Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim
Capítulo 170: Inovação
— Fez um bom trabalho no hospital. Estou cogitando a possibilidade de te dar uns trocados para comprar um algodão doce ou coisa do tipo.
O morro propiciava a visão perfeita de toda a área da bela e aconchegante Elderlog. Ali, o vento soprava com calmaria e o céu, coberto por uma fina camada de nuvens cinzentas, trazia um ar preguiçoso à cidade no interior de Montana.
Eram pouco mais de 10h30 AM e, logo, o show de fogos iria se iniciar.
— Vamos avançar em função dos nossos próximos passos. Com todo o fundamento definido, o restante deve se mover por si, em sua maioria. Talvez, precisemos sujar as mãos aqui e ali e…
— Disse que eu fiz um bom trabalho?!
A interrupção tão abrupta o arrancou um “hunf” mental; ela não ouviu uma palavra após a congratulação e sequer soube o motivo de esperar que o houvesse feito.
— Yay! Eu fiz um bom trabalho! Ebaaa!
Afinal, era dela que se falava.
— Anastasia.
O chamado, seco e insípido como de costume, arrancou-a do frenesi de ficar saltando e comemorando debaixo da árvore. Fixa, a atenção da menina de fios rosados focou-se nele, naquele cujo nome não se podia mencionar.
Sempre cheio de caprichos, o portador da cabeleira negra, a cobrir o olho esquerdo, ajeitou os fios com os dedos jeitosos, antes de se deixar falar.
— O que criamos aqui é o primeiro passo ao rumo do meu sonho maior, minha cara.
Ela conhecia aquela cara; logo, ele iniciaria mais um de seus devaneios, cheios de termos crípticos e significados difíceis.
— Não é sobre essa cidade, nem nenhuma das outras que existem nesse mundo inteiro… mas sim, sobre a humanidade em si! — exclamou ao alto. — Faremos uma diferença infindável, incalculável…!
Os detalhes do plano a atravessaram como o vento passa pelas folhas — fizeram barulho e a moveram por dentro, mas nenhum detalhe sobrou — e, agora, ao seu lado, só se resumia a seguir cegamente, confiante nas grandes promessas feitas ao final.
— É um evento que vai ficar marcado na história… O estopim da nova evolução da humanidade!
Ele puxou do bolso um pequeno envelope branco, sem escrita ou destinatário, selado do modo mais perfeito.
— E esse acaso… Esse caos…! — exaltou-se. — É só mais um fragmento do que tudo isso simboliza!
Aproveitou o tempo exato da mais nova onda de vento e soltou o objeto no ar, deixando-o alçar voo.
— Alcançaremos os maiores horizontes até então já imaginados por esse bando de macacos que vivem abaixo dos nossos pés…
E o envelope voou, em rumo direto ao centro da cidade, carregando em si algo proibido, irreconhecível às tecnologias mais modernas e capaz de destruição incalculável, não por si, mas por aquele que o receber.
— Veremos as potencialidades da humanidade! — gritou ao vento, de braços abertos. — Descobriremos até onde cada um pode ir… até qual ponto ainda pode-se chamar de humano…! Estou ansioso pelas surpresas que veremos!
A loucura dele só pertencia a si mesmo, envolto nas sombras do próprio ideal e, irrelevante o fato de compreender ou não…
— E você tem um lugar de destaque, Anastasia — fitou-a. — Basta seguir o que eu planejei… e olhe só que grandes resultados!
A menção de sua participação a atingiu como uma descarga no cérebro.
— Oooh! — Elevados os ânimos, saltitou. — Então eu sou importante?!
— É claro que é! Pode não ser a mais brilhante, mas me é útil o bastante…!
Andou até ela e puxou outra coisa do bolso: uma nota amassada de vinte dólares.
— Vá comprar uns doces com isso, minha importante ajudante! Só tente não chamar muita atenção.
Ver o “grande” número no pedaço de papel verde arrancou um largo sorriso da menina de psique infantil.
— Wow! Um dois e um zero! Vinte! — Impressionada, elevou a nota à altura do céu, buscando ver melhor. — É um número grandão…!
— Sim, sim! E dá para comprar muitos doces! — enfatizou. — Agora, vá. Não vai querer perder tempo, certo?
— Isso, isso…! — saltou em animação uma última vez. — … Eu já volto…! Vou comprar balas e pirulitos…! Ebaa!
Inconsciente das entrelinhas da tal ação, ela saiu em velocidade, animada para buscar as supérfluas e açucaradas recompensas terrenas.
“Heh. Faça isso mesmo, sua tola.”
Ele agradeceu por poder viver um pouco de paz, por mais irrisória que fosse quantificar no grande esquema final. Os minutos para refletir, sozinho, lhe caíam bem.
— Como é bom fazer progresso! Os frutos de um bom trabalho são sempre colhidos em seu devido tempo…! — estalou o pescoço, duas vezes. — Logo, a fórmula vai conseguir ser melhorada até onde puder!
O envelope branco se perdeu e seu destino, nem ele podia antecipar.
— Assim que aquela coisa parar de matar tanto, vai ficar mais interessante! A fórmula antiga era bruta demais… Não foi à toa que gerou tão poucos! … E por falar em inovação…
O tranquilo aspecto do hospital pousou enganador frente à vista dele, em empolgação pelo futuro próximo.
— Ah, Rolland Pryce… É uma pena que não conseguiu controlar sua “criação”, huh? Não sabia o que estava cultivando naquelas placas de petri… Que situação!
O clone de Anastasia — “Pandora”, como chamou — detinha de somente uma mera fração das capacidades do corpo original.
— “Pandora”... O nome da primeira mulher, huh? Aquela que trouxe ao mundo seus males… — saboreou o conceito, reflexivo. — Um pouco de mau gosto na escolha, em nomeá-la de algo tão glorioso.
Mas afirmar que desconhecia a empolgação de uma nova descoberta seria somente mentir.
— Fora do corpo, as células dela não costumam ter muita vida útil… Admito que se fosse diferente, lidar com aquela acéfala poderia acabar se tornando um problema.
Caso Anastasia pudesse se clonar à vontade, controlá-la se tornaria impossível a longo prazo.
— Huh, agora que penso a respeito…
Da cidade, múltiplos focos de fumaça surgiram em simultâneo.
— Onde foi que minha ajudante menos acéfala se meteu?
[...]
“Emily… onde foi que você se meteu dessa vez, menina?!”
Trafegar as ruas de Elderlog passava a óbvia sensação de que algo não podia estar certo.
Pessoas se aglomeravam nas ruas, olhando ao longe para as cortinas de fumaça, agora um pouco mais esparsas. Nos grupos, fofocas e relatos sobre ouvirem explosões, gritos e tiros, corriam à solta.
Escutar, nem que por cima, o gelou o coração. O pior possível poderia estar acontecendo e Martin só queria tirar sua filha do centro de tanto caos.
“Ah, quando eu encontrar essa garota…!” grunhiu, a ponto de mostrar as gengivas para o retrovisor central.
A falta de contato com o mundo exterior só servia para amplificar a impressão subjacente de algo muito maior estar ocorrendo sob os narizes dos residentes, por mais que não houvesse como confirmar.
“Eu só espero que você esteja bem… minha menininha…”
Pensar na filha o levou a pisar mais fundo no acelerador do carro já em veloz movimento, já próximo do dito hospital.
“Onde tá todo mundo…?”
Mas, conforme o espaço entre ele e a grande construção branca se reduzia, a atmosfera, antes já estranha, assumia ares de crescente bizarrice.
Para começo de conversa, não havia sequer um dos habituais agentes treinados, mandados pelo governo para fazer a segurança.
“Alguma coisa de mais aconteceu… Com certeza…!”
Isso, porém, não iria pará-lo e, ainda por cima, dos males o menor — sem policiais ou o FBI nas ruas, ele não poderia ser multado por dirigir tão loucamente —, o tornando um passo mais próximo de sua princesinha.
O domingo não precisava de mais novidades; ficar em casa, seguros, parecia um sonho… um o qual ele traria à realidade, sem fazer questão de quantos pneus precisasse queimar.
Logo, tomou o caminho para a rua da esquerda, no perímetro do prédio e, determinado…
— … Huh…? — O corpo do lenhador travou no lugar, incapaz de esboçar qualquer gesto.
O intenso fluxo, em meio ao frenesi de reencontrar a filha, se viu quebrado pelo encontro com a estática figura no centro da rua.
— … — Ela nada disse ao vê-lo nos olhos, por trás do vidro obscurecido, ciente do ponto perfeito onde encará-lo e do preciso jeito de fazê-lo para despertar tamanha apreensão.
Vê-la ali, no centro de tanta destruição, causou um profundo aperto sufocante no peito de Martin Attwood.
— … — andou um passo à frente, parando na faixa de pedestres.
Carros capotados e revirados, cheios de buracos de tiros e bombas, se acumulavam ao redor dela e de seu cachecol vermelho, de tom tão vívido quanto o do par de olhos brilhantes que brandiu a ele.
E tal era a impressão, sem nem contar a interferência dos vários cadáveres de oficiais e agentes, caídos tais quais meros bonecos de pano sob seus pés.
Nem uma única gota de sangue tingia o moletom bege ou os jeans, todavia.
— … Ei… Ei… Espera aí… — tentou se mover, incapacitado pelos tremores de puro medo. — Eu…
Apertar a buzina e solicitar que saísse do caminho ficou fora de cogitação. Fisicamente, podia até se tratar de uma simples garota, tão comum quanto qualquer outra…
— … Eu não consigo…!
Emocionalmente, não havia como saber o que aquela coisa iria fazer com ele.
— … Eh… Huh…?
E, em tamanho impasse, a atenção do pai de família se focou no simples gesto por ela realizado. No ar, a adolescente levantou três dedos.
Baixou o primeiro…
… E o segundo…
“Esse barulho… Que som é esse…?!”
… E, o último…
Zero. Não ocorreu nada quando o punho se fechou. O barulho cessou, tudo retornou ao estado comum e ele, também, deixou-se abrir os olhos.
— Huh…?
… … …
BOOOOOOM…!
[...]
— … Emily…! Tá tudo bem?! — Em meio à nuvem de pó gerada pela explosão de som condensado, Ann questionou, em alerta.
— Morra pelas mãos da mesma coisa que nos matou também, Emily… — A suave, embora robótica voz de Olivia se destacou. — … E assim, vamos poder ficar juntas na morte também, como as grandes amigas que você queria que fôssemos…
Farta da situação, a manipuladora de insetos pegou do chão um pedaço do concreto destruído, pouco maior que sua mão, advindo do ataque.
— Se vocês fossem mesmo as amigas dela… — lançou. — … Iriam querer vê-la feliz…!
O pedregulho acertou o rosto do “zumbi”, desestabilizando o já decadente controle motor ainda mais; de um jeito tão simples, o cadáver reanimado de Olivia cedeu como um saco de batatas.
— … Ei, Emily… Olha só isso aqui…
— Huh?! — As circunstâncias estranhas do evento seguinte deixaram a lutadora em estado de alerta.
— … Foi assim que eu morri…!
PLAFT!
Massa encefálica mista de sangue besuntou os arredores, quando Ava, inanimada, enfim cedeu ao chão, vitimada pela explosão criada por Jacob.
… … …
— ... Isso… já é demais…
A menina olhou para o lado; Emily estava chorando.
— ... Isso é cruel…”
E seus próprios olhos marejaram, também.
— ... Qual é a graça disso…?!
Os risos deles ecoaram na superfície da mente — do cara sem nome, da estranha de cabelo rosa —, levando à pergunta:
— QUE SENSO DE HUMOR MALDITO É ESSE?!
Sem mais se conter, Ann se lançou de frente contra a pilha de restos chamada “Jacob Egan”.
— Vê se fica no inferno… DESGRAÇADO…! — O soco no “queixo” derrubou-o ao chão, deixando-se para pisotear.
Chamar a pilha de ossos e estruturas carbonizadas de “pessoa” seria esticar demais. Ao contrário dos demais, o cadáver de Jacob foi destruído a níveis extremos pelas chamas da biblioteca.
Não havia um pedaço de carne ou um grande músculo preservado e por mais que não passasse de uma pilha de ossos enegrecidos, cobertos por uma camada mais fina de algum tecido corporal qualquer, continuava “vivo”.
Um resto de si, mais próximo de virar uma pilha de pó ao fim de cada pisada.
— NOS DEIXA EM PAZ…! — pisou no crânio e o impacto desfez os ossos.
Perdida em meio à fúria, deixou-se esquecer o detalhe cujo qual recusou-se a deixar de lado.
— E VÊ SE FICA MORTO!
Quando a caixa torácica do remanescente humano se separou em dezenas, quebrada tal qual uma placa de vidro…
“... Eh…?”
BOOOOOOOM…!
O timer acabou e a vibração do solo e das paredes se seguiu da maior onda de fogo já vista em toda sua vida.
[...]
… booooom…
O som, abrupto e distante, chamou a atenção de pronto. Curiosa e preocupada, Alissa abriu a porta da frente e correu até a calçada.
— … Meu Deus… O que foi dessa vez…?
— Essa fumaça… O hospital?
— Outra tragédia?! Nunca vai acabar?!
As vozes das outras pessoas passaram despercebidas, afogadas pela agonia interna de ligar os pontos.
“... Emily… Martin…!”
A pressão contra o coração quase a fez cuspir a alma para fora e…
… BOOOOOOM…!
— … ALI! — gritou alguém. — NO FIM DA RUA!
Os tremores extremos acertaram-lhe as pernas e o cheiro de fumaça tomou conta, advindos da explosão alaranjada que venceu a barreira proporcionada pela tampa do bueiro.
As pessoas, assombradas, começaram a correr para longe. Alissa, porém, ficou.
“... Não pode ser…”
BOOM! BOOM! BOOM! — outras explosões vieram, umas mais perto, outras mais distantes e, com elas, seguiram-se os gritos de desespero. Tão logo, em qualquer canto que se olhasse, havia ao menos uma cortina de fumaça.
“... Por favor…”
Às 10:35AM do qual deveria ser só mais um domingo, iniciou-se um novo inferno para os moradores da pequena cidade.
— … Que a minha família esteja segura…! — exclamou ao vento e à fumaça, entregue ao destino.