Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim
Capítulo 162: Um Plano Ideal, Ato 2
— … então, quando a gente subiu para cá, seja lá o que aquela coisa seja nos seguiu pela ventilação e tentou nos atacar… Aquilo tem consciência, disso eu não tenho dúvidas.
O mais novo trio conversava sobre os eventos atuais, presos por vontade própria na sala sem pacientes das enfermarias.
Sem luz elétrica ou aparelhagens funcionais, as janelas serviam de única e insuficiente fonte de iluminação, garantindo ao local um denso ar de trevas.
Não havia como dizer o que os aguardava nos corredores imensos, e nem em quantas partes semi-indestrutíveis viria; o plano de fugir continha elementos de aposta, e bem mais do que apetecia admitir.
— Aí, aqui estamos… Eu e a Ann vimos muita coisa lá embaixo…
Steve periodicamente checava as vidraças na porta trancada, em busca por descobrir se sair era seguro ou não, mas, por mais que apenas puros silêncio e inércia reinasse lá fora, os instintos apontavam na direção contrária.
— Aquilo usou os corpos daquelas pessoas… — A voz saiu amarga, carregada de um peso colossal. — Consegue possuir os corpos delas de algum jeito e controlar a carne… É… bizarro de se ver e mais ainda de se imaginar… Eles ainda parecem vivos…
Por segurança, as conversas não podiam ser muito altas; os sentidos da “coisa” são sensíveis e o senso de caça não os deixaria fugir de forma simples — foi o que supuseram, com base em observações e puro instinto.
— É inteligente, e pelo menos tanto quanto a gente. — Ann se intrometeu no diálogo. — Provavelmente até pense que nem nós pensamos.
A garota de marias-chiquinhas estava nervosa, andando de um lado para o outro na tentativa de ocultar tal fato, compartilhando muitas das opiniões do rapaz quanto à periculosidade do cenário atual.
— Não tem o jeito de uma forma irracional… até porque nem tem como uma coisa que não pense ter feito aquilo, lá embaixo…
Os segundos de silêncio criaram um vazio no espaço e nos corações, e tudo ficou um pouco mais pesado e indigesto.
— Emily… — Ela decidiu quebrá-lo, desconfortável. — E você? Alguma ideia?
A Attwood esteve absorta em si mesma e na elaboração do plano de escape, por mais que fosse fácil notar, pelo mais simples olhar, a direção alheia de seu foco.
Assim como eles, não conseguia pensar bem, porém, em seu caso, o motivo era um pouco diferente.
— Não — respondeu com secura. — A gente vai ter que dar as caras lá fora e fugir… É o jeito. Vamos ter que arriscar.
O passar dos poucos minutos os ensinou a não pressioná-la — a colaboração já ajudava bastante e não precisavam perdê-la — e se fosse carrasca ou não, ignorar servia de melhor rebate.
Afinal, não é como se os dois não pudessem compreender a amplitude do sofrimento por ela vivido.
— Ouçam — começou, foco pleno na planta da construção. — Temos o jeito fácil, porém incerto e o jeito difícil, mas um pouco menos inseguro.
Os encarou de frente pela primeira vez desde que chegaram ali e a afiação nos olhos verdes saltou adiante como o sol nos dias de verão.
— O primeiro jeito envolve eu usar o meu poder em vocês e garantir uma queda livre sem perigo do terceiro andar — falou com confiança. — Se eu escrever a palavra certa, poderemos pular daqui, direto lá para o chão.
O grande foco apresentado pela jovem desenhou o caminho de uma lógica impecável, iniciada ao levantar de um dedo.
— Eu posso escrever “invulnerável” para que caiam sem sofrer danos, ou “amortecido”, pensando em reduzir o impacto. O sentido da palavra vai se materializar em vocês e pode ser que nada aconteça.
Por mais confiança que tivessem, porém, a coisa tinha o óbvio lado negativo e impossível de se escapar, situação notada pela segunda garota e seu raciocínio afiado.
— É mais fácil não funcionar… — Ann se colocou, mão no queixo e atenção na janela. — Lembra? Você mesma me disse que nem sempre funciona, e que depende da palavra.
— Huh? Ela disse isso? — Steve, alheio ao novo curso do tópico, questionou. — Quando?
— Quando você desmaiou por causa da explosão. — Emilly retomou as rédeas, chamando atenção para si outra vez. — Por isso é o plano mais inseguro; não dá para garantir que vá dar certo.
O pequeno marcador preto reapareceu na palma da mão pálida e trêmula da esverdeada, tirado do bolso para contemplação. Entre os dedos finos, Emily sentiu o plástico, pensativa.
— Não é só como eu quero — confessou. — Posso escolher as palavras mais convenientes e condizentes com a situação, em busca de ter o resultado que eu desejo atingir, mas…
Memórias dolorosas de um instante de pânico lhe invadiram a mente, suprimidas ao engolir o seco, de volta ao fundo do coração.
— … nem sempre o efeito desejado é precisamente aquele que eu queria… na realidade, quase nunca é. As palavras agem de um jeito arbitrário, fazem o que querem e quando querem… tanto que nem sempre funciona.
A falha em curar Isabella rasgou uma cicatriz no coração da quase adulta, marcada a maior das traições por parte de algo que tanto amou.
As palavras significavam seu mundo, mas o que fazer quando se recusassem a ajudá-la?
— Então, pode até ser a palavra certa, mas não dá para garantir que funcione. Pode ser que um de nós pule para a morte, além de que eu nem sei se vou suportar pular com vocês dois.
— Como assim? Bastaria escrever a mesma coisa em nós três e tentar um por um, não? — O usuário de chamas questionou, curioso.
— É esse o problema, Steve. — Contudo, a resposta não veio de Emily. — É a questão da energia. Cada vez que tentar, vai consumir dela assim como acontece com a gente.
— Esse é um dos problemas. — A presidente do ex-clube enfatizou. — O gasto também depende da complexidade da palavra. Se o conceito for abstrato ou amplo demais, pode ser até que eu desmaie.
Ela mordeu a ponta da própria língua ao se recordar do dia no qual teve a horrível ideia de tentar aplicar seu talento na palavra “epifania”.
“Santa mãe, aquela dor…!” Exclamou por dentro, travando a mandíbula.
Não houve nos primeiros dois segundos, a levando a acreditar que não deu certo, somente para logo depois entender ter se tratado do oposto: deu certo até demais.
Foi como se um relâmpago houvesse caído bem no topo de sua cabeça, transformando o cérebro em uma pilha de geleia. Para se proteger da dor, desmaiou na hora, despertando apenas cinco horas depois.
“Horrível. Só… horrível…!”
Por felicidade do destino, seus pais passaram o dia fora, ou teriam de arrombar o quarto na hora do almoço, para resgatá-la de seu próprio experimento.
“Voltando ao assunto…” balançou a cabeça, um pouco frustrada. — Não é tão prático quanto parece para vocês, então o jeito vai ter que ser o plano B.
A grande potência muscular garantida pela palavra “forte” nunca deixava de surpreender, já vista muitas vezes. Sem esforço, Emily levantou o grande painel de metal e vidro coloridos, repousando sobre a mais próxima.
— A ideia é a seguinte — apontou na planta baixa. — Aqui, é onde nós estamos… Normalmente, teria um elevador para descer aqui na esquerda, mas a construção não tem energia e, por sinal, nem o resto da cidade. Não tem sinal de telefonia, então é porque foi mais sério.
— Isso aqui foi provocado… — A controladora de insetos mordeu a unha do indicador, nervosa. — É uma tentativa de esconder evidência, assim como fizeram com o Mark…
Os tremores ansiosos e cheios de medo se viam até por baixo do grosso casaco de couro preto; em instante algum ela deixou a janela com visão para o lado de fora, mascarando desespero com frágil pensamento lógico.
“Não passou ninguém por aqui, até agora… Não tá certo… Não tá certo…!”
O terrível sentimento de antecipação quanto a algo terrível tomava cada terminação nervosa, espalhando-se para além de si, rumo às pequenas companhias ocultas entre o tecido.
“Se acalmem garotas”, falou baixo, para as poucas abelhas impacientes. “Se acalmem um pouquinho…!”
O processo não é tão simples quando dar ordens, afinal, a ligação mental e de vontades proporcionada pelo poder especial servia, acima de tudo, como reflexão de seu próprio eu.
Formigas e abelhas podiam segui-la e escutar seus comandos, mas não desistiriam de entregá-la por dentro.
— Foi estranho demais — começou, parando brevemente para suspirar. — Haah… A cidade toda passar por um problema nas comunicações por telefone ou internet não foi acidente ou coincidência… foi um evento provocado.
Desviou a atenção da vidraça e a levou ao chão acinzentado da sala. A história em questão já foi contada antes, então, decidiu ser breve.
— A gente não tá lidando só com um inimigo aqui, pessoal e se isso aqui não é uma prova clara, eu já nem sei mais como posso convencer.
A proclamação encheu os dois de pesar, em principal o Evans, que tomou seu tempo e engoliu a saliva, antes de se levar a falar também.
— Eles vão vir atrás de nós também.
A verdade óbvia, dita em tom seco, pesou sobre a sala e expulsou qualquer outro barulho. Por um breve momento, o vento parou de correr e o nada tomou conta.
— Eles vão nos trancar, nos tratar pior do que tratam os ratos nos laboratórios… Vão atrás das nossas casas, das nossas famílias…
A casa onde Mark viveu agora se encontra vazia, desocupada da noite para o dia. Não se sabe de fato o que se passou ali, mas as setas apontavam um caminho óbvio.
O pior, porém, era ver os vizinhos agindo como se não fosse nada de mais, tratando tal qual uma mera mudança de endereço ou outra simplicidade.
— Gente… Eu tô com medo. Eu não sei o que vai ser da gente a partir de agora, mas uma coisa é certa: a gente não vai ter mais um pingo de paz… Então, o que a gente vai fazer…?
Flashes do dia do ataque voltaram à frente do pensamento; lá atrás, pensou que morreria horrivelmente e, agora, não foi diferente.
“Não me diz que foi tudo em vão… Os nossos esforços… De que valeu aquela luta toda, Ryan?”
O sentido da conversa se perdeu em meio à melancolia, felizmente retomado por quem não se deixou abalar com as suposições catastróficas.
— Não podemos perder o foco — disse a mais popular, em voz alta. — Ficar pensando nos problemas que ainda não aconteceram pode esperar para depois. Por enquanto, a questão é garantir que todo mundo aqui saia vivo.
Por trás do foco impositivo, repousava nela um ar ilegível de algo alheio, de aspecto perdido em contemplação.
— Eu tenho o plano perfeito e cada um tem a sua parte nele, então, escutem com atenção.
O peso levado por ela nas costas cresceu e trouxe mais rigidez aos olhos verdes tão bonitos e, ao mesmo tempo, tão pesados.
Podia não querer mostrar, mas se sentia tão incapaz quanto qualquer cidadão andando pelas ruas, em temor pelo próprio futuro e o de todos os demais.
— Estamos no terceiro piso, de todos até então, o mais seguro — começou, com enfoque na afirmação. — Levando esse fato em consideração, o passo-a-passo vai ser o seguinte…
Cada parte do pequeno plano foi dita com máximo detalhe. Interpretações erradas ou imperfeitas não seriam aceitas e ela deixou claro o custo: a própria vida de quem errou e, por tabela, a de todos e a explicação durou os mais longos cinco minutos das últimas semanas.
— Pegaram suas partes? — questionou, com foco nos dois. — A gente não tem tempo para objeções e nem reclamações, então nem… Ei… esse barulho…
— Huh? Barulho? — Steve perguntou, confuso. — Mas eu não ouço nada!
— Shhh! — O repreendeu. — Espera aí, deixa eu escutar…!
O som alheio teve um início lento e quase imperceptível nos primeiros segundos, aos poucos crescendo e se tornando mais presente, embora baixo o bastante para ser ignorado, caso as circunstâncias fossem outras.
Tum-tum, tum-tum, tum-tum… Uma série de velozes impactos ritmados e muito baixos, possíveis de se escutar apenas graças ao silêncio generalizado.
“Isso parecem…”
A jovem pensou em escrever em si mesma uma palavra que aguçasse a audição, mas antes de ter a chance, a terceira na sala chamou atenção para o exterior.
— Gente… — Ann olhou para trás e engoliu o seco, de frente para a janela do quarto. — Tem um pessoal com mochilas vindo para cá… e são muitos!