Uma Cidade Pacata – Nova cidade, Nova vida
Capítulo 12: Buraco Na Parede
Era um novo dia na calma e pacata Elderlog. Como em todos os outros, o sol lutava contra as nuvens cinzentas em um cabo de guerra injusto, se contorcendo entre os barcos, dragões e carneirinhos, tentando injetar seu calor sobre a terra, que tanto precisava.
O vento frio cortava as ruas sem movimento, com carros aqui e ali, esporádicos. A maioria dos residentes nem se incomodava em olhar para os dois lados antes de passar, graças a isso.
Ainda assim, em meio a tanta calma surgia uma perturbação e, o que prometia ser apenas mais uma quinta-feira, logo mostraria suas sombras para a população já tão assustada da localidade.
— A gente tá chegando, segura aí só mais um pouquinho. É uma descida agora, então me abraça bem, se não quiser se esparramar no chão.
Ao seu pedido, a garota envolveu os braços em torno dele, em silêncio. Pensou em falar algo ou colocar um comentário zombador no meio, mas logo desistiu da ideia. Foi uma solicitação séria.
— Segura firme…!
Um sorriso maluco abriu em seus lábios, conforme acumulava aceleração inacreditável para um veículo tão frágil. Em segundos, cobriram mais de duzentos metros de declive, bombardeados pela ventania gélida.
Era só dobrar mais uma rua à esquerda, a Rowan Street.
— Essa rua me passa uma atmosfera estranha… — vocalizou a garota, analisando as casas ao redor.
A Rowan Street era um lugar um tanto peculiar em comparação com o restante da cidade. De certo modo, podia-se dizer que era ali que o canto começava a ficar tenso.
As casas não eram muito diferentes em organização e arquitetura, mas o ambiente em si era muito mais escuro por conta da disputa com as árvores, cenário bem diferente das ruas organizadas das vias mais centrais e próximas de Oak Street.
O chão era sujo de folhas secas em poças de chuva, dando um cheiro putrefato e azedo quase perpétuo ao ar. Estar ali por muito tempo durante o outono irritaria o nariz de qualquer um.
Grande parte das calçadas tinham rachaduras causadas pelas raízes, que por vezes até mesmo apareciam ao ar livre, quebrando pedra e asfalto como se fossem nada.
Elderlog podia não ser um grande centro urbano, mas se fosse, ali seria a periferia.
— É… Eu só ando aqui de noite às vezes porque eu sou doido mesmo, mas não recomendo pra ninguém. Esses carvalhos crescidos tapam toda a iluminação!
Eram plenas 9h42 e os dois sabiam que deveriam estar na escola, embora não se importassem com isso, já que algo muito mais importante do que algumas aulas chatas acabou de acontecer.
— Acha que isso deve ter algum envolvimento com o chamado à polícia na segunda?
Os três carros da polícia podiam ser vistos estacionados na frente da casa e no momento, todos os poucos transeuntes ficavam detrás da faixa amarela que delimitou a cena de crime.
— Não sei, mas vamos descobrir. Essa me parece promissora.
Parou a bicicleta, mascarando-a por trás de um cipreste coincidentemente bem colocado. O tronco espalhado e tortuoso faria o trabalho de esconder perfeitamente.
— Beleza, agora para o plano… A gente vai até lá, eu passo manteiga nos caras, você me ajuda com isso e nós dois brincamos de sermos do FBI por uns minutos… Isso tá de boa contigo?
— Quanto mais rápido terminarmos, melhor.
— Ah? Planejando voltar para a escola? Ainda preocupada com termos deixado ele sozinho?
Lira cruzou seus braços caracteristicamente, deixando seu rosto se moldar em desgosto por causa da pergunta.
— Quem sabe? — esforçou-se para conter a raiva. — Eu ainda não consigo confiar naquele garoto e não vou fazer isso tão cedo!
— Heh! — Mark riu, arrumando seus cabelos negros. — Olha, eu acho que ele vai ficar bem, especialmente depois daquele susto que tu deu nele! E aliás, ele já ficou quieto por dois dias.
Levou o indicador direito ao queixo, deixando-se sorver em pensamentos. Na sua cabeça, aperfeiçoava o último e principal passo do plano.
— Uh… Quanto a isso…
A Suzuki parecia querer dizer algo, mas sua mente não encontrava as palavras. No meio das folhas secas, seus pés dançaram brevemente de um jeito tímido, tentando caçar os termos adequados.
— Me desculpa por ter te batido para descontar a raiva…
Ver a sempre séria Lira Suzuki demonstrar qualquer embaraço renderia uma fotografia.
Estava ocupado demais preparando os detalhes finais, mas, uma olhada para ela revelaria uma gelatina em forma humana.
— Ah, fica de boa com isso. Eu aguento — disse, ainda pensando. — Fica mal com isso não! Foi melhor do que você ter matado ele de um ataque cardíaco.
O jeito como ele sempre tratava aquilo como algo tão simples sempre a tirou do sério. E se tivesse se machucado seriamente com os socos nas costas?
Ou melhor… Se algo pior acontecesse, tudo por causa de seus poderes descontrolados?
— Você deveria ter mais cuidado com a sua própria vida… — disse ela, murmurando.
— Claro, claro… Agora vamos! Eu já sei como é que a gente vai fazer… Segura isso aqui!
Entregou nas mãos dela um pedaço comum de papel retangular, do tamanho e da largura de uma palma.
— E isso é…?
— Um distintivo do FBI! — explicou, entusiasta. — Mostre na frente deles e eu faço a mágica! Vou transformar nós dois em agentes especiais em um piscar de olhos!
Focou em sua respiração por uns segundos, fechando os olhos para aumentar sua concentração. Do fundo de sua pessoa, puxou algo: um poder tão misterioso, mas perfeitamente controlado.
Os abriu, revelando uma explosão de rubro da cor de metal derretido. Seus olhos pulsaram em brilho quente e hostil e, aos poucos, as coisas mudavam.
Não no ambiente, mas sim, neles mesmos.
— E aí, gostou? — perguntou, confiante em seus resultados.
A Suzuki analisou por vários segundos o que acabou de acontecer. Não sentia nenhuma diferença em seu corpo, mas a imagem era o que importava.
Agora, os dois usavam roupas formais perfeitamente conceitualizadas.
— Suas ilusões melhoraram — afirmou em via de fato.
— É, eu tô estudando um pouco sobre essas coisas em casa, tentando criar ilusões mais convincentes.
Pareciam fidedignos investigadores, com direito ao terno e gravata, o pedaço de papel comum adquirindo o aspecto de um documento de identificação ideal.
— Essa ilusão acabou sendo um pouco menos complicada do que eu tinha pensado. Vai dar para manter assim por um bom tempo… Vambora?
Lira acenou em confirmação, seguindo seu passo decidido. Por um momento durante o caminho, parou para admirar o quanto a postura dele mudava para algo muito mais sério nessas ocasiões.
Não fazia mais do que dois meses desde que adquiriram os poderes, mas desde então, ela tem acompanhado Mark em sua jornada para descobrir mais sobre a estranha série de crimes na cidade.
Ele nunca deu uma resposta exata para estar fazendo isso, sempre evitando entrar muito no assunto, contudo, era fácil para ela ver o quanto suas intenções eram genuínas.
— Beleza, vamos chegar. Tá com o distintivo na mão?
Acenou novamente, desta vez focando no pequeno grupo de três policiais a conversarem com um homem idoso sobre o que quer que tenha acontecido naquela casa.
— Pega isso aqui também e coloca.
Foi tirada do foco pela mão de Mark, entregando um par de óculos escuros comuns.
— Eu não vou usar isso.
— Tá bom, então.
Mais uma vez uma resposta direta, sem brincadeiras ou qualquer piada conveniente.
— Isso aqui não é nenhum filme… — disse ele, colocando seu par. — Você coloca para criar uma imagem, não para ficar parecendo o James Bond.
Apontou com a cabeça para o outro lado da rua.
— É a nossa hora.
Os passos de Mark eram firmes e decididos, cheios de máxima confiança. Seguiu assim até ser notado pelos três policiais, deixando clara a função dos óculos.
— Problemas por aqui… Estou certo, senhores?
Logo ao ser visto, puxou fora os óculos e os guardou no bolso, arrumando um pouco os cabelos em um gesto gracioso.
— Mais um dia de trabalho exaustivo e notícias nada boas, eu vejo — parou frente a eles. — Investigadores Menotte e Suzuki ao seu dispor. Bom dia, oficiais.
Os dois mostraram seus distintivos falsos, antes que ele seguisse guiando a conversa.
— O FBI chegou bem rápido dessa vez… Eu me pergunto qual foi a mudança? — perguntou um dos policiais.
— Considerando o quanto temos recebido relatos de casos vindos dessa região, é natural que isso acenda um sinal vermelho, oficial Jackson — rebateu depressa. — São crimes demais e em um período muito curto, para uma cidade tão pequena.
A hostilidade de Jackson logo se viu suprimida pela resposta assertiva de Mark. Por um momento, o homem pareceu estar engolindo uma pedra, recolhendo-se em um canto mental de covardia.
— Agradecemos a vinda rápida, investigador. Não pensava que fossem mandar alguém tão rápido! — falou o segundo, de nome “Paul” estampado no fardamento.
— Bem, bem… Posso afirmar que já estávamos por perto desde o início da semana, oficial Paul. Como disse, essa cidade tem chamado uma atenção especial…
O rapaz dirigiu uma encarada para a porta da casa, que se encontrava aberta.
— Seriam tão cordiais de nos explicar que tipo de monstro veremos lá dentro, antes de entrarmos?
— É mais um daqueles casos esquisitos… Uma família morta sob circunstâncias tão estranhas que nem sabemos ao certo como aconteceu.
A última oficial era uma mulher chamada Charlene. Em passo rápido, se prontificou, pondo-se um pouco a frente em direção à casa.
— Eu acho que seria mais apropriado que vocês vissem por si próprios…
Com a autorização geral por meio de um aceno coletivo, o par de “investigadores” deu entrada na área isolada, passando por cima da fita amarela.
— É mesmo tão ruim assim a ponto de não caber em palavras, oficial Charlene? — perguntou, levantando a sobrancelha. — É assustador o quanto nossa lógica tem falhado em justificar esses acontecimentos recentes.
A mulher fardada desacelerou sutilmente, olhando o chão. Continuou assim até ver os degraus de madeira rústica e detalhes em branco, que separavam a casa do chão sobre o qual foi construída.
— É assombroso, investigador… Sou nova no ramo e posso ainda ser inexperiente, mas duvido que qualquer um, por mais vivência que tenha, seja capaz de explicar o que diabos aconteceu nessa casa.
Longe da observação dela, o par de adolescentes infiltrados no caso trocou uma encarada com sentido óbvio.
— Entendo — acenou. — Então por favor, guie o caminho!
Charlene acenou positivamente para os dois, tomando seus passos acima nos degraus.
— Sigam-me.
Era um caso para eles e ambos podiam concluir isso antes mesmo de entrar na casa.
— Alguma ideia sobre a casa, colega?
Essa foi a primeira vez na conversa em que ele ameaçou brincar um pouco.
— Eu vejo traços de algumas emoções negativas. — Lira citou. — Não é nada muito excessivo, ao menos, por enquanto. Deve ser mais intenso no interior da casa.
Mark acenou, confiando no relatório dado pela capacidade especial de sua parceira. O brilho rosado nos olhos dela nunca falhou em detectar a presença de emoções.
Ao contrário do que se costuma imaginar, emoções não são apenas estados psíquicos. Cada uma se manifesta de forma diferente, afetando ambientes e objetos ao redor de sua fonte.
— Sabe, às vezes eu fico pensando em como é conveniente demais que justo você veja essas coisas…
Aos olhos da Suzuki, tomavam a forma de névoas e fumaças de diferentes cores e sensações. O medo era cinzento, pesado e frio ao toque; a felicidade, amarelada e quente, além de muito leve.
E o sofrimento escorria pelas paredes daquela residência na forma de uma corpulenta gosma roxa-escura, de cheiro indistinto e que não se parecia com nada em particular.
Mas, ainda assim, era horrível e agressivo ao olfato.
— Fica pior a partir da sala de estar — murmurou para ele. — Começou aqui.
Era isso o que se via ao redor. A partir desse ponto, se iniciavam os primeiros sinais de luta corporal e destruição.
— Acreditamos que possa ter ocorrido algum tipo de conflito inicial por aqui — disse Charlene.
A sala de estar foi transformada no resultado da passagem de um furacão — televisão jogada no tapete com a tela cheia de rachaduras e buracos, mobília destruída espalhando vidraça por cada centímetro do chão, além de várias marcas semelhantes a cortes de faca e tiros arruinando o papel de parede.
Uma volumosa linha de sangue seco seguia até a segunda porta também aberta. Dali, já era possível ver, além dos cones numerados, uma cena bizarra.
— Mas, a coisa aconteceu aqui…
Os três entraram na cozinha, o espaço onde tudo aconteceu. Estar ali deixava Charlene claramente desconcertada, evocando a necessidade da presença de Lira.
Ativou seu próprio poder, moldando em sua mão uma única bolha amarela. Lentamente, o projétil invisível aos olhos da oficial voou até tocar sua pele, suprimindo o horror.
Tal reação não era para menos, todavia.
— Estão chamando essa série de casos de “O Perfurador de Elderlog” — começou, suspirando. — A hipótese mais racional que temos é que seja algum maníaco com fascinação por… Isso aí…
— Entendi. Obrigado pela explicação, oficial Charlene. É mesmo uma cena de fazer o espírito saltar para fora…
Para a surpresa de Lira, Mark puxou do bolso um par de luvas cirúrgicas. De mãos vestidas, ajoelhou próximo de um objeto fincado no chão.
— Se incomoda de eu pegar uma dessas?
— Problema nenhum… — negou hesitante. — Eu… Estarei esperando do lado de fora…
Incapaz de suportar a imensa pressão de se estar ali, tomou passos rápidos para escapar da casa e deixar os dois ali sozinhos.
— Boa jogada — a cumprimentou. — Valeu por amplificar o medo dela nesses últimos segundos. Agora temos tudo o que precisamos… Algo a dizer sobre isso aqui?
— Não — respondeu friamente. — É uma faca comum, nada de diferente.
— Huh… Inútil, então — fincou a faca de volta em seu lugar. — É uma cena esquisita, mas não dá muitas pistas…
Três corpos diferentes jaziam no chão. Mãe e filha caíram uma ao lado da outra, sangrando em uma poça única próxima da pia, enquanto o pai cedeu com uma tábua de carne que tentou usar como arma, mais perto da mesa. Foi dele que veio a linha de sangue iniciada na sala.
A mesma destruição se repetia na cozinha, cadeiras e cacos de vidro espalhados por todos os lados e o mais especial de tudo: uma infinidade de objetos pontiagudos fincados nas paredes, chão e teto.
Eram facas de carne, de mesa, garfos e outros utensílios diversos, deixando marcas na mobília e profanando os corpos daquela pobre família, inseridos em cada junta e articulação, olhos e boca.
Nem mesmo a maçã verde na fruteira se salvou de ter três facas e uma colher de sobremesa a atravessá-la.
Era uma vista e tanto.
— Ei, tá afim de não ir para a aula pelo resto do dia e ficar vadiando pela cidade?
— Demorou a perguntar.