Uma Cidade Pacata – Objetivos e Sacrifícios
Capítulo 173: O Que Está em Jogo Agora
— Agora que todos se encontram presentes, podemos começar a reunião.
Como acordado, o encontro iniciou-se no exato horário de 14h.
— A reunião que teremos servirá para determinar alguns rumos importantes — começou o homem de meia-idade. — Nossa nação urge de ajuda em um momento tão crítico e, portanto, separamos algumas medidas.
A maioria do país já tinha noção dos ocorridos em Elderlog àquela altura do dia. Ao se contar com veículos de mídia tão velozes, um trabalho de desinformação adquire características ainda mais ferozes.
— Para todos os efeitos, a cidade de Elderlog, localizada no estado de Montana, sofreu por consequências do terrível sistema de encanamentos de gás, datado com relação à normativa atual… — pausou, revelando a real intenção do gesto. — Embora, não haja um de nós, nessa sala, que não saiba a verdade.
Elieser podia não ser um exemplo de liderança ao olhar de muitos, porém, conseguia ser direto o bastante para tornar as discussões curtas, gesto agradecido pelos vários agentes, muitos dos quais sequer almoçaram.
— O plano de metas já foi traçado e está sendo executado enquanto o discutimos. O governador de Montana será culpabilizado pelos danos e a atenção será dividida por tempo o bastante, enquanto não tomarmos cursos mais específicos para corrigir esse problema.
Grazianni coçou a polida barba grisalha, antes de pegar da mesa à frente um punhado de papeis repletos de textos e os acertar contra a madeira polida em um gesto cerimonioso.
— Verba federal será direcionada para os reparos dos encanamentos agora danificados e uma ajuda substancial será entregue aos moradores da localidade. Haveremos de restabelecer o ritmo de normalidade no tempo de poucas semanas.
Só de olhar a papelada, metade dos homens e mulheres esmoreceram, diante da certeza de que deverão lê-los. Os tempos a seguir derrubariam imensas porções de trabalho árduo sobre seus ombros, aceitáveis ou não.
— Isso custará algumas dezenas de milhões do orçamento anual, mas descarta-se a possibilidade de um aumento na recessão econômica, portanto, não se preocupem quanto a chamar atenção — anunciou, rígido. — Essa é a menor parte do problema, no entanto.
A sala escura estremeceu ao final do dizer — uns engoliram a saliva acumulada, outros torceram os narizes — e a ambientação geral se converteu em algo pesado, em preparação à primeira e, talvez, a menor das revelações.
— Não temos comunicação com qualquer de nossos agentes e, até o momento corrente, não houve como recuperarmos seus corpos.
De forma óbvia, a proclamação de final aberto gerou perguntas.
— O que quer dizer com isso?! — perguntou um homem, de humor alterado. — Quer dizer que os cadáveres estão lá, para os cidadãos verem?! Isso compromete o caráter sigiloso…!
— Se acalme, Agente Miles — dirigiu-se a ele. — E sim, tenho noção de tais implicações e justo por isso, o assunto me incomoda tanto.
O laptop ao lado comandou ao projetor, para exibir uma tabela contendo os nomes dos agentes de campo envolvidos, tais quais os instantes de suas últimas comunicações, antes da perda de contato.
— Como podem ver, em suma, todos os agentes que enviamos perderam conexão entre cinco e dois minutos antes da série de explosões, indicando intervalos próximos, algo a normalmente indicar presença de múltiplos indivíduos em ação.
O próximo conjunto de imagens, contudo, negou a teoria.
— Como podem ver, tal cenário não representa a verdade. As análises levam a crer que se trata de um único indivíduo envolvido.
Ver algum conteúdo entre os montes de borrões e pixels mortos era impossível à primeira vista, contudo, ao se pressionar a visão, um formato peculiar saltava adiante.
— Foi essa a pessoa responsável por derrubar nossos drones e, por meio de algum artifício desconhecido, sumir com os membros de nossas tropas — afirmou. — Tentamos tratar e polir a imagem à medida do possível, sem qualquer sucesso.
A vaga forma humana posou inconfundível, destacada em principal devido aos olhos de brilho vermelho-vivo, fixos na lente de cada câmera que destruiu.
— Recebemos a última comunicação do dia do Agente Barry, segundos depois da destruição do drone sob seu controle e, por mais que não hajam detalhes o suficiente, devemos extrapolar a possibilidade de ter sido culpa desse sujeito.
A imagem adquiria mais nitidez quanto mais se olhasse. De repente, surgiam contornos dos cabelos, a cor pálida do semblante se destacava e o monte de “erros de imagem” se tornava humano.
— E foi esse indivíduo o responsável pelo ataque à central, hoje pela manhã — falou, como se tratasse de algo simples. — Aos que não tinham ciência disso, irei informar agora.
— … Um ataque?! Como pôde esconder algo assim?!
A reação súbita de se levantar para confrontá-lo arrancou sustos de alguns dos colegas, surpresos com a tamanha intensidade do gesto.
— Não os contei porque não queria que isso impactasse o trabalho de vocês e, acima de tudo, estamos discutindo isso no momento, se tratando de uma situação já resolvida. Não vejo motivos para tamanha falta de calma, Agente Pérez.
— Não trate uma situação assim como se fosse tão elementar, Grazianni…! — esbravejou, olhando-o no fundo da alma. — Nós corremos o risco de sermos mortos e isso é simplesmente escondido?!
Marilyn demonstrou uma coragem capaz de mover os demais da inércia, puxando para fora o incômodo de terem escutado algo tão absurdo.
— Em primeiro lugar, isso significa dizer que o inimigo nos visitou, não é mesmo?! — pressionou. — Poderia, por favor, nos esclarecer a intenção, sob quais pretextos e o que raios você está fazendo ao agir de um modo tão tranquilo, como se NADA estivesse acontecendo…?!
Os outros agentes deram início a uma enxurrada de sussurros, pressionando-o a oferecer respostas, ao mesmo tempo em que faltavam com a força de caráter para tentar o mesmo que ela.
— Peço perdão pela minha exaltação, mas espero que compreenda e que nos forneça as respostas que queremos, depois de sermos trancados nessa sala por horas!
— Era isso o que eu iria me propor a fazer, Agente Pérez… — suspirou, fundo. — … caso não houvesse sido tão rudemente interrompido, portanto, se me permite…
As fotos de sete funcionários, entre portadores de altas posições e meros auxiliares de serviços gerais, foram o suficiente para calar os covardes, novamente entregando a ele o foco da atenção.
— As perdas de nossa companhia vieram na intenção de repassar uma mensagem… e os responsáveis detinham noção dos esquemas que planejamos para Elderlog — anunciou, soando hesitante. — Dito isso… pude estabelecer contato com o membro responsável pela organização do esquema.
— COMO ASSIM?! — A reação imediata e explosiva veio em coletivo, pelas vozes simultâneas de ao menos cinco dos onze presentes.
O grupo em geral aguardava por respostas, encarando-o mais intensamente do que jamais antes.
— Fui diretamente intimidado por dois deles… em meu próprio escritório.
A apresentação passou a exibir pedaços das várias filmagens do andar atacado, repletas de falhas e perturbação eletrônica, similares às demonstradas nas últimas filmagens dos drones.
— Solicitei que nosso setor de criminalística realizasse retratos falados dos indivíduos… Um deles pode ser surpreendente para vocês.
Duas fotografias, aperfeiçoadas por inteligência artificial, chegaram aos olhares atentos e famintos por informação dos agentes e, enquanto não conheciam o rapaz da esquerda…
— A garota da direita… a com o cachecol…
— Sim, você não foi o único que pensou isso, certo, Agente Lester? — interrompeu o homem, impondo sua perspectiva. — É a mesma garota que derrubou nossos drones. É inconfundível.
O vermelho-sangue do cachecol se misturava à cor de seus olhos, que mais pareciam dirigidos ao espírito do observador, apesar de se tratar de uma representação feita por computador.
— Mas esses dois… são meros adolescentes ou, no máximo, jovens adultos…! Como…?
— Os sujeitos que capturamos também são apenas adolescentes, Agente Hope, e nem por isso devemos considerá-los menos capazes ou perigosos, afinal…
A terceira imagem, única na tela, mostrou a foto de uma única garota sorridente.
— O demônio que destruiu o hospital em Elderlog, suscitou tamanho trabalho e, no final, arruinou nossas tropas, também se tratava de apenas uma adolescente.
A fotografia da menina de cabelos rosados, nua e coberta de sangue, desta vez era real.
— Me recuso a tratar algo de tamanho porte com tanta leniência, a ponto de chamá-la de “humano”. — A voz de Grazianni se encheu de notas amargas. — Ouvi de meus próprios homens e mulheres a menção de ser uma “mera garotinha”...
A fotografia de um drone exploratório, a sobrevoar o perímetro do hospital, captou com precisão a movimentação de uma pessoa em uma das janelas do terceiro piso.
— Essa garotinha — usou tom zombador, mas seco — foi a responsável por colocar um plano tão meticuloso a perder… Toda uma estratégia de sigilo foi, tão depressa, para o ralo.
Ela notou a presença da câmera, mesmo estando tão distante, e acenou para o objeto, com um sorriso largo no crânio metade exposto e um intestino humano na mão direita, reduzida a ossos.
De tão longe, marcas de queimaduras, incompatíveis com a vida, a marcavam de forma que sequer ligava, tal qual não passassem de meros arranhões.
— É por esse motivo que sugiro aprofundamento nas pesquisas com os sujeitos de teste, para que assim, descubramos o mais rapidamente um método viável para lidar com tamanha ameaça e…
— … militarizar…
— Perdão, Agente McGee?
— … Militarizar, não é?
O corte de Adrianna destroçou o fluxo do monólogo. De aspecto conflituoso, a agente de inteligência gesticulou para se erguer da cadeira, mas não o fez.
— Quer descobrir mais sobre eles… para aprender como reproduzir o processo, não é isso…?
A fala hesitante se viu de pronto rebatida.
— Sem dúvidas, Agente McGee. Nosso país têm sofrido nas mãos dessas… pessoas — parou, antes de mencionar o termo. — E estivemos sem saber como lidar com essa situação, até o presente momento.
Fotografias dos “sujeitos de teste” surgiram na representação do projetor, retiradas de vários momentos durante o ataque em Elderlog High.
— [Ilusionista]… [Lírio Rosa]… e, claro, nossa mais recente aquisição… O [Quebra-Mentes].
A última foto trouxe reações expressivas dos observadores, mas dentre elas, uma se destacou.
— Descobriremos os segredos que os tornaram isso que são e tais revelações nos trarão as respostas que precisamos para saber lidar à altura com o problema, talvez até na mesma medida.
— Já pensou no quanto isso pode ser perigoso?! — Adrianna pressionou, mais corajosa. — E se sair do controle?! … Sequer sabemos a real extensão desses superpoderes…!
— Falando como se fosse algo natural…! Muito bem, eu gosto disso!
— Tenha um pouco de seriedade, por favor! Não é questão de segurança nacional, Elieser! O mundo está em risco…!
THUD — a batida de mão aberta na mesa assustou aos presentes.
— Acho que se lembra dos tempos da guerra… e dos soldados que a nossa nação enfrentou naquele período! — proclamou, quase em tom de manifesto. — Lembra dos super-soldados enviados pelos russos, não lembra, Grazianni…?!
O posicionamento forte calou a sala de reunião, trazendo à luz mais perguntas, quando se eram precisas respostas.
— Sim, eu lembro — confirmou, impassivo. — Soldados especialmente capazes, mais duráveis, velozes e fortes, onde cada um podia, com facilidade, despachar cinco dos nossos antes de enfim ser abatido…
— Então, e se…?!
— “E se houver alguma relação?”, você me pergunta… Bem, em momento algum descartamos essa possibilidade. Nossos planos no passado não foram bem-sucedidos e continuamos tentando, mas os eventos atuais se mostram uma porta valiosa.
Por um breve momento, Grazianni assumiu uma postura pensativa, contemplando o chão coberto de carpete acinzentado.
— As linhas disso podem se esticar além do que sabemos e, para todos os efeitos, não devemos questionar a participação de nossos maiores rivais políticos nesse esquema… A pergunta que fica é, com qual objetivo…?
Os traços de incerteza lhe fugiam do característico, pela primeira vez revelando a tamanha humanidade de seu caráter.
— Não me foi repassada qualquer informação — mentiu. — Eles mataram nossos homens, adentraram meu escritório… e ele apenas sorriu, antes de se jogar da janela. Querem zombar da gente, mostrar que estão por cima e que vão fazer o que desejarem com nosso país.
“Existe um impostor entre os seus números, Elieser Grazianni… um que não vai poupar esforços para ver esse castelinho de areia ruir!” — não fazia sentido acreditar nisso, em especial vindo da boca de um terrorista, contudo…
— … E ainda assim, deseja se opor ao nosso direito de lutar à altura e defender nosso interesse supremo, Agente McGee? — A encarou diretamente. — Iremos prosseguir com os trabalhos, descobrir a fonte dos superpoderes e, com sucesso, delimitar onde tamanho caos começou e como impedi-lo, por nossos próprios meios.
Alguma intuição — por mais ilógica — o informou da necessidade de investigar por si próprio.
— Agente Robinson — chamou, secamente. — Por obséquio, prossiga com os resultados dos achados.
— Certamente!
A nova contratada, de currículo promissor e querida quase universalmente, trouxe consigo um punhado de poucas folhas, escasso para um relatório formal e, confiante, tomou a frente.
— Em primeiro lugar, sinto frustrá-los com a notícia de não termos grandes avanços — iniciou. — Os exames realizados nos sujeitos de teste não apresentam anormalidades nos materiais genéticos ou apontam qualquer indicativo de uma característica mutável por manipulação de genomas, embora…
A expectativa trouxe uma inesperada tensão ao instante no qual ela virou para a próxima página do conjunto clipado.
— … Foram, sim, encontradas anormalidades em seus metabolismos, mais especificamente no que se diz respeito à síntese de proteínas importantes e processamento das reservas de energia.
— Por favor, seja breve quanto a tanto.
— Positivo — confirmou, cortês. — Pelo bem da brevidade, observamos que…
“Pedir ‘por favor’ e ‘por obséquio’...?” pensou Marilyn. “Não é de longe o Grazianni que eu conheço… O que um bom currículo, carisma e alguns mimos do presidente não fazem por alguém, huh?”
— … o processamento de energia deles atinge níveis mais próximos de um armazenamento perfeito, quase ausente de perdas desnecessárias para o ambiente. Isso não apenas os garante melhor processamento dos macronutrientes, mas a capacidade de manter níveis elevados de atividade por muito mais tempo.
— Entendido. E quanto ao processo de síntese proteica?
— Oh, claro! — virou outra página. — Bem… O sujeito [Ilusionista] demonstrou uma capacidade aumentada de produção de força muscular e picos de torque elevados, em consequência da posição ótima de suas fibras e a [Lírio Rosa]... deixe ver…
A última página do relatório exibiu os resultados mais surpreendentes.
— Ambos possuem modificações nas estruturas cerebrais, em especial o córtex pré-frontal, contudo, no caso do segundo espécime, essas mudanças são expressivas — tomou ar. — Toda a atividade cerebral do sujeito apresenta potente relação com seu sistema límbico, muito acima do ordinário para um humano. O processamento de informação também é mais veloz, tal qual a sinalização para reparo de tecidos danificados.
Ao fim, ela exibiu os padrões do eletroencefalograma de Lira Suzuki.
— Não sabemos as diretas consequências dessas mudanças a nível encefálico, porém, de algo podemos ter certeza: seja qual for a tecnologia ou os meios envolvidos na criação de tais sujeitos, os tornam terminantemente superiores a humanos ordinários.
Continuou.
— Eles pensam mais rápido, reagem mais depressa e se regeneram em velocidades absurdas… Não me surpreenderia em saber se tratarem de sujeitos similares aos encontrados previamente em território oponente.
As revelações arrancaram um peso das costas dos presentes, em parte ou completo. Conhecer o mínimo sobre a força inimiga os trouxe alívio, mas, por outro lado…
— Desejo continuar as pesquisas com o departamento, presidente — referiu-se diretamente a Elieser. — Existem verdades que ainda necessitam ser descobertas, portanto, proponho estudarmos suas capacidades mais a fundo.
Confiante, Robinson levou a mão ao peito e sorriu.
— Farei minha proposição formal ainda hoje, mas garanto que, se minhas hipóteses estiverem corretas, observaremos fenômenos interessantes.
O que se sabe é apenas um pequeno grão, próximo do já conhecido e sem explicação racional para “superpoderes”, restava, até provar-se o contrário, se tratar de mágica.
E pensar assim, para tal organização, seria dar um tiro no escuro.