Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne

Revisão: TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – Nova cidade, Nova vida

Capítulo 11: A Realidade Bate Na Porta

— Então, tá se sentindo um pouquinho melhor agora? Quer dizer, tu tava tão pra baixo antes! Será que dar umas porradas num pessoal não te ajudou a espairecer?

Ele não podia acreditar que escutou essa pergunta e, menos ainda, de ter sido dirigida à sua pessoa. Processar isso o fazia pensar no quanto Mark era um maluco total.

— Melhor…? — perguntou, mostrando os dentes. — Acha que eu me senti melhor por ter feito aquilo…?

O rapaz negro os olhou com lentes púrpuras brilhando em uma emoção ainda mais profunda do que medo ou simples tristeza: isso era desapontamento.

— Vocês dois são malucos… Eu nunca que ia ter feito uma coisa daquela…! Desmaiar todos os funcionários e apagar as memórias?! Bater nos clientes da loja?! Destruir os computadores com chutes…?!

Repetia o gesto de negação, andando para trás no estacionamento do mercado. 

O EveryMart foi deixado uma zona de guerra pelos ataques de Mark. Por todos os cantos, telas estragadas pelas boladas, pessoas desmaiadas e sangrando, dano ao patrimônio geral…

— Eu nem sei o que dizer disso… — negou com mais força, enojado. — Vocês são loucos completos… E se aquelas pessoas tivessem morrido por causa dessa brincadeira idiota?!

Dizer que estava bravo seria um eufemismo. Foi um milagre terem conseguido sair sem muitos problemas ou acusações, mas isso não tirava o peso do que acabou de ocorrer ali dentro.

— Eu sabia que vocês não eram boa gente… Eu não vou mais participar dessa loucura. Isso foi um erro… Vir para essa cidade em si foi um erro terrível…!

Pela primeira vez teve a sensação contrária do que lhe era tão habitual, onde ao invés de ficar e parar em um lugar para chamar de lar, desejava mais do que tudo escapar e deixar tudo.

— Eu posso não ser a pessoa mais santa e perfeita com esses poderes, mas não me coloquem no mesmo nível que vocês…! Eu não me importo se vão se opor a mim ou me tratar como inimigo, mas isso não vai ficar assim… Não vou cooperar com essa merda!

Ryan ao menos se orgulhava de sua capacidade de aceitar quando errava em algo e que as coisas tinham limites, conceito que aquele par não aparentava ter a capacidade de sequer ver.

Não se incomodava com passar o resto de seus — com sucesso poucos — dias em Elderlog. Havia um problema fundamental com fazer esse tipo de coisa e com isso não cooperaria.

— Logo eu vou estar longe daqui, de qualquer forma…! Façam o que diabos bem quiserem, mas eu não vou estar ajudando uma dupla de sociopatas…!

No auge dos sentimentos mistos, agarrou sua bicicleta, desesperado ao escolher a chave correta, que por pouco caiu de sua mão. Tudo o que mais queria era sair de perto do casal de loucos.

Não tinha certeza se seria capaz de vencer a grande velocidade de Mark sobre as duas rodas, mas iria ao menos tentar.

— Não pense que vai a lugar nenhum, Ryan Savoia.

“Essa merda de novo…!”

Algumas bolhas coloridas se acumularam ao seu redor. Ele tentou evitá-las, mas, sem sucesso. Um simples toque e estouravam, enchendo-o de agonia.

Agarrou o peito, consumido pelo aperto em seu coração, impedido de respirar.

— Parece que fomos mal interpretados, então me permita falar isso de novo. Irei te dar esse luxo, por mais que eu odeie ter que me repetir para incompetentes.

Se remoía por dentro, entorpecido pelo desejo de partir com tudo o que tinha para cima daquela garota metida a esperta e ensiná-la de vez que esse não era jeito de se falar com alguém, seja lá quem fosse.

Porém, ao mesmo tempo, era invadido por um sentimento de terror tão profundo que se fazia indescritível em meras palavras, emanando da própria presença de sua pessoa, diante dele.

— Quando dissemos que iríamos formar um trio, não estávamos falando de sermos amiguinhos que fazem coisinhas fofas juntos. Eu não confio em você o bastante para ter essa proximidade e, agora, menos ainda.

— Eu… Não me importo… Com o que você… Pensa…

Vacilava perante o congelamento emocional. Seu coração batia restrito, dando sinais de estar pronto para entregar-se.

— Você nos desapontou muito nesse teste. Não tem capacidade de resolução de problemas com imediatismo, não sabe agir quando pressionado e, principalmente, é nada proativo, precisando ser mandado por aí para fazer a coisa mais simples.

O modo como a garota levou sua mão à testa exalou zombaria, enchendo-o de ainda mais ódio de tudo o que ouvia.

— Francamente… Por que tive esperanças de que um moleque do seu naipe iria ser capaz de alguma coisa?

Não acreditava no que entendia sair daquela boca.

— Ei…

Seus lábios tremiam, a alma lutando para se debater dentre as mãos de dedos longos e finos, que a mantinham presa. 

Contra todas as chances, buscava seu ar, acumulando apenas o suficiente para dar mais um grito.

— Ei…! Como assim um teste…? COMO ASSIM AQUILO TUDO FOI SÓ UMA MALDITA PROVA PARA ME TESTAR?!

— Ohoo! — Mark assistia de canto, comendo uma das várias barras que roubou. — Mas que drama é esse…! Tá emocionante demais! Continuem, continuem…!

Agora eles só estavam se divertindo com a situação, tratando algo tão sério a nível de brincadeira. A partir daquele ponto, qualquer coisa que falassem sobre sua imaturidade seria pura hipocrisia.

Lira, por outro lado, piscou.

— Era uma prova importante e você falhou amargamente nela. Ryan Savoia, por acaso não percebe em que tipo de águas o seu barquinho furado está navegando agora?

Caminhou na direção dele, intimidando-o. Com sua aproximação, viu novas bolhas em variados tons de vermelho, a surgirem do nada. Em um turbilhão, cada esfera esvoaçante o rodeou.

O brilho rosado dos olhos da Suzuki perfurava sua existência, rasgando seu espírito ao meio e o submetendo a torturas. Não adiantava mais tentar lutar.

— Você lembra do que eu disse mais cedo, não lembra?

Chutou o quadro da bicicleta de Ryan, fazendo-o cair diretamente no chão. O impacto contra o chão de concreto liso arranhou o metal, arruinando a pintura escura do velho veículo recreativo.

— Quando as pessoas estão falando com você… Você as olha nos olhos!

A menina de aparência asiática e rosto esculpido aos moldes de uma boneca de porcelana agarrou firmemente o queixo dele com sua destra, de repente mostrando ter força suficiente para fazer doer.

O contato das duas visões catalisou a experiência e, logo, não sentia mais qualquer parte de seu corpo.

— Garotinho mimado… Não viveu nada. O que você tem feito por esse tempo todo? Por esses dezessete anos? O que você tem feito?

Seu tom era amargo e descontrolado, escapando pelos cantos de sua blindagem aparentemente inquebrável. As rachaduras ao fim de cada palavra, o modo como sua voz falhava um pouco mais…

— Até hoje de manhã pensava nisso como um luxo que só você deveria ter, algo para se brincar e fazer besteira por aí. Que pena que não pôde continuar assim… Que pena que esses dois sociopatas apareceram na sua vida para arruinar tudo, não é?

Rostos próximos, contudo incapaz de sentir as baforadas lançadas por suas palavras repletas de ódio. 

— Eu não preciso saber ler a sua mente para saber que já chegou à uma conclusão sobre isso tudo… Mas, o que você planeja fazer?

Inclinou para a direita, sem piscar.

— Nada — sussurrou. — Porque ia sentar e reclamar, chorar e repetir sobre o quanto a vida acabou de se tornar tão ruim e injusta agora que outras crianças têm o mesmo brinquedo que você.

Desgosto — era isso que seus olhos refletiam —, o mais puro nojo pela imagem decadente de Ryan Savoia.

— Malditos sejam esses dois sociopatas, não? Como eles se atrevem a fazer isso com uma pessoa tão inocente… Que pessoas horríveis, não?

Um segundo… Dois segundos do silêncio mais puro…

— NÃO FOI UMA PERGUNTA RETÓRICA!

O som de um tapa correu ao ar livre pelo estacionamento, misturando-se ao sopro do vento e das folhas. A fúria de toda a natureza ao redor pareceu ter sido evocada para o golpe.

— Me diz como vai viver a sua vidinha de merda, sabendo que a cada canto pode ter alguém pronto para acabar com tudo por pura diversão?! Me diz o que vai pensar quando alguém invadir um lugar onde você estiver, render todas as pessoas dentro e você ser o único que pode fazer alguma coisa?! Vai escolher chorar e reclamar sobre como as coisas não deveriam ser assim?! Me responda!

Mark quase deixou cair sua terceira barra do dia, de repente não sentindo mais tanta vontade de continuar saboreando.

— Mas você tinha que ser tão miserável… No fim, seria melhor não termos nos envolvido e deixado alguém te matar, eventualmente. Nada disso valeu a pena! Você é um peso morto! Aquela situação no mercado poderia ser resolvida tão mais facilmente… E nem isso você fez!

Lira cozinhava em raiva, seu rosto fervendo em rubro vivo e pulsante. Isso não era bom sinal.

— Lira, por favor se acalma. Acho que ele já entendeu. — Mark interveio, se colocando entre os dois. — Por favor, Lira…

— Eu não acabei com ele ainda! — proclamou em ódio. — Eu vou colocar um cérebro na cabeça desse merdinha, de um jeito ou de outro!

— Lira…! — O rapaz pálido segurou seus ombros. — Você vai perder o controle desse jeito! Olha, eu mesmo repreendo ele… Só fica calma, por favor.

Mark puxou a garota para um abraço firme, colocando-a confortavelmente contra seu peito. Como se isso já não fosse peculiar o suficiente, a reação a seguir foi de tirar o ar, no sentido mais literal.

Uma rajada colérica de socos pesados saiu das mãos dela, todos acertando vários pontos das costas dele.

— Tá tudo bem… Tá tudo bem — dizia ele em conforto, mesmo tremendo de dor.

Cada golpe individual fazia barulho suficiente para ser escutado a metros de distância, ecoando por dentro de sua caixa torácica e, mesmo assim, o Menotte não parava de prendê-la contra seu peito.

— Tá tudo bem. Respira… Inspira e expira… Calma… Eu tô aqui, tá bom? Ele não vai te irritar mais. Eu não vou deixar.

Era incrível o modo como ele mostrava tanto cuidado e paciência, mesmo dolorido em tantos pontos que nem podia contar.

Enfim parou, correspondendo ao abraço de uma maneira normal, envolvendo os próprios braços em torno dele.

— Tá se sentindo melhor? Vai, eu te compro um sorvete na volta para a sua casa. Fica tranquila, tá bom?

Não viu direito, mas supôs que Mark acariciou os cabelos de Lira.

— E quanto a você… Ryan, a gente vai ter uma conversinha. Só eu e você, agora.

A encarada o disse tudo o que precisava saber.

— Eu me considero um cara bacana, sabia? De nós dois, eu sou o que perdoa.

Foi questão de um piscar de olhos, e Mark “teleportou” para bem diante de onde estava, sumindo na forma de um blip impossível a um humano comum.

— Mas também… E eu acho que você já sabe disso…

Em uma demonstração de absoluta impiedade, ergueu Ryan ao alto pela gola de seu casaco preto, trazendo-o para mais perto, banhando-o com o escarlate profundo de sua encarada.

Sua fala era tranquila e compassada, séria demais para ter vindo da mesma pessoa que fazia costumeiramente tantas piadas idiotas e brincadeiras.

— Também sou o que bate.

GAH…!

O soco no centro do estômago lhe arrancou todo o ar, fazendo voltar de repente toda a consciência em torpor que o abandonou nos últimos segundos.

— Olha aqui, seu merda, tu tinha um único trabalho!

O pressionou pelo pescoço até suas costas encostarem na árvore cuja sombra os protegia do fraco sol da tarde.

— Vou te passar a moral, seu filho da puta… Ou tu muda esse jeito ou a gente te deixa para morrer! Prefere o quê?!

Ninguém o daria a força que mostrava naquele momento — não com aqueles braços finos e mãos magras —, mas facilmente erguia o corpo inteiro dele um par de centímetros acima do chão.

— Pensa, Ryan! Pensa! E vê se te inteira da visão, seu merda…! Tu precisa da gente se quiser continuar vivendo nessa porra! Ou tu acha mesmo que tem só a gente com esses poderes por aí?! Caralho, que gênio tu é de não ter pensado na possibilidade disso!

— Eu… — ameaçou falar. — Eu não… Vou… Ficar por… Aqui…

— Ah, sério? — fitou, zombador. — E como tu me explica o fato de a matrícula de três anos inteiros terem sido feitos no teu registro?

Foi incrível para o mais pálido ver como o mais novo residente da cidade derreteu como gelatina ao ouvir a notícia.

— Não…! — riu em ironia, revirando os olhos. — Não me diz que tu pensou mesmo que ia se livrar da gente assim? Só indo para outra cidade daqui há pouco, para continuar fazendo o que quiser? Más notícias, lindão… Elderlog vai ser tua casa pelo menos até o fim do ensino médio…!

“Joanne… Eu não acredito”, pensou, a mente correndo a mil. “Eu não acredito que isso tinha que ser verdade logo agora…!”

Por que, de todas as vezes em que foram prometidos isso, tinha que ser logo ali?

Foram tantas as vezes em que ele e Hannah foram prometidos um lar, só para terem que sair dali por conta de algum imprevisto. Não tinha como ser diferente disso agora, certo?

— Significa que tu vai ter que aguentar a gente, seja por bem ou por mal — finalizou. — E os outros que vierem também, porque eles com certeza tão por aí, só esperando para fazer isso aqui, ó!

Acertou um tapa relativamente leve em seu rosto, que não reclamou tanto… Não que tivesse o direito a isso.

— Acorda que isso aqui é o mundo, cria. A gente vai fazer de tudo para impedir que outros façam o que a gente fez naquela loja. Isso aqui foi só para te dar o gostinho da realidade.

Um segundo de silêncio se passou entre eles.

— Olha, todos os teus inúmeros defeitos sendo desconsiderados, tu ainda parece ser um cara legal. Não vai querer queimar com a gente, mano… Eu tô falando!

Foi uma mudança quase inacreditável em todo o contexto, quando Mark de repente abriu seu punho em uma mão inofensiva que o ajudaria a se levantar.

— A gente sabe que foi errado… E não, a gente não planeja repetir aquilo ou qualquer outra coisa parecida. Os funcionários vão ficar de boa, os clientes também e eu acho que a EveryMart poderia investir numas máquinas melhores!

Estendeu um pouco mais o braço, chamando-o para aceitar.

— Chega mais. Eu não quero te ver por aí e ficar tendo que lembrar que tu pode se tornar um inimigo nosso. Dá uma certa pena de te bater.

Era mesmo injusto, não? Nada ali correria do seu jeito.

As dores no lado direito de seu rosto e no centro da barriga o traziam para o chão — ambos literal e figurativamente —, corroendo em sua consciência, pouco a pouco.

Que outra escolha ele teria? Ou melhor…

“Isso nunca foi uma escolha.”

Ryan limpou o traço de saliva no canto da boca na manga do casaco. Aos poucos, viu-se tirar os olhos do chão, sendo conduzido por eles até o semblante sorridente de Mark.

Era, talvez, demais para uma alma como a dele, justo prestes a ser vendida em um acordo demoníaco.

— Heh! Boa escolha.

Foi puxado para cima com um solavanco único e doloroso. Foi algo seco e frio.

— Vamos pra casa. Alguém ali deve ter acordado e já deve estar se perguntando o que aconteceu com a loja.

Pegou sua mochila, desacorrentando a bicicleta da barra metálica em amarelo.

— Partiu vender essa bagaça toda por uns 150% do preço! A garotada não vai esperar para gastar dinheiro onde for mais barato se der para arranjar dentro da escola!

Ainda tinha que se acostumar com aquelas súbitas mudanças de humor, além de que muito demoraria até as coisas fazerem um semblante de sentido.

“Onde diabos eu acabei de me colocar…?”

Não. Ao menos agora, ele sabia que a pergunta certa a se fazer era outra.

— Como eu pude ficar tanto tempo de olhos fechados para isso?

Seus murmúrios se perderam no ar da pequena cidade, levados para longe pelo vento gélido e cruel.

— Ow, Ryan! Tu não vai vir?

Injusto. Muito injusto.

— Indo — respondeu, estoico.

Pegou sua bicicleta e quando subiu, ouviu algo peculiar à distância: um carro de polícia.

— Mas não parece estar chegando perto…

Na realidade, era fácil notar que se distanciava cada vez mais de onde os três estavam. Seja lá o que fosse, não era por eles que buscava.



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