Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim
Capítulo 164: Um Plano Ideal, Ato 4
— E agora?! E agora?! E agora?! Como a gente vai sair sem chamar atenção?!
Ver tantas pessoas com intenções claramente definidas entrarem no hospital do qual tentavam sair destilou o mais puro pânico na sala da enfermaria.
— Lascou…! Os nossos planos… a lógica que lutamos para construir…! — Ann puxou os dois lados das marias-chiquinhas, deixando clara a possibilidade real de acabar arrancando tufos de cabelo. — Droga…!
— Ann, se acalma! — Steve interveio, puxando-a pelo braço com leveza. — A gente não vai conseguir nada se ficar em desespero agora…! A gente precisa pensar, isso sim!
Pouco ele sabia estar tão ou mais alterado que quem tentava corrigir, fato notado de prontidão pela mais expressiva do grupo formado por necessidade.
— O que vocês precisam de verdade é ficar um pouco mais quietos…! — Emily interveio, sua presença na sala se fazendo suficiente para chamar a atenção para o momento. — Eu quero ouvir aqui, então se forem ficar discutindo ou gritando, façam baixo!
Não foi o ar de professora exigente ou a escolha de palavras o responsável por chamar atenção, mas sim, a postura peculiar adotada pela jovem de brilhantes olhos verdes em tom de esmeralda.
— Não dá para ouvir tanto assim… Eles ainda não entraram em um alcance bom com relação à gente…
Ao contrário dos dois, ela pensou rápido — talvez, até demais —, quando escreveu no chão a palavra “amplificativo” com o marcador preto e encostou o ouvido direito na superfície suja e potencialmente contaminada.
O truque usado nos filmes de velho-oeste deixou de ser mera mentira e tomou proporções reais e ativas; para focar, Emily precisava de certo silêncio, pois qualquer menor barulho no chão alcançaria seus ouvidos em amplitude várias vezes aumentada.
— Hmhmm… — O pequeno gemido soou insatisfeito. — É… Não dá para dizer com precisão o que eles estão conversando… Talvez eu só esteja distante demais?
Vez ou outra, algumas palavras perdidas e sem sentido — fora de um contexto — saltavam ao horizonte audível, onde a perfeita compreensão só se via barrada pela ineficácia do método.
“... Ou talvez eu só seja fraca”, cogitou, mordendo a ponta da língua entre os dentes, para esconder a frustração.
Seus estoques de energia foram depletados pela luta e o uso das palavras mais recentes, a privando de algo mais ambicioso, como “translúcido” ou “atravessável”, palavras com potencial de permitir olhar o andar de baixo.
— … Se eu pudesse criar mais pares de olhos…
Os termos soltos deixavam muito espaço para interpretação e, embora fosse algo que ela gostasse, a situação exclamava “não” das mais diversas maneiras.
Nada de bom ou inócuo sairia da iniciativa nos andares inferiores e a noção disso pesou sobre os ombros da presidente do finado Clube de Literatura.
“Planejar… Eu preciso planejar um jeito…”
A unha bem-feita e polida do indicador direito — cortesia de sua mãe — se transformou em um objeto antiestresse para seus dentes ansiosos, perdendo pedaços e a bela cobertura brilhante.
O acumulado de coisas, acontecimentos e fatores encheu o copo interno do espírito da garota, agora prestes a transbordar.
“... Tem que ter um jeito… Eu tenho que descobrir qual… Eu…”
Precisava confiar em sua capacidade inata de liderar e manejar os problemas, pois caso não possuísse uma solução para salvar as duas vidas humanas em suas mãos…
— Emily, falou “criar mais pares de olhos”?
— Huh…?! — A mente dela saltou em um baque, de volta para si.
— Bem… Não dá para criar olhos literalmente, mas eu posso recrutar alguns outros! — Ann deu um passo à frente.
O semblante na menina de sardas se exibiu ambos empenhado e orgulhoso, de aspecto elevado pelo potente brilho azul-ciano de suas íris, de tal forma que ela até tinha a mão esquerda contra o peito, pressionada com firmeza contra o tecido da blusa.
— Se precisa de alguém que olhe lá embaixo, pode deixar nas minhas mãos! Vou recrutar os habitantes desse lugar e eles vão nos ajudar a mapear! — disse, confiante de si e no momento mais cheio de brilho do dia.
Enfim, chegaria o hora onde seu “fraco” poder se faria no mais útil, então, ela pegou a cadeira de metal mais próxima e sentou-se, fechando os olhos e respirando fundo.
“Eu até já sei onde começar a procurar.”
Insetos e demais pragas são mais comuns em hospitais do que a maioria das pessoas costuma imaginar, tornando a caçada por seus “amigos” em algo fácil.
[...]
— Bombas do corredor oeste, implantadas — disse o primeiro rapaz.
— Bombas no corredor sul, implantadas! — afirmou o segundo, alerta.
— Bombas nas enfermarias, implantadas! — pontuou a moça, focada na missão.
Os três se encontraram na intersecção dos corredores do primeiro andar, membros da equipe 4. Unidos, fizeram um trabalho rápido, finalizado nem três minutos depois de passarem pela porta.
Agora, por protocolo, eles deveriam sair pela saída de incêndio, com rumo à parte de trás da edificação.
— Vamos atravessar a mata e sair na Willow — reiterou o primeiro, citando as ordens já conhecidas. — Assim, logo que entramos na van, troquem de roupas.
Os dois demais assentiram. A ordem dada foi para cada um fazer o serviço mais depressa quanto possível, pois ao fim de pouquíssimos minutos, as bombas explodiriam e quem sobrasse, estaria morto.
Se responsabilizar pelas vidas alheias podia ser um ato heróico e desejável, porém carecia de praticidade — representado algo a se abdicar — a criar um mundo onde cada um é por si.
Logo, eles começaram a correr no rumo da estratégia planejada, sem prestar comentários em voz alta quanto aos corpos e destruição deixados por todo o ambiente.
O cheiro de sangue e de carne cortada reinava na região mais central, próxima aos elevadores. Seja lá o tipo da monstruosidade que passou ali, irrompeu por onde pôde como um furacão.
“Isso é estranho”, pensou o rapaz na retaguarda. “Cadê todo mundo…?”
As manchas vermelhas no chão e paredes deixavam óbvio o fato do massacre, contudo, a ausência dos corpos permanecia um mistério.
Até porque, ao longo da caminhada inteira, ele não se deparou com sequer um cadáver.
“Não tem como isso ser certo…”
Mesmo tendo recebido ordens expressas para ignorar coisas além de colocar as bombas, a inevitabilidade prática de fazê-lo instalou nele uma ansiedade incalculável, afinal…
“Se não estão aqui, onde foram parar os corpos das vítimas…?” questionou-se, distraído.
E no tempo exato do fim de seu pensamento, veio a resposta, na forma de um grito capaz de gelar o sangue, advindo do único membro feminino do trio.
— KYAAAAA! — O som ecoou pelo andar como um todo, puxando-o de sua ruminação..
Ele os seguiu de forma automática, distraído pela própria cabeça, a olhar o chão e pontos aleatórios, sem foco algum.
Porém, ao olhar para a frente de novo, o agente à paisana entendeu, agora munido — da pior forma — das respostas que tanto buscava.
— … Quê…? — congelou, atenção fixa na bizarrice mórbida adiante.
A adrenalina invadiu os sistemas e as palmas das mãos suaram e tremeram. Os pacientes estavam lá, todos juntos, bloqueando a passagem das escadas de emergência.
Algumas dezenas de cadáveres cobriam a passagem, inviabilizando o trajeto por completo, postos uns sobre os outros, deixados para olhar o nada.
O cheiro de vísceras e sangue se intensificou em grau exponencial e as gotas do sangue misto impactavam com os degraus metálicos abaixo, dando a luz a pequenos ecos.
Homens, mulheres e até algumas crianças, contadas a dedo. A destruição arrasadora não poupou sequer as mais inocentes das vidas.
— Pessoal… vamos adotar a segunda rota — falou o primeiro na linha, tentando manter sua frieza. — Vamos comunicar isso quando sairmos… Venham comigo.
Ele tomou a iniciativa de agarrar a mão da mulher atrás de si, mais abertamente impactada pela visão horrenda, para dar-lhe algum semblante de segurança e, antes de sair, olhou para trás e acenou, esperando confirmação do terceiro.
Os dois tomaram alguns passos ágeis de vantagem com relação a ele, devido à demora do corpo em reagir. Antes de sair, resolveu dar uma última olhada, fechando a porta logo em seguida.
— Ajuda…
… … …
As pernas travaram ao captarem o barulho vindo de trás da porta e, por um momento, ele se questionou se o suspiro baixo não foi mais um pedaço de sua imaginação, em meio a tantas loucuras vistas em um dia só.
— Não nos deixe aqui. Ajuda, por favor…
“... Eu vou é fugir…!”
O tempo e a distância o fez perder seus companheiros de vista e sem uma perspectiva, seguiu por um caminho qualquer, sem rumo definido, que só o levasse longe daquele pesadelo.
“Onde…? Onde?!” olhou de um lado para o outro, confuso e assombrado, inconsciente quanto à própria localização.
O complexo de saúde podia não aparentar grande tamanho pelo lado de fora, simples de entrar e sair, porém, o impulso das emoções à flor da pele tornou-o dez vezes maior e mais difícil de se navegar.
“Onde é aqui?!”
A confusão advinda de tomar vários corredores e caminhos quaisquer o conduziram a um ponto sem saída, ao fim das enfermarias. Para além dali, uma parede fechava o rumo, sem sinal dos companheiros de missão.
O treinamento tático não o preparou para lidar com os perigos correntes, a perda de compostura servindo de indicativo. Em condições naturais, tal coisa jamais ocorreria, mas chamar aquilo de “natural” ficava fora de questão.
“Calma… Eu preciso pensar como sair daqui…”
Respirou fundo, afundando os dedos no espesso cabelo castanho, para sentir os caracóis nas pontas, em busca de calma.
“Tenho que ajustar a minha cabeça no lugar… Aqui é a Enfermaria 6, então significa que o caminho de volta…”
A luz solar, vinda de trás, clareou os caminhos internos da lógica em pânico, deixando-o ver com clareza o rumo para a saída comum.
— … Corredor norte, seguido pelo corredor leste — falou em forma de suspiro, buscando dar segurança a si mesmo. — As escadas estão lá.
Ciente de para onde correr agora, apertou os passos, ignorando os rastros de sangue e projéteis deflagrados espalhados aos montes por metro quadrado.
Em agilidade silenciosa, alcançou a primeira encruzilhada do caminho, e ao fazê-lo…
— Huh?!
Parou, travado no curso antes tão confiante, tornando a sentir o medo a escalar pela espinha.
— … O que é isso…? — retrocedeu um passo, assumindo uma postura de combate por reflexo.
O braço esquerdo fechou com firmeza em frente ao rosto e a perna do mesmo lado pisou firme, adiantada; sem saber o que de lá viria, os tremores entregaram a insegurança na escolha.
O senso primordial de horror despertou no peito; contou muitas, bem mais do que deveriam caber naquela porta.
Mãos — duas dezenas, talvez — dançavam para além de uma porta aberta, em meio ao corredor escuro.
Os gestos silenciosos mais lembravam a movimentação de serpentes, se retorcendo e esticando — cotovelos, punhos e dedos —, ao tempo de um ritmo indecifrável, embora hipnotizante.
Para dentro e para fora, alcançavam o ar e o soltavam de novo, repletas de macabra graça, suficiente para fazê-lo perder tempo e não notar a mudança, antes de ser tarde demais.
— Huh…?
A luz do ambiente, vinda de trás, ficou subitamente mais fraca e um som molhado preencheu o caminho.
Uma mão tocou-lhe o ombro e em seguida, falou.
— Ajuda…
Ao longe, uma pequena formiga seguia com seu dia monótono de sempre, deslocando-se entre os obstáculos a mais, de atenção travada no cenário grotesco, ao qual seria naturalmente indiferente.
[...]
— … Isso é mau… — disse Ann, ao abrir os olhos.
— O que você viu? — Steve perguntou depressa. — O que tá acontecendo lá embaixo?
Os dois a fitaram, de rostos repletos com expectativas. Na tentativa de atendê-las, a menina se ergueu da cadeira e explicou com as palavras mais simples encontradas dentro de si.
— Eles estão sendo massacrados — afirmou, tocando o centro da própria cabeça com o punho. — Tem mais de vinte deles lá embaixo e alguns já foram pegos pelos monstros de cadáveres… Pelo que eu ouvi, estão plantando bombas nas tubulações de gás… Eles vão explodir o hospital.
— Explodir?! — Emily se exaltou ao escutar.
— Foi tudo… o que eu consegui pegar…!
Ann se desequilibrou, mostrando claros sinais de cansaço. Felizmente, a proximidade de Steve o permitiu pegá-la antes que caísse.
— Ei, ei…! Você se forçou demais…! — alertou ele, mantendo-a de pé com a própria força. — Senta de novo! Descansa um pouco!
— Urgh… — Uma trilha de sangue deixou a narina esquerda ao sentar. — A gente não tem muito tempo… Não podemos ficar moscando aqui mais…!
Receber informações sensoriais das criaturas controladas era um tópico por inteiro diferente de somente controlá-los.
Um tanto útil para espionagem, a habilidade de Ann é capaz de traduzir os estímulos recebidos pelos pequenos seres em algo compreensível.
Nessa modalidade mais ampla, porém, o dispêndio de energia assume proporções colossais, exigindo em excesso do cérebro da garota.
— Ai, que dor de cabeça… — reclamou. — Lembra da vez que aquela poeira me infectou…!
— Calma, a gente vai te tirar daqui a tempo…! — O rapaz forçou o otimismo. — Emily, e aí?
— Ah, esses filhos da mãe…! — O semblante sério, focado no chão, escondia uma raiva borbulhante. — Eles vão destruir o único grande centro de referência da cidade…!
Para ela, foi inevitável pensar no resultado de tal decisão para as várias pessoas que precisavam de atendimento urgente e podiam não ter condições para viajar a outras cidades em busca de saúde.
E se alguém se vitimar gravemente e correr risco de vida? E se um paciente com alguma condição séria precisar de ajuda imediata?
— Eu já sei o que vamos fazer…
Um plano criado para cobrir a falha, às custas de mais vidas… No conceito dela, algo inaceitável.
— Vamos fugir como nós pudermos — anunciou com firmeza. — A coisa está distraída com eles, então deve ficar mais fácil.
— Emily… Então…
— É isso aí que você pensou — dirigiu-se a ele. — Vamos usá-los de bucha de canhão. Se são tão incompetentes a ponto de serem mandados para morrer duas vezes, ao menos que seja para algo útil.
O traçado fixo da encarada dos olhos verdes mostrou não estar brincando; Emily não ergueria um dedo para salvar aqueles homens e mulheres, em retribuição pelas ações egoístas e ineficazes.
— Ann, consegue andar?
— Acho… Acho que sim…
— Ótimo. Steve, você ajuda ela a se locomover… Eu vou na frente, para proteger vocês.
Abriu a porta sem hesitação, trazendo para dentro da sala o forte odor de carne queimada. Para direita ou esquerda, nada a vista.
— Vamos. Se for verdade, não temos muito tempo. — Emily puxou o marcador e o deixou em ponto de funcionar. — Lembrem: fiquem atrás e sigam meu ritmo.