Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim
Capítulo 172: Peso
“Onde… é que eu tô…?”
O novo lugar não possuía a menor semelhança ao ambiente escuro e sem vida das paredes brancas do hospital.
“Eu… Eu morri…? Aqui…”
Ao invés disso, o sol, gentil, se esgueirava entre as folhas de uma árvore de médio porte e a suave brisa, fria ao ponto do confortável, a envolvia das mais diversas direções.
“... Aqui é a outra vida?”
Os sentidos vacilavam entre e ir vir, em soma à percebida fraqueza do corpo; até mover a ponta do dedo parecia quebrar o fluxo pacifico e tão delicado, gesto desencorajado.
“... Tô cansada… Tão cansada…”
As pálpebras pesadas caíram e anunciaram um novo sonho a se iniciar. Exausta, a mente da menina chegou mais perto de desistir dos resquícios de consciência e ceder, interrompida pela última impressão acerca do ambiente.
“... Espera…”
O fraco odor a atingiu no preciso momento onde já estava a um passo de cair desacordada, trazendo consigo uma súbita e desesperada dose de energia.
— … Eh…? — Uma voz veio da direita. — Ah, tá acordada…! Relaxa aí, você não tá bem!
De repente, as peças pouco claras se uniram a fazer sentido, encaixando como um grande jogo de Tetris. O lugar onde parou não era a outra vida e muito menos estava livre dos tormentos de Elderlog.
— … Fumaça…! — exclamou. — … O hospital…!
— Calma, Ann! A gente já saiu de lá já faz um tempo!
A voz conhecida a puxou de volta à realidade, firmando-a no chão em corpo e consciência, além de desacelerando os sentidos a mil, envoltos de adrenalina.
— A gente tá na praça da cidade; a que fica na Cypress — disse, sério ao falar. — Estamos seguros.
Foi só depois de ouvir a explicação que seu espírito pôde descansar, confinado à própria carne.
— Steve… A gente…
— Não, Ann… A gente não ganhou — explicou o rapaz de cabelos em tom de chama. — O hospital explodiu… e não foi só ele.
Os barulhos de fundo, antes abafados, a acertaram em franca potência ao fim da encarada fixa, invadindo-lhes a mente de tantos pontos que sequer poderiam nomear.
— Tá tudo bem com vocês? A explosão não causou nenhuma vítima?!
— A tubulação foi bastante danificada por aqui! O gás está vazando…! A área vai ter que ser evacuada!
— Mais equipes vão ser direcionadas para ajudar a apagar o fogo! Não tá sendo o suficiente!
— Oh, meu Deus… Oh, meu Deus…!
Pequenas colunas de fumaça coloriam o céu de Elderlog, vindas de incontáveis localidades na crescente cidade do interior.
— Aqueles agentes conseguiram fazer o plano funcionar, afinal… Eles tentaram destruir a nossa cidade, Ann…!
A indignação de Steve o fez queimar o pedaço de grama onde socou com o punho fechado a ponto de sangrar, os dentes trancados em frente ao tamanho da tragédia.
— A gente sabia que eles iam explodir partes da cidade, mas não pensei que fosse ser a coisa toda…! Droga… Hoje foi um problema atrás do outro…!
Parte das roupas do menino tinham aspecto queimado, cheias de buracos chamuscados na camisa vermelha e pedaços amarronzados no jeans da calça.
Fora isso, a pele de Steve ganhou uma fina camada de concreto e gesso, além de alguns cortes na testa, bochechas e braços, ainda cheios de sangue fresco.
— … E acima de tudo, eu não consegui vencer aquela maluca… — rangeu os dentes. — A gente… caiu como um monte de patinhos, né…?
Vê-lo vivo, por mais frustrado, foi reconfortante, mas antes de poder abrir um sorriso, o elemento faltoso na equação se fez claro, outra vez esfriando-lhe o coração com desespero.
— Steve…! — De supetão, segurou-o pelo braço. — … E a Emily…?!
As últimas memórias dos momentos no hospital saltaram adiante ao ouvi-lo falar. Procurar pela Attwood em algum lugar foi a última coisa que tentou e, sem sucesso, logo presumiu o pior.
— Onde tá a Emily?! — balançou-o.
Foi surpreendente para Ann-Marie vê-lo reagir com tamanha neutralidade.
— Ah, ela tá ali — apontou em uma diagonal posterior. — Foi a Emily quem nos tirou de lá, na verdade… ou pelo menos é a explicação mais lúcida que eu tenho…
Não tão longe da árvore a fazer sombra sobre os dois, a menina de cabeça baixa mantinha atenção fixa no gramado bem-cuidado da praça, sentada no banco de madeira.
— Eu não lembro bem o que rolou depois da explosão, então deve ter me nocauteado… Não tem a menor chance de a gente ter saído de lá sozinhos, Ann… Tenho certeza que foi ela.
“Faz sentido…” pensou. “Ela tinha sumido… e…”
— Não faz muito tempo que eu acordei, também… e quando vi, já estava aqui.
As roupas de Emily repetiam padrões similares — cheias de manchas de sangue e poeira — e o braço, usado para esmagar o coração de Anastasia, exibia uma grande marca arroxeada, a qual ela protegia por instinto.
Ao prestar mais atenção, notou: a garota estava chorando.
— Foi culpa nossa, Ann.
O argumento do manipulador de fogo arrancou dela qualquer desejo de ir lá e consolá-la, atingindo-a com a verdade nua e crua.
— Quer dizer… Eu sei que a gente não foi o mal principal aqui, mas… ainda foi pelas nossas mãos que aquilo aconteceu — disse, soando tranquilo. — Se não fosse por culpa nossa…
O peso do acontecimento não os deixaria, independente do contexto ou das novas circunstâncias. A participação dos dois na morte das várias dezenas em Elderlog High tornou-se um grilhão eterno.
— Eu ‘tava me preparando para matar as três, Ann… Mas elas… elas ficaram desviando… — começou, deixando a emoção permear entre o discurso. — Eu… Eu ia…!
Expirou uma longa coluna de ar quente, símbolo do grande estresse.
— … Se não fosse pela nossa participação, ninguém ia ter entrado em pânico… As pessoas não teriam se pisoteado e ficado no caminho do Jacob…! E elas não teriam…!
— … Não teriam ficado presas dentro da escola…
No fim, o ponto alto da comoção se deu quando a saída da construção foi inviabilizada. Fogo ou um assassino superpoderoso tinham como ser evitados em certa medida, porém…
— Fui eu quem os impediu de sair, Steve — expressou, cabisbaixa. — … E eu também matei alguns, diretamente… e eu mesma não vou me perdoar, nunca.
Preencher os corpos dos estudantes com insetos e controlá-los como marionetes pode ter sido uma sugestão dele — o “sem nome” —, mas, no fim, foi escolha das mãos dela de executar a ideia macabra.
— Eu não ligo da Emily odiar a gente… de me odiar. Eu consigo lidar com isso, mas…
Um veículo dos bombeiros passou pela praça, em máxima velocidade, na direção do hospital, sinalizando em volume total, em virtude da urgência da operação.
— … Isso aqui tem que acabar, Steve… Precisa acabar… Eu já não aguento mais… e sei que nem começou direito!
Os últimos traços da máscara forte cederam, revelando a quebrada expressão da mera adolescente repleta de tantos traumas.
— Não dá, Steve…! — cobriu o rosto, para tentar esconder o choro. — Eu não sei se consigo…!
A intensidade aumentou e, em simultâneo, o rapaz chegou mais perto, até ficar do lado no terreno de grama.
— A Emily odeia nós dois, Ann — abriu, um tanto sereno ao falar. — Você não vai passar por isso sozinha.
Puxou o ar, tão fundo quanto pôde, se concentrou e deixou fluir.
— … Huh… O que…
— Não é nada demais — falou, de olhos fechados. — Só vê se descansa a mente, por enquanto.
— … Tá… — abraçou os joelhos, curtindo a sensação. — Valeu…
Um calor confortável passou a aquecer os arredores imediatos, suficiente para relaxar e nada mais.
[...]
“Sinto muito, vocês três… Eu sinto muito…!” No banco da praça, ela deixava as dores internas fugirem para além do coração. “Me desculpem… Me desculpem…!”
Ao fim de tudo, Emily Attwood se sentia um fracasso.
— Eu não consegui fazer nada… Não ajudei em nada… — murmurou, sua voz abafada pelos braços em torno do rosto. — Eu sou uma inútil…
Os incontáveis pesos cediam sobre os ombros ainda mais intensamente, forçados ao chão pela face da verdade.
— … Eu não devia ter tentado… Não devia ter tentado…!
E nem mesmo as inúmeras lágrimas serviam para aliviar a tremenda carga.
— … Eu não devia ter pensado que eu prestava para isso…!
Escutar as palavras dolorosas de Olivia e Ava destruiu uma parte de sua alma; mesmo marionetes de carne, ela pôde dizer, ao ouvir, que suas amigas ainda estavam ali.
— Me desculpa, Ava… Me desculpa por nunca ter prestado atenção… Hic…! — engasgou. — Me desculpa por nunca ter te ouvido…!
Aqueles zumbis derramaram seus corações e, enfim, ela notou com precisão em qual ponto errou.
— Olivia… Eu deveria ter suspeitado que tinha alguma coisa errada… Você não era assim… Eu… Eu…!
E for a partir do começo, da decisão genial de querer se destacar por um feito extraordinário, sob o pretexto de estar seguindo o próprio coração.
— Eu devia ter só aceitado de uma vez… que eu só sei fazer bobagem… só sei frustrar os outros…
Se sentia um fracasso porque, de fato, falhou.
— Hkkkk… Hic-hic…!
Um bom líder é posturado, sério, compenetrado e, acima do resto, competente. Para se estar no topo, há a exigência de um talento nato, de um conjunto pessoal encontrado com raridade.
E quando o assunto é a realidade dos fatos, fingir ter essas características só o levará até a metade do caminho. Emily era tal pessoa, um desafortunado em busca de ser rei.
“Eu arruinei tudo… ferrei tudo… destruí tudo…”
Representante escolar, organizadora do acervo, ou presidente do Clube de Literatura… falha, após falha, seguida de falha.
“Eu menti para eles… decepcionei todo mundo… Eu…”
A magnitude da declaração fechou-lhe a garganta; por mais que só um suspiro, era algo que precisava ser dito, ao invés de somente pensado.
— … Eu fui tão egoísta…
Durante o curso de sua vida, Emily Attwood se esforçou além da conta para manter um padrão.
A mais bonita, a mais carismática, a mais inteligente, a mais responsável… e tudo isso, combinado com o controverso título de “mais humilde”, afinal, não tê-lo apenas estragaria o restante.
“Eu queria estar no topo… sempre…”
O discurso se repetia toda vez: mostrar-se tão perfeitamente humana na frente de todo mundo e um ideal a ser alcançado, por mais que, por dentro, ela jamais os esperaria ver tentarem.
“... e assim, eles iam gostar de mim, também… eu ia gostar de mim…”
A vida a mostrou que seu valor dependeria de quantas pessoas soubessem seu nome na ponta da língua e de quantos elogios viriam ao ser mencionada.
“Eu sou um lixo.”
Nada disso faz diferença, agora.
“...”
Emily abraçou os joelhos e os manteve o mais próximo possível do corpo. Cansada em excesso para continuar pensando, embora de coração agitado demais para desacelerar.
“Eu… quero voltar para lá… para aquele sonho…”
O grande dragão, a cidade para salvar, magia, batalhas excitantes — um final feliz, sem sangue desnecessário — e um monte de heroísmo.
“Eu queria…”
— … Emily…?
CRACK! — O som da fantasia a se espatifar em mil pedaços a despertou do modo mais desconfortável.
— Eu sabia que não me enganei… É mesmo você! — disse o homem de porte físico alto e musculoso, semelhante ao de seu pai.
Ao vê-lo, viveu a vaga impressão de conhecer o bigode ralo e a barba por fazer. O sujeito, careca, posou estranhamente familiar; o motivo, porém, não soube apontar.
— … Eu… — hesitou, mediante a surpresa. — Quem…
— Sou um colega de trabalho do seu pai… me chamo Josh — o grande e descuidado homem se apresentou. — Ele já me mostrou umas fotos com você… Nossa, você foi pêga na explosão?!
O fato de ele surgir em um momento tão específico não sugeriu algo bom.
— Tá tudo bem?! E esse monte de sangue e…!
— … O que tem o meu pai…?
A fitada, fria e séria, derrubou a preocupação e a apagou com um balde de água fria; desconfortável, Josh arrumou um pouco da postura, puxou ar e deixou-se falar.
— Eu estive te procurando por pedido da sua mãe e, sem mais delongas… Emily, parece que o seu pai foi capturado em uma das explosões.
— … Eh…?
— Eu não queria ter que contar desse jeito… Droga…! — hesitou. — Olha… O carro do Martin passou exatamente sobre um bueiro e os socorristas estão tentando tirar ele das ferragens, e…!
— … Onde tá o meu pai…?! — saltou para ficar de pé, puxando a camisa de Josh.
— Foi no cruzamento com a Elm…! — respondeu, desconcertado. — Olha, eu…!
— … Pai…! — Sem hesitar, a menina correu.
— Ei, Emily…! — tentou chamar por ela, sem sucesso. — Droga…
“Ah, não… Ah, não…!”
A nova dose cavalar de adrenalina fez sumir cada uma das dores e mascarou a falta de energia.
“Não… Não… Não! Não…! NÃO…!”
Precisava ser uma mentira.
“PAPAI…!”
… … …
— … A Emily tá correndo para algum lugar…! — Esperto, Steve foi o primeiro a reagir. — Ann, a gente segue?!
Um aceno confirmatório marcou a decisão a ser tomada.
— Vamos lá…! Ainda dá para correr um pouquinho!