Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim
Capítulo 171: Coerção
— … Sim, eu ouço bem — anunciou ao telefone. — … Entendo.
A janela envidraçada do grande cômodo colorido em branco pérola refletia a tranquilidade presente no lado de fora.
— Pode não ser o resultado perfeito, mas irá nos render um bom tempo. Agradeço a prontidão em me comunicar tão logo ocorreu.
Nos belos e bem-cuidados jardins, os pássaros cantavam belas e felizes melodias e o céu, mais azul e vivo que de costume, agraciou os moradores com mais um dia de boas novas.
O domingo ideal para sair com a família, ou talvez ficar em casa e ver um bom filme…
— É uma pena que houveram tantas perdas, mas tomaremos providências no tocante à situação das famílias. Entrarei em contato para discutir o desenrolar dos eventos mais tarde. Desligo.
… Só não para os residentes de uma pequena e até um tanto insignificante cidade interiorana, oculta em meio às montanhas.
Sem a menção de uma palavra, o homem em vestes formais fechou os olhos e bufou um pouco, suspirando, ao menos em parte, com alívio pela fração importante da operação ter sido um sucesso.
— Teremos bastante trabalho para fazer… — As semanas seguintes trariam dificuldades para dar e vender.
Ele já podia antecipar os sons sem fim dos vários representantes de canais de televisão e tabloides, o inquirindo sobre quem responsabilizar e quais seriam os próximos passos em lidar com a “fatalidade”.
Só mais um monte de detalhes, para os quais já haviam respostas.
— Huh — pegou os papeis sobre a mesa de escritório, relatórios específicos sobre cada explicação a ser dada.
A crise de Montana não seria um problema, mas o surgimento de outras questões ainda o preocupava. Para lidar com tanto, alguns segredos precisavam ser descobertos e sabia por onde começar.
— Me comunique com a central — falou ao telefone, de novo. — Quero agilidade no estudo dos indivíduos com capacidades sobrenaturais, tudo na minha mesa o quanto antes.
Conhecer seu inimigo compunha uma das mais importantes regras para vencer qualquer embate e se quisessem ter alguma chance, quanto mais se souber, melhor.
E, no topo disso…
— Quando enfim descobrirmos o que os torna tão excepcionais, teremos isso apenas para nós! — riu ao vento. — E com relação à nossa mais nova aquisição, tenho um pedido especial…
[...]
— … Hkkkk…!
A massiva coluna de fogo seguiu a primeira onda de choque advinda da explosão das salas ao longo do corredor leste.
A série de impactos se somou, totalizando um único grande baque sísmico, potente a ponto de quase desestabilizá-la.
— Aaaaah…! — Ann-Marie até tentou plantar os pés com firmeza no chão, sem sucesso. — … As bombas…!
A explosão aconteceu e, como antecipado, se mostrou insuficiente para destruir a edificação de cara, o que, embora trouxesse certo alívio, ainda não os livrava da possibilidade de perderem a vida.
— … Emily…! — procurou, sem sucesso em achar. — Emily, onde você tá…?!
Entre o fogo a consumir os arredores, os sons dos fracos gritos perdiam força, ineficientes em gerar alcance.
“... E o Steve…!” lembrou. “Ah… não… não… não…!”
Nenhum sinal dos dois se viu pelos arredores, facilitando o caminho do desespero à alma da manipuladora de insetos.
— … Até as minhas abelhas… — falou para si, mediante o estado das companheiras. — Elas…
A onda de choque e temperatura inicial fritaram os pequenos insetos e dentre as quais não estavam mortas, só se debatiam, nos últimos instantes de suas frágeis existências.
— Não… Não… por favor… — sentiu o olhar a marejar. — Isso não…! … Aaargh…!
A frustração com a situação a fez saltar para ação e trancar os dentes.
“Não tem como a Emily ter simplesmente evaporado…!” pensou, inspecionando cada canto da recepção com afinco. — Emily…! Steve…!
As cinzas dos ossos de Jacob esvoaçavam na explosão e, ao contrário de antes, os cadáveres de Ava e Olivia não apresentavam qualquer movimento.
— STEVE…! — aplicou força na voz até sentir a garganta falhar. — EMILY…!
Saindo da “zona de conforto”, a menina adentrou as razoavelmente fracas chamas do corredor e buscou de quarto em quarto, sem sucesso.
“Eles precisam estar vivos… Precisam…!” rangeu os dentes. — STEVE…! EMILY…!
Os padrões de dano estrutural também se mostraram compatíveis com o proposto no plano dos agentes que invadiram o local, pois, durante o caminho, ela pôde notar.
“... Eles colocaram as bombas justamente onde passam as tubulações de gás…”
Os explosivos de poder destrutivo relativamente baixo quebraram algumas paredes e danificaram o teto de certas zonas, contudo.
“A estabilidade do lugar tá comprometida…! Se eu não encontrar eles logo… O hospital todo pode cair sobre as nossas cabeças…!”
Por mais que não fosse versada em engenharia civil, ela — assim como qualquer um — conseguia entender que nada em uma construção de tal porte existe por motivos arbitrários.
— Os lugares vão colapsar… começando pelos pontos de maior dano…! Um efeito dominó…
Sem precisar dizer mais, necessitava encontrá-los o quanto antes, mais e mais fundo no labirinto incendiário a cada segundo.
— STEVE…! EMILY…! ONDE VOCÊS ESTÃO?!
A queima de alguns dos leitos preenchia o espaço de fumaça, tornando difícil a visualização e a respiração; era Elderlog High ocorrendo de novo, ainda mais desesperador.
“Eu tô me aproximando de onde ele ‘tava lutando…!”
Até as pilhas de carne e sangue — antes, os pacientes e agentes — tinham aspecto chamuscado. Não havia tempo para se questionar se por função das bombas ou de Steve, contudo.
— STEEEEEEEVE…! — gritou ao topo dos pulmões. — COF-COF…!
Os acúmulos de fumaça e gás ficavam maiores naquele ponto, quase por completo encoberto pela capa cinzenta.
“... Eu tô ficando sem fôlego…”
O ar respirável ficava mais raro, quanto mais fundo se entrasse na construção. Por ali, os efeitos foram sentidos de forma mais severa e, de certo, a explosão foi vivenciada em sua potência integral.
“... Steve… Emily…”
Os sintomas da intoxicação se somaram à fadiga e a dona de marias-chiquinhas caiu de joelhos.
“... Não vai acabar assim… Que… merda…”
A consciência falhou e sequer podia mais sentir as pontas dos dedos das mãos. De repente, a temperatura excessiva passou a ser só mais um detalhe e o acinzentado no canto do campo visual cresceu.
“... Aaargh…” raciocinou com o pouco que tinha sobrando. “Maldito o dia… em que eu resolvi dar atenção para aquele lunático de franjinha…!”
/… … …/
— Ah, alguém que possa me dar uma informação… Com licença, você teria um minuto?
— Huh? — O chamado, vindo de surpresa, a assustou um pouco.
— Mil perdões pela abordagem tão intrusiva! — disse o dono da voz. — Eu apenas estou precisando de um pouco de ajuda, para encontrar um endereço!
Mais uma interação humana normal, tão ordinária quanto às várias outras. Naquele dia de abril, tão cedo pela manhã, a Oak Street ainda não se via tão vital.
Os céus cinzentos e desencorajadores de Elderlog tornavam as pessoas preguiçosas e ajudavam a manter o ritmo tranquilo em excesso do lugar, dando-lhe todo motivo para abordá-la.
— A realidade é que não sou daqui, então agradeço imensamente se puder me dar algumas direções — falou, fixamente olhando-a nos olhos castanhos. — Estou procurando a Grande Biblioteca do Condado de Flathead… poderia me indicar onde fica?
Porém, por mais ordinária e insuspeita, a interação enviou todos os tipos de sinais errados e estranhos, a começar pela própria aparência e trejeitos do questionador.
Algo a respeito da penetrante encarada do único olho esquerdo a desconcertou de imediato.
— Ah… — começou, sem jeito. — A biblioteca fica para lá… nessa mesma rua…
Não havia jeito de ele ter perdido um lugar que tanto se destaca entre as casas baixas e de aparência um pouco morta.
— Oh, como pude perder um lugar tão fácil de se encontrar…! — brincou um pouco, a ponto de até rir. — Agradeço muito! Creio que seria recomendável ficar um pouco mais atento, de agora em diante…!
Os risos, demarcados e repletos de maneirismos, soaram quase forçados demais; plásticos, por assim dizer. Ann sequer sabia o motivo, mas o mero ato de precisar olhar para ele a dava calafrios.
— Uhh… Se era só disso que você precisava… então eu já vou indo…!
A menina apertou mais firmemente as sacolas de compras na canhota e deu de costas, implorando para que não fosse chamada de novo.
— Sabe de uma coisa? Eu gostei de você!
O dito a fez congelar, afinal, não eram raras as histórias sobre homens estranhos abordarem mulheres na rua, se achando no direito de dizerem ou fazerem qualquer coisa…
… Ainda mais ao se tratar de um lugar como Elderlog, onde mulheres desaparecem quase dez vezes a média estadual, anualmente.
A impressão inicial de ser alguém perigoso não foi infundada e se qualquer coisa, correr o mais rápido possível soou como uma ótima opção…
— Eu tenho uma pequena proposta que gostaria de te fazer, nada muito complicado… Estaria interessada em me ouvir, Ann-Marie Young?
Mas ela conseguia sequer se mover, nem que só as pontas dos dedos.
— Deve estar se perguntando como sei seu nome, levando em conta que acabamos de nos encontrar… Bem, isso é só o que você pensa; eu já tenho de observado faz um certo tempo.
Os passos marcaram a aproximação dele e, com isso, o aumento do peso terrível do discurso.
— Você tem algo que eu busco, Ann-Marie Young — anunciou, em um misto de frieza e emoção contida. — É algo grande e importante, algo que quero que aprenda sobre. Vai se surpreender quando descobrir.
— … Quem… é… você…? — Entre tremores, conseguiu murmurar.
— Ninguém importante. Sou apenas um agente, trazendo a mensagem de algo maior que minha própria existência — desviou da pergunta, chegando mais perto. — De qualquer forma, o que eu tenho para você é isso.
— … Eh…?
Ele deslizou um pequeno envelope branco para dentro da sacola contendo alguns mantimentos, perfeccionista a ponto de criar o encaixe perfeito, no meio preciso das compras.
— Vou te dar um tempo para pensar a respeito — anunciou, cheio de certeza. — Abra o envelope assim que puder… ou não o faça. No final, tudo só vai depender da sua interpretação de como as coisas devem transpirar.
— … Ei…
— Irei conversar de novo em alguns dias, isso eu posso garantir.
— … EI…! … Huh?! — Quando se virou para olhar, não havia ninguém.
De repente, a pressão opressiva sobre seus ombros cedeu e o ar da Oak Street retornou à tranquilidade de antes.
— Ehhh?!
Não importava para onde ou como olhasse, pois não havia um sinal da interação anterior ou da presença daquele sujeito nos arredores, com exceção…
— … Essa carta… — pegou o objeto do meio das compras. — Não… Eu não vou ler isso…!
Sem pensar duas vezes, atirou o papel branco e limpo na primeira lixeira com a qual topou, fazendo o caminho de volta para casa, inconsciente de possíveis consequências.
/… … …/
— … Eh…?
A cena de ruína absoluta em frente aos seus olhos carecia de palavras e impressões suficientes para se definir, tamanha a crueldade exibida.
— Mas quem… quem faria isso…? — perguntou o homem, seu pai, transtornado. — Meu… Meu Deus…!
Caiu de joelhos em frente à vida que construiu na pequena cidade, agora, arruinada quase por completo, da noite para o dia.
— … Quem faria uma coisa tão cruel…?! — exclamou, de olhar a marejar.
Ann-Marie não falou, mas o frio na espinha a agarrou no coração. Haviam apenas poucos dias desde o contato com aquele estranho que desapareceu do nada e os sinais não paravam de surgir.
Primeiro, foram fotos estranhas de diversos locais pelos quais passava, chegando ao seu celular pelas mãos de um endereço de e-mail desconhecido. Nenhuma das imagens a mostrava de forma explícita e sequer precisavam.
À princípio, parecia mais um trabalho de um stalker e, se continuasse, se prometeu levar a queixa à polícia, porém…
Aquilo — o evento daquela manhã — foi o próximo passo mais extremo de qualquer escalada da violência.
A dúzia de cabeças de gado, frutos de tanto investimento e criação tão dedicada, jaziam no meio do campo, mortos de forma violenta.
— … Mataram todos… eles mataram todos… não sobrou uma cabeça viva sequer…
A figura cansada e abatida de seu pai ergueu-se do chão, desolado. Em passos lentos, o homem passou cabisbaixo, passeando entre o mar de sangue fétido, antes chamado “pasto”.
— Minha criação… Quem fez isso…?
Cada boi e vaca morreu com um singular e letal corte limpo no pescoço, que os fez sangrar até a morte.
Os animais não exibiam sinais de luta ou de tentar fugir do assassino e nenhuma outra marca manchava os couros perfeitos.
— … O que vamos fazer agora…? — murmurou, destruído por dentro.
E conforme seu pai tomou distância e voltou para dentro da casa em prantos, Ann ficou perto da cerca, ciente do que ocorreu e do motivo, embora incapaz de dizer.
— … Percebi que você fez uma desfeita e tanto da grande proposta que te fiz… Nossa, e pensar que nem teve a curiosidade de olhar dentro do envelope!
“...!” Como reação espontânea, deu um forte chute giratório para trás.
— Não podemos deixar que fique assim, certo?
A voz veio de trás, logo perto da orelha esquerda. Ali, ela pôde sentir o ar quente da respiração tranquila e, em simultâneo, tão opressiva.
— Vamos tentar outra vez, certo? De um jeito um pouco mais civilizado, afinal, eu não gostaria de me ver forçado a repetir isso, só que com pessoas.
Ele colocou a carta no campo de visão dela, visível de frente, ao mesmo tempo em que, ao pescoço, direcionou o fino metal de um canivete sangrento.
— E então, o que vai, Ann-Marie Young? Vai pegar a carta ou esperar para que sejam aqueles dois os próximos que vai encontrar quando levantar da cama amanhã?