Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim
Capítulo 167: Fator Imprevisto
— Haah… Haah… Ugh… Hnkh…! — De joelhos no chão, Emily sofria as dolorosas pontadas difusas ao longo de seu braço direito.
Ann-Marie, ao lado, tentava prestar algum suporte, sem ter muito para fazer com relação à situação horrível na qual o grupo se encaixou por infeliz coincidência.
“Ela não consegue mais lutar… e nem eu…”
Não havia muito a se fazer; a depender das habilidades estranhas da bizarra monstruosidade sorridente, o único destino real seria a morte.
“Droga…!” mordeu a ponta da língua, enfurecida a ponto de querer chorar.
A jovem de marias-chiquinhas castanhas apertou os dedos contra a face interna do punho esquerdo até quase tirar sangue, tomada por um profundo senso de inutilidade.
“Quem decidiu que tinha que ser assim?! Por que que eu só posso comandar uns insetos?!”
Além de causar algumas distrações e talvez usar dos números para a vitória, lidar com um contexto tão limitado restringe seu escopo de ação a níveis penosos.
“Ah, mas que porcaria…!” levantou, apoiando o braço saudável de Emily ao redor do pescoço, erguendo-a do solo. — Steve… vê se só não morre, caramba…!
— Vou tentar o meu melhor…! — respondeu o rapaz de cabelos em padrão e cor de chamas. — Agora… SÓ VAI!
— … Ehehehehehe!
A psicopata, um verdadeiro cadáver reanimado, tentou partir para cima de Ann e Emily, impedida de avançar pelo próprio Steve, ao atirar uma pequena coluna de fogo em seu caminho.
— Ah, mas não vai passar…! — preparou-se para lançar outro ataque de mesmo nível, chamando o fogo ao redor dos braços, dando-lhe alguma forma. — Aqui… é entre eu e você…!
Ann tomou distância com a acabada forma de Emily, já a ponto de sucumbir em decorrência do uso excessivo de seus poderes. Usando o máximo de sua capacidade física, ela tentava correr o mais depressa em rumo à saída.
— Vamos, Emily…! Vamos…! Um passo…! Dois passos…!
— Nnngh… — A Attwood flutuava em meio à intensa fadiga. — Ai, minha cabeça… Eu quero… quero vomitar…
— Depois…! — A urgiu a continuar. — A gente tem que sair, antes que exploda…! Vamos…!
O desespero só aumentou ao escutar os sons de explosão e ver as variações nos níveis e cor da fraca luz vinda do lado de fora.
As chamas de Steve coloriam o corredor em ocasião com fulgores de alaranjado dançante e, mesmo assim, ela recusou-se a olhar para trás.
“A gente precisa fazer funcionar…!”
Não sabia como, ou se sequer sua participação faria qualquer impacto positivo no embate, mas o plano era claro: Ann iria deixar Emily do lado de fora e retornar para ajudar seu amigo.
“Deve ter algum canto relativamente seguro pelas imediações, onde não vão chegar as explosões”, pensou. “Eu tenho que chegar até lá, o mais cedo quanto possível…!”
Comparada à si, Emily era grande e um tanto mais pesada, deixando o trabalho mais difícil. Passo por passo, a ex-carateca arrastava uma vida importante.
— Não é sobre sair vitorioso… — falou, mais para si própria do que para a Attwood. — É sobre sair com vida…! Força, Emily…!
Tomou o desvio à esquerda, única possibilidade para além de retroceder. Dali, viu de perto a mesa da recepção, tomada pelo foco mais forte de luz externa.
— … A gente vai conseguir…!
Os pedacinhos de vidro — antes duas portas cristalinas — dançaram sob seus pés, conforme o foco quase cegante do lado de fora ficava mais e mais claro; a primeira metade do plano viria sem cerimônias.
— Só mais alguns passos, Emily…! Me ajuda…! Por favor, não desiste agora! Eu vou te tirar desse inferno… e nós todos vamos sair vivos de mais um pesadelo…!
Outro passo encaixou e, quando ajustou o contato do corpo contra seu próprio…
— … Emily…?
O movimento parou e, de repente, a densa motivação, construída para dar-lhes a energia de concluir mais um passo, sumiu como vapor d’água ao abandonar a fervura.
— … Emily… é você…
“... Mas o que é isso…?”
— … Sentimos tanto a sua falta, Emily… Estamos tão felizes de podermos te ver de novo…
Outra visão grotesca se estabeleceu frente às duas, vinda da porta de entrada, criada com a justa intenção de preencher o último espaço entre a agonia e a liberdade.
— … Pensei que não íamos mais nos ver… Senti vontade de chorar quando pensei isso… Eu queria tanto te ver, Emily…
“... Ah, não…”
A emoção a tomar conta de Ann ao perceber foi diferente de medo ou terror, afinal, ao contrário das outras várias visões de cadáveres e sangue, grotescas e chocantes…
— … Huh…? — Emily levantou a cabeça, atraída pela sonoridade familiar daquelas vozes.
— … Faz tanto tempo… tanto tempo…
… aquela conseguia ser simplesmente cruel demais para se acreditar.
— Eh…? — Tomada por uma estranha explosão de energia, a presidente do ex-clube reagiu. — Mas… como…
— Emily, elas NÃO SÃO o que fazem parecer! Isso aí é trabalho da…! — Ann tentou alertar, interrompida pela explosão de emoção.
— Ava…! Olivia…! — desvencilhou-se do abraço, lágrimas refletidas no brilho dos olhos verdes.
[...]
— … Você tá acabada na minha mão…!
— Nossa, que bruto…!
A rajada de fogo, lançada como um chicote na direção da adolescente desnuda, errou por ampla margem, desviada com um básico deslocamento do corpo para trás.
“Ugh…!” Steve lamentou o resultado do ataque. — Agora, vê se pega essa…!
Pondo o máximo de foco, acumulou as chamas do braço esquerdo na forma de um projétil pontiagudo, repetindo a estratégia usada para neutralizar uma das amálgamas de cadáver.
— … Toma…! — atirou, lançando a flecha em alta velocidade, rumo à inimiga.
— Ehehehehe…! — Como resposta, a jovem rosada deu passos para trás, desviando para a esquerda no último segundo. — Não vai acertar nenhuma garota assim!
A flecha se desfez no ar sem causar maiores danos, trazendo mais frustração para o rapaz incapaz de causar danos significativos.
“Os meus ataques não conectam de jeito nenhum!”
Fogo é a fraqueza e perceber foi fácil; por mais fracas que fossem as labaredas, ela buscava evadir-se de todas as tentativas.
“O golpe que a Emily deu já nem existe mais no corpo dela, mas as queimaduras, desde bem antes, ainda continuam um pouco…”
O plano inicial era o de continuar pressionando, causando dano por dano, infelizmente impraticável.
— Ehehe, Stevie! — zombou dele, mostrando a língua. — Parece que você não é lá muito bom em controlar a forma dos seus ataques! O seu foguinho não tem substância!
O balanço do braço esquerdo gerou uma lâmina de fogo, desfeita antes de sequer ter a possibilidade de acertá-la.
— Não, não! Assim é errado, Stevie…! — saltou para trás, apoiada na postura de sapo no chão sangrento. — Tem que colocar do “aaaargh” no seu próximo ataque…! Nunca vai me atingir desse jeito, seu bobinho!
“... Ela tá só zombando de mim…!” focou o próximo amontoado de fogo na mão destra, acumulado em formato de esfera.
Mesmo detentor da vantagem elemental sobre a soberba regeneração da desconhecida de qualidades bizarras, a diferença de habilidade ditava o rumo do real ganhador do embate.
A impressão era a de jogar contra um chefão ao menos trinta níveis mais forte no videogame, onde estratégia viria mais a calhar que qualquer força, porém a diferença continuaria grande demais.
“Droga, se bem que ela tem razão, por mais que eu não queira admitir…!” refletiu. “O meu fogo se desfaz muito fácil! Fica difícil acertar um ataque consistente!”
Raros foram os momentos onde “chamas sólidas” nasceram de sua habilidade, pois, em primeiro lugar, a prática requer não só imensa concentração…
“... Fazer isso demanda energia para caramba… Uma energia que eu não tenho!”
Ele esteve treinando a aplicação de forma ao fogo, mas a dificuldade fundamental em se fazer acontecer perdurava a bloquear o menor dos progressos.
“Aliás, como é que você dá forma para fogo?!” atirou o projétil, rumando em cheio ao chão próximo dos pés dela. “A gente tá falando de energia, não matéria…!”
— Oops…! Essa passou perto! — pulou de forma atlética e atenta. — Quase me queimei um pouquinho! Ehehe…!
“Como é que eu vou dar um jeito nisso?!”
Chamar a luta de “peso demais para se levantar” se tornava redundante e desnecessário a tal altura e, portanto, o Evans urgia de uma nova e melhor estratégia.
— Ei, Steviezinho… — chamou por ele de jeito peculiar. — Eu percebi que você tem olhado bastante para o meu corpo agora…
O tom um pouco mais grave, na tentativa de ser sedutor, acompanhou gestos deliberados para tirá-lo do foco. Devagar, a estranha deslizou o indicador sobre os lábios, desenhando círculos na boca em biquinho.
— Agora que os meus ferimentos estão quase todos curados, pode me contar, tá bom? E seja bem honesto! — O encarou com os penetrantes olhos azuis, em contraste direto ao cabelo rosado. — Olhar para o meu corpo te faz sentir diferente? Tipo… com vontade de tocar?
Os pedaços ainda expostos da carne já terminavam as costuras finais, restando somente algumas sutis marcas superficiais onde, antes, estavam as queimaduras mais profundas.
— Vai, me responde! — O instigou mais, virando de costas. — Eu vi nas lembranças das enfermeiras que, para agradar os homens, elas faziam coisas tipo assim, ou assim… Hmm… Talvez eu devesse mexer minha bunda desse jeito…?
— … Eu vou responder isso no inferno…!
A velocidade bruta do projétil flamejante surpreendeu a despreparada Anastasia, dotada de pouco tempo para evitar o impacto.
— Eh…?
Ao contrário das outras, aquela bola de fogo explodiu ao fim do desvio para a esquerda, encapsulando da cabeça na súbita liberação de calor e brilho.
— … Ehehehehe…!
Quando o fulgor acabou, a real ineficácia do ataque se fez exposta; apenas pequenas queimaduras e um pouco de cabelo chamuscado tomavam a metade direita de seu rosto, já em processo de cura.
— Bom saber disso! Significa que vou descobrir logo! — A rosada abriu um sorriso largo e repleto de malícia.
“Aí vem ela…!”
— Se certifique de só usar as melhores palavras para me descrever, Steviezinho!
A menina de corpo magro cortou o corredor em uma demonstração de velocidade surpreendente, fechando o espaço entre ambos tão depressa quanto um olho pode piscar.
Antes de perceber, Steve já não tinha mais tempo para preparar algo sofisticado. A movimentação comparável à agilidade de um ninja pareceu vir de todos os lados em soma, confundindo os sentidos.
O sangue de veias e artérias ferveu até a superfície e jorrou pelos poros do demônio rosado em formato de mulher, adquirindo vida própria em uma investida feral.
[...]
— Chamando base…! Chamando base! — Furioso e desconcertado, o agente líder da operação chamou pelo headset. — Tivemos problemas de execução no plano! Não há como assegurar a condição da operação! A missão falhou! Repito, a missão falhou!
Apenas mais três minutos restavam para a explosão das bombas e nenhum sinal de resposta ou retorno de seus homens. A tal altura, Barry já não se aguentava na cadeira, arrancando os próprios cabelos em pânico e apreensão.
— Eu sabia… Eu sabia…! Não tinha como isso dar certo…! — A batida da mão espalmada contra a parede da van mandou um eco alto. — Fazer isso foi coisa de louco…!
Os agentes responsáveis já deveriam ter saído e, agora, todos já deveriam estar ao menos uma ou duas milhas distantes do foco da explosão.
— Precisamos reportar essa falha… Isso… Isso é inadmissível…
As filmagens do drone exibiram o mais limpo cenário de destruição até o instante presente. O perímetro, isolado pelas campanhas de desinformação e a falta de energia, ao menos se preservou intacto.
— Huh?! Mas como…? O quê?!
De repente, algo afetou o voo estável do drone e o tirou de posição, trazendo-o ao chão em velocidade alarmante.
— … Mas que mentira… — suspirou, incrédulo com a descoberta.
Barry secou um suor inexistente da testa, em uma tentativa deliberada de se certificar da realidade de não estar alucinando.
— Dedos humanos… Foram dedos humanos…
Os presenciou centésimos de segundo antes da filmagem se perder e o contato com o drone ser cortado de vez. Depressa demais, uma mão pálida se sobrepôs à lente e a forçou contra o concreto da calçada.
— … Huh…?!
A mão pálida se esticou para o interior da van, agarrando-se à estrutura de metal na tentativa de entrar.
— Acelera…! ACELERA ESSE CARRO…!
Enrolou os dedos de um jeito teatral e sem pressa, dando um leve impulso para frente.
— ACE… — A palavra morreu em sua garganta. — … Oh, Deus…
O condutor do veículo se encontrava irresponsivo, largado no banco e, ao lado dele, o auxiliar no comando do transporte.
Barry não teve certeza, mas se tivesse que apostar, diria que os dois estão mortos.
— Hein…?
— … — O sujeito a entrar o olhou no fundo da alma, sem dizer uma palavra.
Uma garota baixinha, talvez não mais velha que dezesseis ou dezessete anos, dotada de cabelos lisos e castanhos, bem densos e unidos a um olhar penetrante, embora vago, ainda mais definido pelo fato de boca e nariz estarem cobertos por um cachecol vermelho.
— … Eh…?
Na mão esquerda, ela trouxe o drone, reduzido a uma pilha de metal retorcido. Sem cerimônia, jogou o objeto na frente do grande homem.
— … Central… relatório final…
Porém, seu olhar depressa se afiou, consumido por um brilho avermelhado intenso; ela esticou os braços — o esquerdo na frente do direito — e…
— As portas do inferno foram abertas… — citou o código para “falha total” no microfone do headset, a ponto de engasgar nas palavras, forçando aparente calma ao limite. — Eu repito… As portas do inf…
THUM!
A flecha de luz irrompeu pelo centro do peito, trazendo um fim à consciência do veterano.