Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim

Capítulo 168: Conflito de Coração

[Coagulação].

O fenômeno foi diferente de qualquer coisa que ele pudesse imaginar; como se fosse simples, o sangue se revirou e torceu, no comportamento de uma gosma viva, extensão do corpo da criatura de cabelos rosados e formato humano.

— Khh…! — Steve respondeu com um passo para trás, intimidado.

Pela primeira vez, ela sairia da defensiva, abandonando a brincadeira de só fugir e zombar dos ataques fracos por ele lançados. A partir de agora, o embate se iniciaria para valer.

— Ehehehehe! — riu, em mórbidos tons, admirando-o de cima a baixo. — Olha só! Não é legal o que eu consigo fazer?

Um tentáculo de sangue desafiou a gravidade, ereto frente ao braço direito estendido. Dele, um pequeno pedaço se separou, assumindo a forma de uma esfera rubra, presa ao corpo pela pele da ponta do dedo indicador.

— Cada célula é uma extensão do meu corpo. Enquanto um pedacinho de mim existir, por menorzinho que seja, eu posso estar em todos os lugares!

O líquido pulsante refletiu os arredores na superfície coesa, mostrando ao próprio Evans na camada vermelha; uma bomba de vida, do tipo mais perigoso.

THWIP!

— Ahh…! — Por puro reflexo, ele desviou do projétil em velocidade alarmante, mirado direto no centro do rosto.

O primeiro pensamento do rapaz foi checar se alguma gotícula do fluido dela havia restado em sua bochecha direita, pela qual passou de raspão. Felizmente, o resultado foi negativo.

— Os homens de caras feias e frias, que faziam desenhos e escreviam no papel… Os cientistas…? — pensou, iniciando um discurso sombrio. — Eles sempre diziam que eu fui um erro.

“Aí vem mais coisa…!”

Trêmulo de medo, o flamejante acendeu as chamas ao longo do corpo, preparado como podia e sabia — do jeito mais ineficaz — para combater a subida do fluxo externo do fluido da vida.

— Mas eles me fizeram mesmo assim…!— abriu outro largo sorriso. — Eles quiseram ver até onde podiam chegar! E foi assim que euzinha nasci!

“Eu já entendi que ela é louca… mas isso aí já é demais…!”

Sangue infinito fluiu de cada espaço corporal no corpo da aparente adolescente de faculdades mentais questionáveis, assumindo formatos serpentinos, de veloz movimentação.

“Preciso me defender…! Se esse sangue tocar em mim, acabou…!”

Impondo o máximo de foco, Steve expandiu a área de emissão de calor em torno do corpo para pouco mais de um metro. Ao redor dele, o ar ferveu e tremeu, aquecido ao máximo limite suportado.

Como qualquer célula viva, aquelas podiam ser destruídas por altas temperaturas, logo, se ele puder…

— Eles me davam comida, me deixavam rastejar pelo chão frio e sujo…! — exclamou em meio a um estado de intenso frenesi, ao tempo que as partículas vermelhas vibravam e se contorciam.

— Hein…?! O sangue…!

As serpentes sequer se incomodaram em ir na direção dele, tomando rumos próprios em direção aos quartos mais próximos e, também, à pilha de carne esmagada da qual ela veio.

— Me chamavam de “falha”, mas no fundo, eles tinham medo…! Medo do próprio erro que se juntaram para trazer ao mundo…!

— Khh…!

O tentáculo desmembrado de sangue adentrou a pilha de cadáveres, causando pronta mudança no estado da carne.

Eu também posso fazer eles viverem de novo! Fazê-los sofrerem mais… sofrerem como eu sofri quando eles me olharam como um animalzinho em cativeiro…!

Faltaram palavras na mente do garoto, para definir a nova escala de horrores do fenômeno a se desenrolar frente aos olhos. Parado, e sem mais produzir fogo ou calor, viveu o frio na espinha, mediante o horror tão cruel.

E eles vão estar sempre aqui, comigo! Todos… juntinhos de mim! Ahahahahaha!

Globos oculares o admiravam com acusação e os membros — braços e pernas — devagar se esgueiravam para fora dos quartos, pálidos e gélidos.

— É… sua culpa… Sua… sua culpa…

A pilha de carne estremeceu, se costurou aos poucos, e dela saíram alguns rostos humanos.

— Dói… Morrer de novo… Dói… Quero… parar de morrer…

A carne morta ganhava nova e deturpada vida, cheia de sofrimento e agonia.

— Acha que pode salvá-los, Stevie? Dá para fazer a dor acabar?

Os dentes dele batiam uns nos outros; sem ação, para além de travar. 

De propósito, ela fazia aqueles barulhos horríveis TRAAK… TRAAK… TRAAK… ao fim de cada passo, quebrando e consertando as vértebras do próprio pescoço, por meio de movimentos bruscos.

— Será que dá para queimar eles? Será que eles vão morrer? Será que tem como fazer funcionar de algum jeitinho especial?

Os gemidos de dor poluíram o ambiente dos corredores vazios, vindos das duas dezenas de cadáveres em movimentação lenta.

— Vai ser nas cabeças deles, tipo para destruir os zumbis dos filmes? Ou no corpo, para causar uma destruição maior? Não tem curiosidade? — inquiriu, curiosa. — Como prefere acabar com eles, hein, Steviezinho? Me fala!

Alguns não tinham membros, outros carregavam buracos hemorrágicos e incompatíveis com a vida, mantidos e amarrados pela necromancia daquele demônio.

— Eu não sinto meus braços… mas… eles continuando doendo… Por que continuam doendo…?

Ele tremeu, sentiu o estômago revirar e as pernas hesitarem.

— Me sinto tão feia sem meu rosto…

Por um breve instante, Steve se desconectou da realidade, deixando-se ceder ao agarro daquele terrível sentimento.

— Não acho meus olhos… Onde estão meus olhos…? Por que eu não consigo andar…? Mãe, pai…!

Um tipo único de desesperança, envolta no mais obscuro terror.

— Foi assim que eles olharam para mim quando descobriram que não podiam fazer nada…! Ahahahaha!

Hiperventilação. De um segundo a outro, os sons externos se abafaram, cedendo espaço aos suspiros do coração em tempo de parar.

— Ei, ei, Steviezinho! Vai pedir ajuda? Vai chorar de medo? — provocou. — Quer que alguém te salve do monstro? O papai? Talvez… a mamãe?

A criatura cresceu, imbatível, no interior do coração abalado do manipulador de chamas.

— O Doutor aqui do hospital me chamou de “Pandora”, mas eu não sei o que isso significa, então vou deixar para lá!

Em um lapso de segundo, torceu cada osso do corpo em torno do próprio eixo, como se estivesse se alongando. A exibição macabra evidenciou as qualidades elásticas da pele, a expandir, mas sem rasgar.

— Os cientistas evitavam me dar um nome… Só me chamavam de um monte de números e letras! Eram um bando de chatos… Cha-tos!

A perspectiva mudou e a caça se tornou caçador; de dedos em garra, ergueu os braços acima da cabeça, marchando em perseguição.

— Não fuja, Steviezinho! — anunciaram os ecos da voz brincante no corredor. — Nós dois podemos ser amiguinhos! Vamos ficar juntinhos, até quando você morrer! Aí eu vou te trazer, de novo e de novo!

“Não… Não dá...!”

Sem palavras, ele passou a fugir sem olhar para trás.

— Eu tô te vendo…! — cantou como uma criança. — Eu te vejo de todos os lugares!

Lutar ficou fora de questão; ele precisava fugir. Não havia como brigar contra algo daquele porte, na posição de mero humano, mortal e cheio de medos.

“Uuuurgh…!” Ansiosos, os olhos caçavam um local para se esconder, nenhum bom o bastante.

— Eu te ouço respirando, Stevie…! — A voz veio de perto; perto demais. — Eu sei onde você tá o tempo todinho!

CLANK!

A grade metálica da ventilação se retorceu em estouro e dela saíram membros e rosto contorcidos.

— Te achei! — sorriu, gargalhando. — Eu venci o jogo!

As portas do corredor escuro se abriram em simultâneo e delas surgiram os mais dolorosos gemidos de agonia; os pacientes, roubados de sua paz por tal necromancia, a ajudavam a aterrorizá-lo.

— Não tem para onde correr, Stevie — falou, em voz surpreendentemente doce e inocente. — Eu venci e não tem round 2!

[...]

— Ava… Olivia…!

Aquelas pupilas não mais brilhavam; aquela pele, tão pálida, marcava as veias azuis e proeminentes, congeladas pelo sopro da morte.

— Emily, essas não são as suas amigas…! — Ann tentou intervir. — Isso é obra daquela…!

Fantasmas, trazidos de volta para assombrá-la por uma última vez, e tentar arrastá-la para o exato fosso no inferno ao qual foram condenadas pelo diabo que controla a carne.

… Me desculpem…!

A presidente do antigo clube caiu de joelhos, cheia de nova energia em carga explosiva, vinda do aperto doloroso no fundo do peito.

— Me desculpem por não ter ficado lá com vocês… me desculpem por ter sido ausente… Eu… Eu sinto muito, vocês duas…!

As lágrimas foram reais, manchando o chão cheio de cacos de vidro. Cair sobre a superfície cheia de perigos rasgou a pele nas mãos da garota, sem diferença alguma para seu estado interno.

— Vocês não sabem o quanto eu quis estar lá… — Quase engasgou ao falar. — Não sabem o quanto eu pensei em como vocês devem ter sofrido…

“Emily…”

Presenciar tamanho sofrimento chegava perto de causar dor física em Ann-Marie; ela sabia se tratar de apenas mais uma brincadeira maldosa da manipuladora de cadáveres, porém, o aperto em seu peito dizia algo mais.

Mesmo após a morte, havia um pouco delas ali e, por mais que desejasse salvá-la de tamanha mentira, o outro lado de sua alma a pedia para respeitar o momento e observar.

“Isso é tão cruel… Preciso tirar nós duas daqui, e voltar para ajudar o Steve…!”

Não havia momento para indecisão; alguns argumentos e remoção do peso emocional, e aquela piada acabaria.

… … …

— … Eu sei que nada que eu fale vá fazer nenhum sentido agora… É tarde demais…! — A dor em sua voz saltou à frente. — Mas… mas…! Eu pensei em vocês em cada segundo! Eu queria estar lá… Eu queria…!

As dores no corpo sequer se aproximavam do tormento dentro do coração; mesmo ciente da verdade, a Attwood vivia um conflito sem fim.

— … Me perdoem por não poder ter salvo vocês… Me desculpem… por tudo…!

O choro ecoou pelas paredes, propagado ao infinito vazio do espaço morto.

— … Emily, poupe suas lágrimas… Eu nunca vou te perdoar.

Ava foi a primeira a dar um passo à frente. A menor do grupo usava as roupas do hospital, perfurando Emily com uma encarada vazia, entre os fios curtos e loiros, desarrumados.

— Eu sofri e você sabia disso — afirmou. — Você sempre soube e falhou em me proteger. Eu chorei, gritei… mas você nunca ouviu e sempre teve medo de criar discórdia. Eu te odeio, Emily.

— Não queremos saber das suas palavras vazias, Emily. O que aconteceu, aconteceu; não faz sentido ficar se agarrando em coisas que não pode resolver.

Olivia manteve as roupas do dia da tragédia — o moletom rosa e o jeans, sujos de cinzas —, a portar no pescoço uma grande marca roxa, em forma de mão espalmada.

— Nada que diga vai curar a nossa dor, sua egoísta. Nós sofremos, bem embaixo do seu nariz e vem nos dizer agora que sente muito e que queria que nada disso tivesse acontecido? Quanta coragem…

— Deveria ter morrido nesse hospital, logo de uma vez… A gente vai corrigir esse erro.

As duas se aproximaram mais, fixadas nela com o aspecto frio do julgamento indiferente.

— Emily…! — Ann gritou, pondo-se adiante. — Sai dessa…! Nada disso é verdade!

A moça de marias-chiquinhas assumiu postura de combate, repleta de tensão quanto à necessidade de cair no soco com dois cadáveres.

“Conhecendo esse poder, não dá para garantir que elas vão cair, nem com golpes mais intensos!”

As duas sequer reagiram à ameaça, rumando em passos lentos e robóticos na direção da amiga.

— Olha, elas estão sendo controladas! — tentou raciocinar com a menina devastada. — Elas nunca iam dizer coisas assim para você, Emily! Se levanta!

Ela não respondeu. Estática, fitava o chão de cacos e seu próprio sangue, a ponto de esquecer a dor do braço cheio de marcas roxas. A adolescente tinha seu momento, perdida e absorta.

“Ah, merda…!” Ciente de ter que lutar, a usuária de insetos abandonou a hesitação.

Ann correu até Olivia e desferiu um firme soco no rosto do cadáver reanimado, incapaz de reagir.

— … Nojento…! — balançou a mão, percebendo-a gosmenta e fria.

A grande Olivia rolou no chão sem oferecer resistência, de modo bizarro; na posição de um mero saco móvel de ossos e carne, caiu mole e largada.

— … Emily… — O cadáver derrubado se virou no chão. — Não me faça sofrer mais… Não me deixa mais sentir tanto frio…

Sem coordenação para se levantar, o corpo se arrastou pelo chão, recebendo vários cortes na pele frágil e desnutrida.

— … Sobrou você…!

O chute mirado no centro do peito desestabilizou a pequena Ava, que voou por quase dois metros, antes de cair sentada.

“Eu não tô afim de continuar batendo nelas…”

Ver as duas terem problemas em se locomover causava pena, além da óbvia impressão de estar fazendo algo errado.

“... Mas se eu não tirar as duas do caminho, vão continuar atrapalhando o caminho! Droga… A Emily tá muito desestabilizada para pensar direito! E ainda tem o Steve…”

A ideia de que ele pudesse estar passando perigo congelou-lhe o espírito, contribuindo com o impasse gerado pela falta de tempo.

“Não tem como saber direito o que tá rolando lá… fora essas explosões…”

— Emily, sua vadia… se vendendo pelas simpatias de um cara qualquer… trocando as nossas vidas pela dele…

Olivia se agarrou na parede e começou a escalá-la para ficar de pé. Já parcialmente reerguida,os braços caídos e letárgicos balançaram, como os de um verdadeiro zumbi.

— Ele não nos salvou… não nos protegeu… e nem você, sua egoísta — disse. — No final, parece que o que todos diziam sobre você estava certo…

— Você não precisa ouví-las, Emily! Estão sendo manipuladas! As duas morreram… Isso é só a carne que aquela maluca tá usando…!

Ann re-preparou a postura de combate, preparada para um novo avanço do par, até…

— … Hhhkh…! — Surpresa afiada rasgou-lhe o coração, ao notar o novo grande fator na sala.

— Os nossos demônios vão ser sempre parte de nós… e eles vão nos acompanhar por todo lugar… — complementou Ava, posando ao lado.

… … …

A princípio, a controladora de insetos não pôde acreditar no que viu.

— Morra, vivendo a sua fama de queridinha por todos, Emily Attwood.

“... Não pode ser…”

Paralisada pelo feixe veloz de pensamentos e impressões, despertou ao fim do primeiro passo, quando os restos em sobra das vidraças se partiram em milhares.

— Isso… Isso é mau…! Emily, foge…!

A reação de empurrar a menina destroçada por dentro ao chão veio por puro instinto quando, por centímetros, sua cabeça cabisbaixa não virou uma pilha de geleia de carne.

— … Até onde o poder dela vai…?

O ataque culminou em um buraco circular na parede da recepção, potente a fazer poeira esvoaçar.

— … Será possível que não haja um corpo tão destruído que não dê para manipular…?

A mão óssea, chamuscada em quase cinzas, se reergueu a um novo golpe. Primeiro, o ar se distorceu, tomou forma e a vibração se condensou.

— … Nem o fogo… Nem o fogo destruiu por completo…

E estourou, levando consigo os rastros das destruições passadas.



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