Uma Cidade Pacata – Nova cidade, Nova vida
Capítulo 3: A Amizade Que Existe Entre Nós
— Tá ficando maluco, caramba?! Bateu a cabeça forte demais? Como é que tu não lembra daquela humilhação?!
— Eu sei lá, cacete! Todo mundo tá falando que eu levei uma bica… E eu não lembro de nada! — Desconcertado, o baderneiro coçou os cabelos.
Lembranças confusas de uma manhã cheia de tumulto tiravam seu foco. Bufando, Vincent não sabia para onde olhar, já que, por todos os cantos, escutaria aqueles boatos.
— O novato comeu o Vincent na porrada mesmo!
— Acho que ele bateu a cabeça forte demais…
— Quem será aquele cara? Ele até parece bonito…
Era como se, do começo do dia para lá, sua vida fosse uma mentira, simples ilusão, ou um complô para fazê-lo passar de maluco, porque essa era a única explicação possível.
— Merda, merda, MERDA…! MAS QUE PORRA! — No auge da frustração, socou o armário.
Sua companhia via a enorme bandagem a lhe passar por trás das orelhas e ria. Cheio de escárnio, cruzava os braços sem qualquer paciência.
— Porra, cara… Tu é um merda! — disse o outro baderneiro. — Agora geral vai ficar nessa chacota de nós!
— Eu tenho que detonar aquele filho da puta do Savoia… — suspirou Charles. — Se eu não der um jeito naquele merdinha…
Enquanto conversavam, notaram uma aproximação no corredor, um rapaz de jeito inocente e porte físico baixo, combinado com óculos redondos de lentes grandes e um corte em forma de cuia.
Ou seja, o perfeito objeto para descontar sua raiva do desgraçado que desfigurou sua face.
“Não é o melhor, mas vai adiantar por agora”, pensou, abrindo um sorriso largo. — Ora, ora! Olhe para o que temos aqui!
Sem hesitação, usou o forte braço esquerdo para capturar o frágil jovem e pressioná-lo dolorosamente contra a parede próxima.
Já que sequer entendeu de início, demorou alguns segundos para que captasse o que ocorria consigo. O rapaz abriu os olhos em dor, suplicando pela piedade dos dois.
— Por quê…? Eu… Eu não fiz nada! — falhou em tomar ar, com problemas para falar. — Eu não… Eu só escutei dizerem…!
— Ah, então você tá sabendo também, né?! E quem foi que espalhou?!
O cenho ameaçador de Vincent fez sua sombra contra o mais franzino, causando tremores no frágil corpo. Seus óculos bambearam no rosto, a ponto de quase caírem.
— Eu… Eu não sei…! — entregou tão rápido quanto pôde. — Eu não faço… Ideia de quem foi…!
— Beleza, valeu pela inutilidade, nerdola!
Sem nem mesmo deixá-lo terminar de explicar, ergueu novamente o punho, fechando um soco firme, mirado direto no centro do rosto.
Não adiantaria suplicar, e o loiro se via tão imerso na fúria da humilhação que faria de tudo para espairecer. Apenas um milagre o tiraria dali, e entre acontecer ou não, era melhor só se preparar para perder um dente.
Fechou os olhos, mentalizou a dor de ter o nariz quebrado e rezou para que isso ajudasse.
— Hmm? — De repente, ressoou outra voz. — Espalhando rumores sem falar para mim? Isso aí meio que machuca! Pensei que fôssemos grandes amigos…!
Ainda na postura de proteção, era convencido a tentar ver de novo só para saber se o soco já não tinha acontecido e aquilo era uma alucinação…
Afinal, escutar aquela voz só podia significar que a maior das salvações acabou de chegar.
— Ah, bicho… Vai se foder… Chegou o estraga-rolê…
A companhia de Vincent escarrou, quase o atingindo no sapato. Em resposta, a nova figura abriu um sorriso maroto, mostrando as mãos em um gesto quase amistoso.
Correu os dedos entre os fios negros levemente ondulados, maximizando seu charme antes de dirigir-se a eles.
— Johnny, Johnny… É sério que tu ainda não considera a gente amigos? — sorriu de um jeito largo. — Especialmente depois de tudo o que a gente viveu?
A pobre vítima daquela cólera cega agradecia a toda e qualquer divindade, existente ou não, por aquela aparição, já que a fama daquele indivíduo era conhecida por cada canto da construção.
— Tu não chega perto de mim, Menotte…! É melhor não querer pegar confusão com a gente…! — Johnny se afastou depressa, hesitante em confrontá-lo.
Apenas riu, levando a lateral de seu punho fechado à própria boca. Na concepção do estranho, aquilo era digno de piada.
— Confusão com vocês? — questionou, em sarcasmo. — Na real, eu ainda acho que vocês não sacaram qual é a dessa convivência aqui, entre nós…
Pele pálida, corpo magro e um tanto alto, com certa musculatura a se destacar, invisível por baixo do pesado casaco azul. Seus olhos eram afiados como os de um dragão, vermelhos da cor de sangue vivo e a ferver, imortal.
Falar daquele jeito com aquele cara? Coitados… Não sabiam com o que estavam lidando!
— Primeiro, vamos ao que interessa…
Em milésimos de segundo, moveu ombro e braço para que as alças de sua mochila caíssem, as apanhou com sua esquerda, e em um flash, girou em torno de si mesmo, acertando a lateral esquerda do rosto de Johnny.
— Ugh…! — Sem resistência, o segundo baderneiro beijou o chão.
— Fica frio aí, meu papo é com o grandão.
— Menotte de merda…! Corta essa… Ou ele quem vai levar! — Diante da situação de seu companheiro, Vincent se impôs.
Em pleno desespero, levou as mãos ao pescoço do nerd, fincando unhas e dedos, levando-o a exclamar em sofrimento.
— O que vai fazer agora, seu merdinha?! — provocou, rindo entre as bandagens de seu rosto. — Vem agora, vem!
O Menotte parou, erguendo a sobrancelha esquerda em desinteresse. Ver isso o fez reagir com estranheza.
— É melhor não tentar nada… Sai daqui! — esbravejou, temeroso. — Tá olhando o quê?!
Breves três segundos foram contados com exatidão, e assim, o pálido justiceiro desfez sua pose, apontando com sua direita para o problemático.
— Nada. Eu só tava pensando em como você tá se tremendo de medo… Será que…
— Tremendo de medo?! Eu?! Hah, olha de novo…! — rebateu, trazendo seu refém para mais perto do corpo. — Boa tentativa…!
O loiro, ainda agarrando a garganta do menor, o direcionou para frente de si, usando-o como uma espécie de escudo humano. Dali, o agonizante adolescente tinha a plena visão de tudo.
Mesmo rendido e dolorido, alertou seu salvador do que estava por vir com uma olhada para baixo. O segundo começava a se levantar.
— Menotte... Filho da pu…!
— Eu disse… Para você ficar frio aí…!
Johnny ameaçou agarrá-lo pelo pé esquerdo, impedido por um chute no queixo antes mesmo de levantar o rosto por inteiro, efetivo o bastante para desmaiar tão facilmente.
— Ótimo, de volta aos negócios! — falou, estalando o pescoço. — Eu teria só um pouquinho de medo se fosse você, Vincent… E sabe o porquê?
Apontou para si mesmo, indicando o ombro esquerdo com formatos circulares de seu indicador.
— Não tá sentindo as perninhas dele? — questionou, enigmático. — Parece ser um dos venenosos… Eu me preocuparia, se estivesse no seu lugar.
— Huh…?! — tremeu, arregalando os olhos. — Deixa de piada…! Não tem nada aqui…!
— Sério mesmo? Se quiser ver, olhe por si!
Vincent congelou, entrando em pequenos espasmos. Acima de tudo, passados alguns segundos, ele podia jurar estar sentindo vários pares de pequenas patas ásperas a roçarem contra o tecido de seu casaco, quase alcançando a pele.
Não iria olhar. Definitivamente não daria aquele luxo para o maldito do Mark Menotte. Iria resistir. Nada de olhar para o ombro…
— AAAAH!
Falhou miseravelmente diante da visão de uma enorme centopeia a escalar seu ombro esquerdo em direção ao braço. Seu pânico foi tão intenso que pôde ser ouvido até mesmo no fim daquele corredor.
Saltou para todos os lados, gritando "SAI…! SAI…!", usando de mãos afogadas em descontrole para tirar aquela besta gigantesca de perto de si.
— Eu bem que avisei, né! — estalou os dedos, apontando "arminhas" para ele. — Mas, agora chega a parte boa…
Sinalizou com a cabeça para o rapaz em choque, indicando que corresse. O aviso foi depressa entendido e seguido, deixando os dois sozinhos.
— Beleza, já deu.
Ao ressoar do estalo em sua direita, a mente de Vincent encheu-se de conflito. Foi como mágica — estava, e logo não estava mais — e ao click, a enorme centopéia sumiu sem deixar rastros.
— Mas… COMO ASSIM?!
Não tinha como aquilo ser possível e podia jurar de joelhos! Mesmo que por poucos instantes, sentiu cada mísera fração da experiência, desde o peso, até o odor de esgoto vindo da criatura.
Não havia explicação plausível para o sumiço de algo tão concreto, ainda mais assim, bem diante de seus olhos.
— Então, cara… Eu andei sabendo dessa história da bica que tu levou… E eu tô meio decepcionado de ouvir isso por terceiros, sabia?
Assombrado por inteiro, perdeu a força nos joelhos e quadris, batendo de costas na parede. O impacto disso foi escutado alguns metros além dali, de tão forte que foi.
— Então… Se importa em explicar, ou… — Mark riu, seus olhos brilhando como brasas. — Será que você tá vendo alguma coisa por aí, tipo um fantasma, uma alma… Tipo, atrás de mim?
— AAAAH!
Pelos próximos três segundos, o forte loiro gritou a plenos pulmões, antes de correr com tudo que tinha. Quase caiu outra vez, mas de algum jeito se reergueu e fugiu.
— Pô, que galera chata! — torceu o rosto em desagrado. — Eu só queria saber da conversa que tá todo mundo discutindo!
Deu de ombros para si mesmo, suspirando, e sem perder tempo, estalou a coluna para ambos os lados, o que resultou em sons horríveis.
— E aí, gostou? — perguntou, sem nem mesmo encarar seu interlocutor. — Eu sei que você tava vendo… Me dá uma nota aí! Como eu fui, de zero a dez?
— Foi um valor negativo. O quanto você é inconveniente não pode ser mensurado.
Os dois decidiram ignorar totalmente o fato de um estudante desmaiado estar a menos de dois metros de seus pés, meramente se olhando de um jeito um tanto neutro, e que no fim das contas, não passava do habitual.
— Não leu a mensagem que eu te mandei? Lembro bem de ter dito que era uma situação de urgência, e aqui está você perdendo tempo precioso, brincando.
A garota de cabelos castanhos mantidos juntos em um elegante rabo-de-cavalo encarou Mark de braços cruzados, demandando explicações.
— Ah, relaxa! Agora a gente já tá aqui, então pode mandar o papo. O que é tão importante assim?
Levou a mão ao rosto e negou, em decepção. Vê-lo tão facilmente desfazer qualquer ameaça de punição por ignorar o combinado a fazia questionar o motivo de sequer ter sugerido um, em primeiro lugar.
— Francamente… — fechou os afiados olhos rosados por um par de segundos. — Eu já não sei mais o que faço com você.
— Pode começar a parar de drama e me contar logo o que tá acontecendo, não acha? — levantou uma sobrancelha, tentando parecer óbvio. — Para alguém tão inteligente, não saber disso…
A jovem soltou outra vez seu ar. A convivência com o Menotte a ensinou que responder a qualquer coisa dita por ele apenas traria uma resposta estupidamente inteligente de volta. Era um jogo onde não se podia ganhar.
Não havia o que fazer além de jogar por suas regras, infelizmente.
— Então… — largou os braços antes cruzados, e analisou os arredores. — Problema dos grandes.
Se certificou de que ninguém os escutaria, puxando o rapaz para mais longe no corredor, até os banheiros, onde tinham poucos estudantes. Ali, agarrou seu ombro e se aproximou.
— Hmm, quanta agressividade! Não desgosto disso…!
— Sem brincadeiras, Mark! — repudiou, por pouco não o socando. — Não tenho plena certeza, mas acho que encontrei mais um… Sabe essa conversa com o Vincent ter levado uma sova?
— Sei por cima, mas o que você quer dizer com isso? Não me diga que…
— Isso mesmo que acabou de imaginar… — finalizou. — Tem mais um nessa escola… Outro além de nós.
Mark tomou seu tempo para mastigar a informação. Com a direita ao queixo, olhava para o chão branco, sério de verdade pela primeira vez no dia.
Focou em um ponto qualquer, e enfim, a verdade por trás de tudo espontaneamente se revelou.
— Lira… — revelou o nome da garota. — Você tem mesmo certeza disso aí?
Era menos uma questão de duvidar de sua palavra, e mais uma de checagem, afinal, uma informação daquele cunho não corria por aí todos os dias.
— Completa — respondeu, sem hesitar —, afinal, o que justifica se esquecer seletivamente de um conjunto altamente específico de lembranças depois de tomar um soco não tão forte assim de um maluco qualquer que nunca vimos antes?
— Você acha que esse tal de Savoia fez algo com as memórias do Vincent…? É isso?
— Eu não acho… Tenho total certeza disso. Vi com meus dois olhos — rebateu, em categoria. — Isso é trabalho nosso, Mark. Temos que ir atrás desse cara, antes que fique feio.
Aquilo mudava as coisas, e muito. Até então, nunca tiveram de lidar com tal situação, mas fazia parte do destino a sua ocorrência eventual. Não tinha como existir apenas eles dois de “pessoas especiais” no mundo.
Mark Menotte e sua companhia, Lira, eram indivíduos abençoados em um nível mais concreto que se tenha por hábito dizer. Por trás da fachada de meros adolescentes comuns, jazia uma peculiaridade afiada.
E ver tudo isso ser potencialmente ameaçado pela chegada desse tal Savoia era preocupante.
— Lira, pega o livro de física quântica… Aquele bem grossão.
— Não precisa nem falar, já está comigo na bolsa.
— Ótimo! — assentiu Mark. — Agora… Será que a gente chama um socorro para esse cara aqui…?
Decepcionada, Lira se estapeou na face, balançando em negação sua cabeça.
— Dói em mim dizer que não sei mais o que tentar com você.