Uma Cidade Pacata – Nova cidade, Nova vida
Capítulo 4: Afronta à Autoridade
“Talvez eu tenha ido longe demais.”
Ao som de fundo de uma chata aula de química sobre modelos atômicos, um pouco atrás do centro da sala, Ryan refletia nos ocorridos breves, porém decisivos, desenrolados naquela manhã.
“Eu me deixei levar mais cedo. Nunca antes uma coisa que eu fiz teve essa repercussão toda, com todo aquele pessoal gravando.”
Não tinha como focar na aula, estando rodeado de tantos pensamentos.
“E sem falar que o Vincent com toda certeza não vai deixar barato.”
Consequentemente, sua falta de atenção trouxe o oposto do esperado.
— Senhor Savoia, vejo que está prestando bastante atenção... Para estar ignorando a aula desse jeito...!
A mulher cruzou os braços, mantendo raiva no rosto. Elizabeth era uma professora em seus cinquenta, com o típico perfil de educadora rabugenta: cabelos loiros na altura do pescoço, óculos fundo de garrafa, e um senso de moda terrível.
“Em suma, ela é uma Karen”, pensou, controlando-se para não rir.
Carregava aquela imensa verruga na bochecha esquerda, e ensinava tão mal que não era difícil ver os alunos ameaçando dormir no meio do caminho. Atrás de si, o slideshow mostrava, pobremente, a representação de um átomo.
Estava correta e o novato sabia disso, mesmo sem se importar de verdade. Ryan não iria dar satisfações a alguém que ensinava tão mal.
“Não me amola, velha”, pensou, em escárnio. “Eu nem aqui vou ficar aqui por muito tempo.”
Infelizmente não ficaria assim, e logo isso se tornou óbvio, quando Elizabeth andou em passos curtos e rápidos até ele, parando com as mãos nos quadris para mostrar seu sobrepeso.
— Quer ir lá na frente e explicar para todos o que você tanto sabe?
Sua inquisição carregava o tom amargo de fundo que todos tanto odiavam. Olhando superficialmente, via-se alguém desacostumado a ser contrariado e que sempre encontrava disposição para rebaixar e ofender.
Em resposta, ele piscou.
— Não, eu não vou. Manda outro ir.
O silêncio que já caía no ambiente se tornou tão denso que afogou os murmúrios e fofocas, trazendo a atenção geral para os dois.
— Senhor Savoia... — Azeda por dentro, inclinou a cabeça para a direita. — Sabe que isso pode te prejudicar, não é? Não vou aceitar esse tipo de postura nas minhas aulas.
Ryan riu... Apenas por dentro. A mulher deveria estar se roendo de raiva e pensar nisso era muito mais engraçado para ele do que qualquer stand-up comedy. Era hora de agravar isso um pouco.
— Eu disse que não vou. Isso é trabalho seu, e nenhum professor de ensino médio que tenha dois neurônios funcionais dá aulas sobre teoria atômica de Heisenberg.
A matéria era complicada demais de se entender, e tinha plena certeza de que ninguém mais iria saber explicar, mesmo tendo lido sobre. Ao nível de segundo ano, era um absurdo falar nisso.
Mas, nunca que o orgulho da docente se permitiria ser dito isso, o que por certo lado era algo bom.
“Heh! Ela mordeu a isca”, pensou, sorrindo por dentro.
— Senhor Savoia... Eu não vou permitir tamanho desrespeito dentro de minha sala de aula. Se tem algum tipo de reclamação quanto ao meu método de ensino... — encarou o ombro esquerdo do rapaz. — Então eu sugiro que vá falar sobre isso com as autoridades maiores aqui dentro. Veja o que vão te contar.
Perfeito; ideal, para dizer o mínimo. O novato a tentou tanto que, enfim, fez acontecer aquilo que esperava ver. Elizabeth foi confiante demais em seu discurso.
Afinal, ela acabou de firmar contato físico direto com ele.
— Estamos entendidos, Senhor Savoia? — inclinou diagonalmente para a direita, levantando a sobrancelha oposta. — Agora não cause problemas para si mesmo e vá explicar o que te pedi. A frente da sala de aula é toda sua. Não precisa explicar Heisenberg se quiser. Os outros bastam.
A passagem dos centésimos de segundo era acompanhada pelo aumento de sua força de aperto, que embora ainda sutil, ameaçava passar a ser doloroso a qualquer momento.
— E então? O que está esperando? Não vai nos contar, ou será que... — Sorriu, superficialmente. — Você só não sabe? Ora, quem diria! Alguém que parece saber tanto!
— Não, é só que eu acabei de perceber que você apagou a data no quadro, a que o outro professor escreveu.
Uma pergunta idiota, caso se referisse a qualquer outro senão ele.
— Que dia é hoje, professora Elizabeth?
A pergunta boba do novato foi recebida com silêncio pelos espectadores. O que diabos ele estaria esperando com aquilo? Tentar fazer a professora de boba iria acarretar em sérias consequências em seu boletim…
E ele não parecia se importar com isso.
— Parece que eu me esqueci… Pode me contar?
Para uma pergunta estúpida, a resposta devia ser simples, porém, ninguém esperou pelo que estava por vir.
— O dia de hoje...? Puxa... Eu… Eu não faço a mínima ideia...
A mulher cambaleou para trás antes de recuperar seu equilíbrio, levando uma mão à testa para pensar um pouco mais. Por que, de repente, tudo parecia tão confuso?
Era segunda-feira ou terça? Abril ou maio? Que dia era aquele? E isso ao seu redor era uma sala de aula, cheia de seus alunos? Onde vivia? Quantos anos tinha? E, além disso...
Como se chamava?
— Professora, cuidado…!
Uma garota levantou-se de supetão ao notar a falta de estabilidade da professora. Ashley Brown, a representante de classe, desviou das outras cadeiras, estendendo sua mão para a docente ao chão.
— Professora, o que aconteceu?! Está passando mal?! Me diga! — A adolescente amparou as mãos de Elizabeth em suas próprias. — Precisa de ajuda para se levantar?
A consciência da experiente professora de química voava pelos ares do infinito, em algum lugar que fosse, mas muito longe dali. Ver aquele monte de jovens circulando, preocupados, apenas a deixava mais confusa.
— Onde eu estou e quem são vocês?! — questionou, voz trêmula com pânico. — E... Quem sou eu?! E o que estou fazendo aqui?! Não me lembro de nada!
— Calma, professora! Vai dar tudo certo... Eu...
— Me soltem imediatamente! — gritou, histérica.
Saltou e gritou alto, segurando a cabeça com ambas as mãos, em negação veemente de algo. Afogada no surto de adrenalina que a encheu de energias, correu diretamente para fora da sala.
Por alguns vários segundos, ainda foram ouvidos seus agouros dos corredores próximos, mas ninguém se voluntariou para segui-la, nem mesmo a própria Ashley, que só retornou para sua cadeira, mortificada.
— Meu Deus... O que aconteceu com ela? — perguntou uma garota.
— Cara, eu não faço ideia, mas só posso agradecer por ter acabado com a aula chata! — respondeu um garoto, rindo.
— Espero que ela fique bem... — desejou outra garota.
O problema era que, agora, toda atenção se focava no Savoia. Sabiam que não tinha como ser culpa dele, mas ainda assim queriam seu lado da história, dado ser o mais próximo da mulher no momento.
— Ei, Ryan... — Ashley o chamou. — Alguma ideia do que foi... Aquilo...?
— Eu não faço a menor ideia. De repente a sobrancelha dela começou a tremer, ela mostrou os dentes e ficou vermelha... E deu nisso — mentiu. — Deve ter sido o estresse. Ela deveria estar tão mal quanto nós.
A representante ponderou por uns segundos, antes de aceitar com a cabeça a teoria de Ryan. Sabia que Elizabeth sempre se exaltava demais nas aulas, mas nunca teve a coragem de dizer que isso poderia ser prejudicial.
E antes de qualquer coisa, nenhum ali teria a coragem que o novato teve de se opor diretamente a uma das forças mais ameaçadoras da escola.
— Acho que eu concordo com você. Nem ela me parece lá muito satisfeita com o que faz... Tanto que o ensino é... Bem, melhor não falarmos sobre isso — suspirou. — Espero que isso não acabe pegando ruim para você, Ryan.
— Ah... Não se preocupa. São meus problemas, deles cuido eu! — O Savoia balançou sua direita. — Aliás, não é como se ela pudesse só escolher a vida de quem vai arruinar… Ela que tente fazer isso...!
A bela adolescente de cabelos castanhos ondulados riu disso. Ashley sentava à exata esquerda de Ryan, sendo que foi a própria quem escolheu estar ali.
“Ela é o tipo de aluno responsável. Talvez eu possa me aproveitar disso agora?”
Não planejava fazer amizade, mas ao mínimo estabelecer contato com gente assim sempre lhe foi muito benéfico. Ele sempre procurava pelos dispostos a conhecê-lo de primeira em todas as escolas que frequentava, e havia para isso um bom motivo.
Com o tempo, percebeu o padrão que havia nessas interações, onde quase sempre o aluno que demonstrava maior curiosidade em conhecê-lo era o “queridinho do professor”. Com Ashley, era exatamente assim.
— Mas, me diz, Ashley... Você entendeu alguma coisa daquela aula ridícula? Até agora eu não entendi uma palavra sobre a teoria de Heisenberg...
E a óbvia vantagem de se estar perto desses indivíduos era uma só.
— Hmm... Na verdade, não... Eu não acho que ela ensina muito bem, Ryan — jogou as cartas à mesa, revelando o que verdadeiramente pensava. — O ensino dela é muito problemático. Eu geralmente estudo sozinha em casa antes das aulas de segunda. Já sei que não dá para confiar só no que ela diz.
— Entendi... E essa sua estratégia tem funcionado?
— Claro! É assim que mantenho as minhas notas altas! Nunca que eu teria a coragem de dizer que a matéria é desnecessária, igual você fez!
Ryan levantou-se de sua cadeira, estalando o pescoço e os dedos.
— Nossa, que bom para você! Espero de verdade que continue bem assim!
— Obrigada, Ryan! — sorriu. — Se quiser, eu posso te ensinar umas coisinhas... Você quem sabe!
— Ah, talvez eu use dessa sua ajuda...!
E tal benefício era o esforço aplicado em aprender.
Foi um gesto deliberado e com um fundo maldoso, mas Ryan não tinha como se importar menos. Ele desejava conseguir o que queria de Ashley, e isso era o resultado de todos os esforços mentais da garota aplicada.
— Oops...! Minha nossa...! — Ryan “tropeçou” em seus próprios pés.
— Ryan...! — Em resposta, sua companhia reagiu.
Ryan apoiou-se com sucesso nos ombros da menina, usando-os para se estabilizar. A outra parte, em resposta, segurou seus cotovelos, aumentando o apoio do rapaz. Os dois se entreolharam, envergonhados, por um par de segundos antes de cair em leves risos.
— Me desculpa...! Foi o layout da sala, eu juro...! — Ryan tentava falar ao rir baixo. — Eu ainda não tô acostumado com a estrutura...!
— Hahahaha! — riu, cobrindo a boca com a esquerda. — Não esquenta! Eu também já quase levei uma queda igual no meu primeiro dia aqui...!
Os dois trocaram mais alguns segundos de risos e encaradas, com direito a alguns cochichos vindos do fundo da sala, porém a situação se resolveu depressa, e logo Ryan deixou o lugar, rumando para o corredor.
“Consegui o que eu queria. Agora tenho todas as memórias da Ashley. Não vou precisar estudar.”
Ryan Savoia não era um indivíduo normal, já que por baixo da fachada de estudante desinteressado, jazia um poder desconhecido por todos os outros.
“E é melhor que nenhum deles saiba disso.”
A carismática adolescente serviu apenas como artifício, já que seu desejo estava nas lembranças guardadas em sua mente.
Em suma, tinha a capacidade de manipular as memórias de outras pessoas.
Ler, apagar, criar novas, copiar, substituir... Tudo o que se puder imaginar, estando relacionado a lembranças, está diretamente sob seu domínio.
“E tudo o que eu preciso é de um toque. Basta encostar na pessoa por tempo suficiente, e me conecto às memórias dela.”
Ao contrário do que aconteceu com Vincent, a deleção das memórias de Elizabeth foi apenas temporária. Se qualquer coisa, seria mais apropriado afirmar que foram seladas.
“Ela vai voltar a se lembrar de tudo em alguns minutos. O cérebro vai destruir sozinho a barreira fraca que eu firmei.”
Entrou no banheiro vazio. Ainda faltava cerca de uma hora até o intervalo, e em meio a isso, não tinha a menor ideia do que fazer para passar o tempo.
— Não vou me preocupar muito com esse negócio de chamar atenção ou não... Logo eu vou estar fora daqui, sabe-se lá onde.
Olhou-se no espelho. Os últimos anos de sua vida foram marcados por uma inacreditável falta de solidez. Nunca foi permitido criar raízes em nenhum dos lugares em que morou, logo, seria tolice pensar que com Elderlog seria diferente.
E desde que se lembra, tem esse estranho poder. Raras eram as mentes que o jovem não conseguia ler tão bem.
“Um dia só e já me sinto cansado desse lugar…”
Fechou os olhos, tomando nas mãos a corrente de água vinda da torneira, e ao acumular boa porção nas palmas em concha, molhou o rosto.
Não foi tão refrescante quanto o esperado. Era como se a água estivesse um pouco densa demais…
“Esse cheiro… Ferro?”
… Porque não era água.
— Que merda é essa?!
Saltou para trás como quem viu um fantasma de verdade. Coração e respiração aceleraram, e olhos alargaram, acompanhando o corpo trêmulo em puro terror.
Seu rosto estava coberto de sangue.
O líquido vermelho, pesado e malcheiroso deixava a torneira em volume amplo, e as gotas em seu queixo e mãos caíam, corpulentas, batendo no chão quase audivelmente, manchando-o.
— De onde veio esse sangue?!
Não teve tempo de parar para pensar, quando viu uma figura sombria abrir a porta da cabine mais distante entre as quatro. O reflexo do espelho revelou grandes garras escuras irrompendo, rasgando o metal.
A iluminação já fraca se apagou por completo, deixando-o apenas com a luz que entrava por uma quase insignificante vidraça.
Não sabia o que estava acontecendo, mas sua única chance era escapar.
“Eu tenho que... Dar o fora daqui…!”
As explicações podiam esperar. Agora, o necessário era passar por aquela porta, e...
POW!
— Huh... Isso foi um pouco mais fácil do que eu imaginei... Ele desmaiou igual um cabrito!
— Não disse que o livro ajudaria? Agora, vamos levar ele para aquele lugar, e é melhor fazermos rápido. Ele vai acordar logo.
— Na hora. Trouxe a corda?
— Aqui. Peguei no armário da limpeza.
— Beleza, vamos lá, então!