro, mesmo sem qualquer coisa escrita.
Sabendo que achado não é roubado e vendo que não havia qualquer nome escrito para começo de conversa, sua curiosidade falou mais alto, a chamando para abrir.
— … Argh! Droga…! Eu deveria saber que era mais uma pegadinha…!
Logo ao abrir, jogou a coisa fora, quando uma nuvem de algo que lembrava farinha de trigo foi espirrada pelo forte vento contra seu rosto. Se apressou para limpar aquela poeira estranha, que a trouxe mais uma confirmação.
— Hoje… É mesmo o meu dia de azar… — falou, batendo as mãos para tirar os restos daquele pó.
Seja lá que brincadeira foi aquela, acabou indicando que deveria ir para casa. Já era tarde demais para andar sozinha pelo meio do nada.
Cansada, chorosa e agora suja de branco, usou da pura raiva para chegar em casa pedalando.
— Cheguei, mãe.
— Ah, Phoebe…! Como foi na escola hoje, filha?
Ver a empolgação da mulher no sofá ao perguntar a fez pensar em suas palavras. Ela não queria arruinar o dia daquela pessoa que amava tanto.
— Ah… Sabe… Normal…! — mentiu. — Agora… Acho melhor eu subir. Eu tô… Precisando de um banho.
— O que aconteceu com suas roupas? E por que seu cabelo está todo branco, minha filha?
— Isso foi porque um funcionário da padaria acabou derramando um pouco de farinha do carregamento… E eu estava passando bem na hora…! — riu, esperando estar fazendo um bom trabalho.
Todos os anos a tornaram uma especialista em mentir sobre seu bem-estar. Era uma pena que uma mente tão brilhante tivesse que se sujeitar a isso.
— Então… Eu tô subindo! Volto na hora da janta…!
Ignorando os chamados de sua mãe, subiu o lance de escadas, abrindo depressa a porta de seu quarto e logo trancando.
“Eu tô tão cansada…”
Nem mesmo tirou os sapatos ou acendeu as luzes. Do jeito que chegou, caiu de rosto para baixo na cama, cheirando as cobertas. Não sabia explicar a origem da exaustão tão súbita.
“Eu só preciso dormir…”
E tão facilmente todas as forças lhe deixaram, tomadas por um torpor esquisito demais para ser normal.
Fechou os olhos e sonhou, e foi um sonho lindo.
No sonho, era uma rainha, com direito a trono e tudo. Todos no mundo se ajoelhavam diante dela, atendendo cada um de seus desejos, falavam seu nome com o máximo respeito, fazendo dele melodias.
Ela tinha um reino cheio de seguidores fiéis, cavaleiros que iriam arriscar suas vidas para defender sua honra, além de um império bonito, cheio de pessoas que viviam felizes, cantando e dançando todas as vezes em que ela aparecia na frente do castelo enorme.
Ver aqueles sorrisos e o amor que todos carregavam por ela era tão perfeito…
Era tudo o que sempre quis.
— Phoebe?! Phoebe?! Tudo bem aí dentro?! Por favor, abra a porta…! Phoebe…!
“Hein…?”
Seus olhos se abriram pesados. Cada canto de seu corpo doía, ardendo em febre. Qualquer coisa que tocava lhe parecia tão fria.
— Phoebe…! Me responda, filha…!
Não movia um músculo, por mais que tentasse, como se sua força inteira houvesse sido drenada por algo. Podia comparar a experiência inteira a ser um pedaço de carne cozinhando em um ensopado.
— Filha…! Filha!
Incapaz de atender as batidas desesperadas na porta, sentiu sua consciência mais uma vez se esvair em um poço profundo, puxada pelas garras de seu imenso cansaço.
No fundo, desejou ser levada a um lugar melhor, um reino tão bonito quanto aquele.