Uma Cidade Pacata – Objetivos e Sacrifícios
Capítulo 174: Esmeraldas
— Tenho boas e más notícias, senhora Attwood — começou o médico, entre os relatos do prontuário e resultados de múltiplos exames. — A boa notícia é que seu marido se encontra fora de perigo.
Ouvir palavras tão reconfortantes removeu uma parte do grande peso nas costas da mulher, sob a forma de um suspiro pesado.
— Ele é um homem forte — disse em toda sua franqueza, antes de olhar para o leito ocupado. — Caso não fosse pela massa muscular e o preparo físico, chances são de que ele sequer teria suportado, mesmo protegido pela carcaça do veículo. Posso lhe assegurar que aquela explosão teria me matado, duas vezes, se estivesse no lugar dele.
Os monitores prosseguiram com o infinito bip-bip, por bem exibindo ondas estáveis e até pacíficas. Sedado e em estado de sono profundo, o homem de longa cabeleira loira, enfaixado quase da cabeça aos pés em função das queimaduras e traumas, não tinha noção da tensão nos arredores imediatos.
— Mas aqui vem a notícia ruim… — hesitou. — Não é uma certeza, mas existe a possibilidade de que ele possa ter que amputar a perna esquerda.
Por baixo das cobertas, a proteção mais robusta se destacava, gerando volume assimétrico ao se compararem os lados. A medida, usada para prevenir infecção, se tratava de uma última tentativa em preservar o membro.
— O dano vascular e neurológico foi significativo e mesmo que seja possível preservar o restante do membro estruturalmente, a perna ficará inútil do ponto de vista funcional. Estamos tentando conservar as estruturas, mas o risco de infecção é significativo… De toda forma, as atividades de trabalho atuais dele se tornam inviáveis.
O responsável por repassar as informações, Doutor Samuel Barnes, tocou a grade metálica da maca e olhou para Martin, em uma demonstração de simpatia pelo estado do pai de família.
— Vai ser um processo difícil para ele, psicologicamente falando. Perder o trabalho que tem feito por tantos anos e precisar lidar com a dependência aumentada, advinda da limitação física…
Para tanto, Alissa, de pé e em postura reflexiva, o questionou.
— … Essa é a má notícia, doutor?
— … Sim… — respondeu, cheio de certo pesar. — Ele pode se candidatar a ser beneficiário do governo. Provavelmente não vai ser tanto quanto ele ganhava antes, mas…
— … Que bom… — Lágrimas desceram até o queixo. — Que bom…!
Contra os princípios de biossegurança do local, Alissa se recostou na maca, envolveu os braços em torno do tronco dormente do marido e encostou a cabeça no centro de seu peito.
— … Que bom… Que bom que meu marido vai continuar vivo… — sorriu, plena entre o choro. — Corte o que precisar cortar, doutor… contanto que isso vá mantê-lo o melhor possível…!
— Senhora… não quer pensar um pouco melhor? É uma decisão a ser tomada com cautela e…!
— Vamos lidar com tudo isso do jeito que pudermos, assim como tivemos feito desde sempre — interrompeu, soando segura de si. — Não me interessa o quanto ele vai fazer no ano… Eu só quero o meu marido vivo!
A declaração de tamanha força o fez engolir as palavras cheias de termos técnicos e somente acenar em conformismo.
— Irei deixar a equipe de cirurgia ciente da decisão — sorriu de canto, em resignação. — Não se preocupe; somos uma equipe altamente especializada e iremos garantir o sucesso da operação.
— Eu não me preocupo — rebateu, balançando a cabeça em negação. — Mas, evite fazer promessas cheias de tanta certeza assim, certo? Alguém vai acabar te odiando por isso, algum dia.
Por um segundo, a solicitação o fez tremer dos pés à cabeça.
— … Pois bem… — limpou a garganta. — Até, e que tenha um bom dia.
— Até.
Doutor Barnes deixou o leito, deixando os dois a sós. Pela janela aberta, uma fina corrente de temperatura ideal fazia entrada, vinda do céu azul e iluminado, a despeito das dificuldades.
— Vai ficar tudo bem, querido — beijou-o de leve na testa.
Aquela não seria a primeira dificuldade dos vinte e dois anos juntos e, sem dúvidas, também não se faria insuperável.
Os anos de união forjaram correntes fortes em torno daquela família, inquebráveis frente aos maiores problemas.
— Tenho que ir agora… Preciso checar uma coisa.
Embora…
— Acabei de falar com o doutor! Seu pai vai ficar bem! A situação dele está sob controle.
Animada pelas boas notícias, Alissa deixou o quarto e deu de cara com um corredor pouco ocupado e bem decorado com plantas ornamentais. O lugar nem de longe se assemelhava à estrutura morta do hospital Elderlog, porém…
— Não é ótimo, Emily?! — bateu palmas, a ponto de explodir em contentamento.
Não importavam os tons belos de azul e verde, as cadeiras mais confortáveis ou a atmosfera mais iluminada e convidativa, quando a principal luz havia se apagado.
— É — respondeu, de forma seca. — É sim.
Emily não foi a mesma desde aquele dia, há uma semana.
— Filha… — O choque súbito a fez hesitar, potente a ponto de mandar pelo ralo o bom humor. — Precisando de alguma coisa? Com fome? Ou…
Antes de poder concluir, recebeu um fraco — mas veemente — aceno negativo, um que a dizia para não insistir.
— Certo… — retrocedeu, sentando-se ao lado dela. — Quando sentir que quer conversar, ou precisar de algo, eu…
A garota de temperamento vivaz e comunicativo se reduziu ao equivalente humano de uma vela apagada, inexpressiva e calada, isolada em um canto da própria cabeça.
Ver o pai estirado no meio da estrada a traumatizou e durante todo o trajeto, “me desculpe” foi a única coisa a escapar de seus lábios.
Ela repetiu a expressão por boa parte da viagem, até enfim desmaiar de exaustão, devido a tanto chorar.
Ao chegarem, a equipe médica encontrou nela algumas lesões, incluindo um braço quebrado em dois pontos distintos. Uma imobilização com gesso se seguiu da redução das fraturas e, ao fim…
— O seu braço não dói mais, filha? — Alissa insistiu em tentar puxar assunto. — Não passou nem uma semana direito com o gesso…! Puxou a força do seu pai, hahaha!
Os médicos ficaram espantados ao perceberem que os processos de ossificação e remodelamento já haviam se completado em meros cinco dias, quando deveriam durar vários meses.
— Aproveitando que estamos na capital, o que acha de irmos fazer compras? Só nós duas! Vamos, vai ser legal!
Em conjunto, foi realizado rastreio para possível Síndrome de Transtorno Pós-Traumático, mas, mediante a sugestão de consultas particulares com a ala de psicologia, houve negação.
“Filha… fala comigo… Nem que seja daquele jeito… Por favor…”
Emily teve um acesso de fúria ao se deparar com a insistência dos profissionais, cuspindo no rosto de um dos médicos. Foi só depois desse episódio que optou por se isolar.
Ela sofria — e mais que quando o ataque terrorista na escola aconteceu — e, mais uma vez, alcançá-la se provava quase impossível de fazer.
Ferrugem danificou as fortes correntes, as tornando finas e frágeis, a ponto de se partirem com um sopro.
— … Huh?! Para onde tá indo, Emily…?
A garota se levantou, olhou para frente — cansada — e falou:
— Respirar.
A voz, por muito pouco audível, marcou o começo de uma caminhada rígida e acelerada na direção da varanda mais próxima, longe o bastante dali para que não pudesse mais vê-la.
— Emily, eu…!
A adolescente fechou o punho com firmeza, a ponto da tamanha força estremecer até o último fio de cabelo; um aviso para sequer tentar.
Gulp — foi a primeira vez em que Alissa escutou com clareza o som da própria saliva a escorrer pela garganta.
… … …
— Haaah… — suspirou, quando o sol agradável e o vento gentil entraram entre as dobras do pijama folgado do hospital.
O segundo andar não garantia muita visão dos arredores de Helena, capital de Montana, por mais que não houvesse muitos prédios e, em tal sentido, não era tão diferente de Elderlog.
— A capital, huh? Grande coisa… — zombou, a ponto de revirar os olhos.
Nada de tão notório se destacava na paisagem cheia de árvores e casas ordinárias, com exceção de uma catedral, creme e vermelha, que compartilha o nome com o lugar.
Helena até tinha as mesmas montanhas ao fundo, delimitando um limite distante demais para se atingir.
— … — A quantidade de assuntos e negócios inacabados a se pensar superava sua capacidade para tal em escalas astronômicas.
— … Emily…?
Portanto, ela implorou — rezou e pediu às forças do universo — para usar o máximo possível de um mínimo de paz e tranquilidade.
— Emily…! É você, maninha! Faz tanto tempo que a gente não se vê!
E também, para que nenhum enxerido se achasse no direito de tomar algo tão necessário.
— Haaah… — exalou, exausta. “Parece que foi pedir demais…”
Ela sabia que ele viria hoje, apenas não imaginou decidir aparecer em um instante pior.
— Oi, irmãzinha! — acenou, sorrindo de canto. — Quando fiquei sabendo da situação do nosso pai, vim o mais rápido possível… E com você, tá tudo bem? Fiquei sabendo que quebrou um braço…
“Por favor, que algo me dê forças para passar por essa…” implorou mais uma vez, em busca de não ser em vão. — Oi, David…
Fornecer um sorriso quebrado a ele demandou energia que a irmã mais nova sequer sabia ter; ao invés de ser um evento natural, conversar com ele sob tais circunstâncias assumiu tom de obrigação.
— Fiquei sabendo de toda pela nossa mãe… Emily, você não precisa se sentir culpada, tá certo? Foi uma tragédia, algo que não dá para só controlar. Tenho certeza que o pai não te culpa por nada.
O semblante preocupado e verdadeiramente compreensivo de David a fez estremecer em desgosto e agonia; se as coisas fossem tão simples quanto diz, ficaria agradecida.
— Você, a mãe e o pai, quando saírem daqui, vão passar a morar comigo lá em Olympia — afirmou. — Podem ficar o tempo que quiserem lá, certo? Vou convencer ela, querendo ou não…!
O humor positivo e otimista a arranhava por dentro, em conflito direto e mortal contra as sombras de seu peito. Não havia como suportar, nem por mais uma frase.
— Então, sendo assim…!
— David — cortou. — Você veio ver o papai, né? Ele tá bem ali.
Pela primeira vez na interação, os dois pares de olhos verdes se bateram e ambos viram o que o outro se tornou.
De um lado, um homem alto e vivaz, de expressões suaves, esperança e boas roupas e, do outro, apenas Emily Attwood.
— Basta seguir esse corredor e virar à esquerda. É o terceiro quarto do corredor, então não vai ter como perder — afirmou, de jeito frio e direto. — Quanto a mim, estou viva, muito obrigada por se preocupar.
A acidez do discurso, engolida de última hora, repousava na garganta, aguardando o melhor momento para escapar, vomitada em emoções engarrafadas.
— O papai vai sobreviver, por mais que tenha que perder uma perna… Ele não vai voltar a trabalhar como lenhador. É isso. É tudo o que eu tenho para te dizer e é como as coisas estão.
David não a entendia — e Emily não esperava que o fizesse —; por ora, precisava colocar a cabeça no lugar e ele não a estaria ajudando com discursos padronizados.
— … Emily… depois do que a nossa mãe falou, eu não tenho como não me preocupar com você, irmãzinha…
“Não caiu no meu aviso… Eu deveria ter imaginado.”
— Não pode ficar se culpando por uma coisa que não foi culpa sua! — exclamou, alto. — Isso não é comportamento seu, irmãzinha! Quando a mãe me disse… Olha, eu vim aqui porque fiquei com medo, também! Medo de alguma coisa acontecer com você!
— Haha…! — riu secamente. — Não, eu não sou estúpida de fazer algo como me matar nem nada do tipo! Até porque isso não ia ajudar em nada.
— Emily, não foi uma piada…!
— Eu sei. Também não foi, aqui do meu lado. Você é perfeito, maninho; é o que te faz especial.
O mero garoto, que um dia deixou a pacata Elderlog em busca de um sonho, se tornou um grande homem, cheio de sucesso e notoriedade, conhecido por grande parte do país.
— Parabéns por ter terminado a sua faculdade de Direito, maninho. Espero que consiga se dar bem na sua carreira na política… Quer dizer, boa parte do estado gosta de como você fala na TV!
David nada disse, conforme os dedos finos de sua irmã deslizaram pela camisa social branca, terminando em três batidinhas nas costas.
— A Angie também veio? Diz para ela que eu acompanho os desfiles vez ou outra; ela é muito bonita! Casou bem! — gargalhou baixo. — Vou comprar uma coisa para o Luke, também… afinal, que tia eu seria se aparecesse lá sem um presente? Quanto tempo faz que ele nasceu? Um ano?
A porta mecânica do elevador abriu, permitindo a entrada.
— Deveria visitar mais. Papai e mamãe às vezes falam que você tem atrasado em dar notícias… É uma pena que sempre esteja tão ocupado.
— … Emily…! Espera aí…!
Fecharam, indo rumo ao último andar. David pensou em segui-la, mas antes de pressionar o botão, viu a própria mão, trêmula, graças a um desconhecido tipo de medo.
— … Emily…
[...]
Brrr… Brrr…
— Atende... Vai, atende...!
Brrr… Brrr… Bip.
— Alô?
"Ah, graças a Deus...!" comemorou a recepção da chamada. — Emily, aqui é a Ann, de Elderlog! Será que dá para a gente conversar?!