Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim

Capítulo 166: Mudança de Planos

— DOR! DOR! MUITA DOR…! DOOOOR…! — gritaram as faces em agonia, unidas pela primeira em discurso pela primeira vez.

Abaixem…! — Steve exclamou ao topo dos pulmões. — VAI EXPLODIR…!

Dito e feito, a massa de carne mista e pulsante borbulhou de forma violenta, acumulando ar e sangue, até enfim liberar seus conteúdos por cada canto das paredes.

PLAFT! — os sons de carne contra o concreto e o sangue a escorrer ecoaram pelo andar, sob a forma de um eco molhado e pastoso, mais longo do que detinha qualquer direito de ser.

E, enfim, as lamúrias e lamentações cessaram, cedendo espaço para o pesado e desconfortável silêncio. 

— Vocês duas… estão bem…?! — O rapaz manteve o braço esticado em frente ao rosto, chamas ativas a escaparem pela pele. — Alguém ferido?!

— Ugh… não… — Ann foi a primeira a se manifestar, escondida como pôde no pequeno espaço entre a parede e a porta de acesso à saída. — Mas…

A jaqueta preta juntou pedaços de sangue e carne — pouco numerosos, mas suficientes para causar preocupação —, gotejando do tecido impermeável e rumo ao chão ainda mais podre.

— Droga…! — Steve acumulou algumas de suas chamas na ponta dos dedos. — Ann, tira essa jaqueta…!

— O quê?!

— É…! A gente tem que queimar! É o único jeito de matar essa carne! Deixa eu fazer e…!

— … Se estão tão preocupados assim com contaminação…

As atenções do par se voltaram para a zona mais ao fundo do corredor, próxima da entrada da escada.

— … Me diz o que eu vou fazer com essa nojeira…! — Emily exclamou, coberta dos pés à cabeça com sangue. — UGH…!

A frustração sensível de longe só aumentou ao notar que ela própria foi a única afetada de verdade pelo fenômeno, incapaz de se proteger a tempo.

A posição na qual estava e a linha direta formada entre si e o foco da explosão, sem barreiras, quase a besuntou por completo com o material pútrido dos cadáveres.

— Emily… — O Evans tentou falar.

Nem pensa em tentar me queimar…! — esbravejou, apontando. — Ugh…! Eu vou limpar isso aqui…

O gesto automático de pegar o marcador do bolso veio do modo mais natural. Ao se escolher a palavra certa, o efeito condizente seria aplicado, logo…

“Se eu escolher ‘limpa’, vou ficar bem…” raciocinou. “Se bem que vou precisar usar mais de uma vez, porque possivelmente não vai se aplicar às minhas roupas.”

Em face dos problemas vividos pelos agentes, a questão podia ser pior; um pouco de conserto e uma pequena corrida e estariam do lado de fora, longe do foco da explosão.

— Eu posso fazer isso depois — falou em voz alta, guardando o objeto. — Enquanto isso, é melhor só escrever algo como “imune” ou…

— Poxa vida…! Me tratando como se eu fosse só mais uma doença…! Olha, eu só não vou fazer em consideração por você, Emilyzinha, mas foi um golpe baixo e tanto! Eu não gostei!

— Huh?! — Os três deixaram escapar a surpresa, coletivamente.

A voz veio da pilha mais alta de carne, após a porta, onde a criatura estava de corpo inteiro, antes de explodir em mil pedaços. Nenhum movimento se via dali, porém.

— Ah, acho que vocês não estão me vendo, né? Eheheheh! Acontece…! É que eu sou um pouquinho atrapalhada…!

— …! — Os três assistiram conforme a massa amálgama começou a se mover e fibrilar, até dela surgir algo tão mórbido quanto surpreendente.

Yahoo! Sou euzinha…! Disseram que queriam me ver, então, aqui estou eu, apenas para vocês… mas só por enquanto!

Do monte de tecido biológico humano, uma forma surgiu, completa, a começar de um braço, depois o outro… E, depressa, se construiu uma silhueta feminina. 

— Ahh…! Eu já devia ter ido embora, mas fiquei entretida! Perdi até a noção do tempo!

De físico magro, algumas costelas se enfatizavam sob a pele clara e pouco corada, dando-lhe um aspecto esguio e fino, cujos braços graciosos culminavam em dedos delicados, de unhas curtas.

O corpo desnudo expunha tudo para o mundo ver, detalhes esses perdidos em face do foco principal: as queimaduras profundas a se espalharem pelos mais diversos cantos de sua carne.

Cabelos róseos soltos desciam até a altura da nuca, desnivelados e bagunçados pelo modo grotesco como se colocou na pilha de carne. Molhados por secreção, os fios se uniam em conjunto, cedendo sobre a testa.

— Nossa, como é legal reencontrar com vocês! E, especialmente com você, Emilyzinha, minha melhor amiguinha! Eu adorava ler os textos que você fazia!

A confiança com a qual falou passou a impressão de algo alheio — alienígena —, por mais que, em simultâneo, estranhamente próxima e familiar.

— Foi divertido…! — brandiu um largo sorriso, parcialmente esquelético. — Nossos almoços juntas, conversar sobre os personagens nos livros… Foi tudo tão legal!

A presidente do Clube de Literatura não moveu um músculo, incapacitada pela presença avassaladora daquele sujeito bizarro e, de alguma forma, tão familiar.

Fibra por fibra de músculo, feixe por feixe de colágeno; segundo após segundo, as marcas de queimaduras perdiam extensão.

Os pedaços se vibravam, tremiam e se reuniam, costurados em si mesmos, ao rumo da perfeição. A figura de antes se tornou irreconhecível perante a aparência atual.

A encarada, porém, a puxou de volta para aquela memória recente.

Os olhos azuis, como o céu da manhã mais limpa, carregavam um aspecto afiado — não por serem intimidadores, mas sim, terem um foco singular, atento do jeito mais final —, presos nela e apenas nela.

— O meu plano era que ela se divertisse também… nós duas, juntinhas. É uma pena que só eu ria quando a Avazinha começava a chorar!

Nada mais precisou ser dito, frente ao risinho provocativo.

“Ela começou a ficar estranha…”

A “descoberta”, fonte de sua própria mente, a inundou de uma enxurrada de sentimentos e ideias sem sentido.

“... fechada demais, mórbida… Ela nunca foi muito comunicativa, mas… nunca foi naquela extensão.”

Trêmula da cabeça aos pés, Emily fez o gesto de pegar o celular do bolso, sem força para tirá-lo e verificar.

“Ela… nunca pegaria no pé da Ava daquele jeito…”

Diversas mensagens da garotinha loira marcaram a última tentativa de contato, antes de sua morte. As palavras, marcadas em dois dias antes do ataque, carregavam desabafos.

“A Olivia não diria para ela se matar…”

E, de repente, as peças encaixaram em um “clique” só.

— A Olivia… não diria que ela é só mais um peso que precisa sumir… que o mundo iria ficar melhor sem ela…

Quando enfim teve condições de ao menos desbloquear a tela do aparelho sem sofrer com dores infernais, o pior já havia acontecido.

— A Olivia que eu conheço… — elevou o tom, marcado de puro sofrimento. — … Ela não diria essas coisas…!

A coisa zombou, exibindo os dentes, satisfeita.

A OLIVIA NÃO ERA ASSIM! — exclamou, enfurecida. — Você… O QUE VOCÊ FEZ?!

— Ehehehehe! — Não parou de rir, mais excitada pela revelação já óbvia. — Eu só dei uma ajudinha para ela se expressar melhor!

É MENTIRA…!

Sem pensar, a menina de olhos verdes os fez brilhar intensamente ao chamar por seu poder, avançando para cima da estranha, com punhos fechados.

CRAAAACK! — A estrutura ressoou graças ao eco, criado pelo impacto do punho na parede do corredor no térreo. Por conta do choque, abriu-se uma rachadura vertical de quase um metro no local.

—Tch…! — lamentou o erro, se forçando a ignorar a grande dor no punho direito.

A menina desviou com facilidade do ataque lento e pouco habilidoso da Attwood, criando distância com uma série de saltos mortais para trás.

— Você é bem forte, Emilyzinha, mas luta não é faz muito o seu tipo…! — comentou. — Precisa ser um pouquinho mais rápida e ágil para me alcançar!

… … …

— … Steve… será que não é melhor a gente fazer alguma coisa…?

Os efeitos da paralisia advinda do medo demoravam para passar e ainda agora, passado mais de um minuto, Ann-Marie não tinha certeza se conseguiria tomar uma decisão.

— A gente tá cara a cara com o inimigo… sendo assim…

— … Ah, não precisa dizer duas vezes…

O aspecto do semblante do manipulador de chamas exibiu-se pior que o anterior, preso em um foco pleno, travado na silhueta da inimiga.

— Eu mesmo vou acabar com isso…

Uma pequena esfera de fogo se formou entre as palmas próximas das mãos, uma acima da outra, acumulando mais e mais calor, enquanto se focava em manter a superfície estável.

… … …

— O laudo da Olivia diz que ela apertou o próprio pescoço até morrer… — Emily falou, ofegante. — Me diz como isso é possível…!

Ela de novo tentou um soco em cheio no centro do peito da oponente, que pela segunda vez evadiu-se sem qualquer dificuldade.

— Ei, você não tem como provar meu envolvimento…! Não são as minhas digitais, então não pode ter sido eu…! Simples, né? — mostrou a língua em zombaria.

Cala a boca e fica parada…! — correu de encontro a ela pela terceira ocasião. — Me deixa te acertar!

— Como quiser!

PLAFT!

— … Huh…? — A raiva se converteu em um misto de surpresa e desgosto, ao notar os resultados tão fúteis da tentativa de danificá-la.

— Se sentiu melhor agora, depois de arrancar o meu coração? — sangrou pela boca, sem abandonar o sorriso sádico. — Hehehehe! Agora é minha vez, Emilyzinha!

Sangue sem fim jorrou do grande buraco deixado no centro da caixa torácica. Por se tratar de um choque com as costas contra a parede, o corpo não esvoaçou, deixando toda a destruição sensível nas pontas dos dedos.

A presidente entrou em pânico interno ao ver e sentir o líquido rubro, jorrando das vísceras quentes, vindo de um coração esmagado, cujos últimos batimentos insistiam em assombrá-la.

— Eu não morro — disse, séria. — Pode esmagar meu coração, destruir o meu cérebro e moer todos os meus ossos…

O sangue empoçado estremeceu, cheio de vida, envolvendo-se em torno dela e retornando para dentro.

— … Se tiver um pedacinho meu, sequer vivo, vou sempre voltar! E quer saber de uma coisa legal? O mesmo não acontece com você…! Eu não sou inteligente?!

— Emily…! O sangue…! — A voz de Ann ecoou ao longe. — Ela vai manipular o próprio sangue…!

— … Huh…? — notou tarde demais, notando grande dificuldade para puxar o braço envolto pelo líquido viscoso, mais similar em consistência a chiclete.

A pressão exercida pelo fluido subitamente atingiu níveis aberrantes, tornando-se mais rígida a cada fração de segundo; a garota iria arrancar seu braço, caso continuasse assim.

— Olivinha trouxe as consequências para si mesma…! Quem mandou nascer com um corpo tão fácil de se entrar?!

Uuuuurgh…! — A força esmagadora ameaçava quebrar-lhe os ossos do antebraço e, por mais que puxasse com tudo de si, nenhum sucesso se via.

A produção contínua de sangue mantinha a massa vermelha em constante moldagem; puxar o braço para longe significava apenas esticar um pouco mais da “corda” elástica, quase dotada de vida própria.

— E agora, eu vou entrar em você, Emilyzinha…! E nós vamos virar grandes amigas, nos aventurando juntinhas! — riu, descontroladamente. — Ahahahaha! Vou te deixar assistir quando a gente matar a sua mamãe!

— … Como se isso fosse acontecer…!

BOOM! — Luz alaranjada envolveu o corredor, ao fim da explosão, acertando em cheio no centro do peito aberto do verdadeiro zumbi humano.

— Argh…! — A super-humana de cabeleira rosada gemeu de dor ao sentir a pele queimar.

Largar Emily foi inevitável. Em seu mérito de escolha, o instinto de proteger a própria integridade venceu, e o mesmo sangue que antes se prendia ao braço destro da Attwood agora a circundava e perfundia os tecidos incendiados, apagando o fogo.

— Emily, tá tudo bem?! — Ann se colocou para correr e socorrê-la. — Meu Deus, o seu braço…!

— Tá… tudo bem… — tentou se apoiar, falhando miseravelmente. — Ugh…!

— Droga… talvez ela tenha quebrado…! — exclamou em pânico.

Grandes marcas roxas tingiam o braço da jovem, impossibilitado de movimento por conta do trauma. Em tais condições, ela não poderia mais lutar, mas isso não representava o pior.

“... Ela teve contato direto com aquele sangue…” oscilou entre Emily e a estranha garota, apreensiva. “... E se…”

— … Eu… Eu ainda vou lutar…! — De repente, fez outra tentativa de se levantar. — Ainda vou amassar essa vadia…!

— Não…!

A dor incapacitante, somada à fadiga do uso tão extenso de seus poderes, a fez cair outra vez. Exaustos, os músculos de cada local do corpo estremeciam juntos, descoordenados para outras ações.

Voltar à luta ficou fora de questão para Emily Attwood, os conduzindo a um impasse.

— … Ann, leva a Emily para fora.

A voz séria chamou a atenção, ainda não acostumada a ouvi-lo falar de modo tão contundente e, assustada pela proclamação, a manipuladora de insetos logo quis retrucar.

— … tá louco…? — suspirou, voz a faltar. — Você vai…

— Morrer? — interrompeu. — Todo mundo vai se a gente for continuar com esse medinho.

A tamanha frieza contrastava diretamente com as fortes chamas a emanarem de ambos os braços, subindo até baterem no teto.

— Agora, eu consegui ficar puto de um jeito que nem eu sabia… — fechou os punhos e, brevemente, as labaredas dançaram. — Eu vou dar um jeito, assim como prometi lá no terceiro piso.

— Ehehehehe! Nossa, que cara legal e corajoso você é, Stevezinho! — zombou dele, quase regenerada do ataque prévio. — Ou será que Stevie seria um apelido melhor? Hmm…

Em um gesto veloz, rasgou o ar em um corte frontal, criando uma lâmina vertical de chamas breves, desviadas com facilidade por um mero salto lateral.

— É só a minha mãe quem me chama assim — posou, assertivo.

— Sério? Ehe! — sorriu com sadismo. — Ser chamado assim por uma gatinha feito eu não te deixa feliz?

Imensa repulsa pelo comentário brilhou com imediatismo nos olhos castanhos do rapaz, tingidos no tom de fogo pelo poder.

— Ann, faz o que eu tô mandando, porque agora…

A temperatura envolveu os arredores, cheia de violência. Sem aviso, o choque térmico matou as abelhas sobreviventes escondidas sob o casaco, sentido intensamente na face e olhos de Ann-Marie.

— … a coisa vai esquentar…! — impulsionou o corpo para frente, carregando um ataque forte. — Cai dentro, marionetista de corpos…!



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