Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim
Capítulo 161: Um Plano Ideal, Interlúdio
A sala cheia de computadores e mesas se encontrava repleta dos ânimos mais exaltados. Em seus designados locais, cada um dos quatorze homens e mulheres lidavam com a situação do modo como melhor julgassem.
Ouvir ocasionais “hunf” ou “oh, céus” se tornou habitual a ponto de sequer ser notado, marcando o peso das circunstâncias atuais.
A luz natural logo ficou insuficiente para abastecer de visibilidade à grande sala com paredes de vidro e cheiro de água sanitária, a demandar do que as meras lâmpadas não davam conta de fornecer.
Uma luz, o que ela e os demais mais urgiam de receber em tempos tão arrasadores.
“Que droga… Mas que droga aquele incompetente tá pensando?!”
O menor dos olhares em direção ao futuro estado da nação, a começar nas próximas horas, a consumia em apreensão e ansiedade sem tamanho.
“Como as coisas vão ficar de agora em diante? Que buraco… Que ferida aberta foi criada agora!”
Sentada na confortável cadeira do corredor do sétimo andar, a mulher agarrava os fios loiros e lisos, enquanto os olhos castanhos se miravam ao infinito, limitados pelas lajotas brancas do chão polido.
Ela só podia amargar as consequências do que viria, por fruto de decisões impensadas e idiotas, nascidas de uma tragédia ainda pior e mais inconsequente.
“Não tem nada que se possa fazer… Não tem nada que eu possa fazer”, tentou raciocinar em pensamento silencioso. “... desde que aquele cretino revogou os meus direitos de credencial.”
Após a absoluta falha em suas tentativas de conseguir alguma verdade de Lira Suzuki, o caso caiu em outras mãos e, enquanto se sentia aliviada por não ser Menéndez o responsável, a decisão de Grazianni só constava como um ato rebelde.
Ao invés disso, a missão de investigar mais sobre a garota e obter respostas acabou na responsabilidade de alguém mais, uma agente novata no ramo, recomendada de forma específica para tal.
Menos mal, mas de qualquer maneira, amargo.
“Eu jamais apoiei a candidatura dele para o posto… E se isso for só mais um dos ressentimentos daquele velho? Não duvido que ele só estava esperando pela oportunidade certa…”
Marilyn mordeu o lábio inferior, ciente do próprio erro, por mais que um tanto tarde demais. Olhando agora, ela não deveria ter aceitado tamanha responsabilidade com tanta prontidão.
“Foi uma armadilha dele para mim e eu caí como um patinho”, pensou, amargurada. “Usando a desculpa de não haverem mais agentes para me fazer confiar demais no próprio coração… Ele sabia da minha fraqueza.”
Sua história compartilhada com a Suzuki já deveria se provar suficiente como fator eliminatório para servir como agente responsável; os relacionamentos humanos abalam o profissionalismo, noção básica do ramo.
“Ele me deixou ficar investida no caso”, arfou, afogada de inquietação. “Heh. Eu sabia o quanto me detestava, mas não achei que fosse chegar a esse ponto!”
Um risinho sarcástico lhe fugiu. Agora, sem a permissão, não poderia lidar diretamente com assuntos condizentes aos sujeitos de teste, em especial impedindo-a de entrar em contato com a [Lírio Rosa].
“Mas… aquelas medidas sendo colocadas em prática… Eu não tenho certeza se teria tamanha frieza, a ponto de arriscar tantas vidas.”
Só de ouvir a ideia do bombardeio oculto, minutos atrás, a fez tremer em cada fibra muscular e afundar as unhas nas palmas da mão, cogitando sobre as famílias afetadas e, sobretudo…
“... se essa for a estratégia que forem tomar para resolver os problemas mais fora de controle, de agora em diante…”
Ela sequer quis continuar pensando nas repercussões de tamanhas tragédias e perdas materiais e humanas; era demais para se refletir sobre e fazê-lo demanda ambos tempo e energia dos quais não dispunha.
Felizmente, ela não precisou, pois à direita, sons de conversa se intercalaram com passos ritmados e cheios de energia.
— Sim, sim! Logo vou levar a pilha a mais! Só uma coisinha… é dentro do almoxarifado mesmo?
“É ela.” Perez olhou com atenção, assistindo cada micromovimento da mais nova contratada. “A que ficou responsável pelo sujeito de teste.”
— Isso mesmo, Robbie! — confirmou Chloe, da administração, arrumando os óculos ao sorrir de volta. — Não estão muito difíceis de achar, mas se não conseguir pegar, peça ao Phil!
Esteve a investigando desde a entrada e os registros dela pareciam um pouco enfeitados demais para alguém de uma idade tão tenra.
A garota era só boa demais para ser verdade. Logo nos primeiros dias, Jane Robinson angariou a criação de um projeto próprio de pesquisa nos sujeitos capturados, por recomendação direta do presidente.
E por mais que isso fosse no mínimo suspeito, tinha de agradecer, afinal, ela prezava pela máxima preservação das condições físicas dos capturados.
— Obrigada! Você realmente ajuda muito, Chloe! Vou aprender rápido e parar de te incomodar! — despediu-se, portando alguns documentos entre os braços cruzados.
— Não precisa! — A ruiva riu de um jeito aberto. — Fico feliz em te ajudar!
Ao contrário do antecipado, porém, o fator mais interessante sobre a novata não era seu desempenho acadêmico espetacular, mas sim, o seu efeito sobre as outras pessoas.
“Huh… Talvez ela consiga levantar o meu astral, também?” tentou fazer piada.
Absorta no êxtase do contato, não notava o fato de estar sendo observada, se destacando como um prego torto, de aparências expressas no imenso foco para frente, perdido no tempo.
Passada a despedida, ficou óbvia a animação de Chloe pelo simples diálogo com a novata; a ruiva de sardas a assistiu passar, sempre com o pequeno sorriso animado nos lábios cheios de batom vermelho, como uma garotinha apaixonada.
A depender de como se interprete, chegava a ser assustador.
— Ehehehe… Oh…! — A custou uns segundos para retomar a compostura e a jovem moça entrou em pânico ao notar o tempo que passou parada. — … É mesmo…! O controle de danos…!
A onda de desespero a motivou a voltar correndo para o posto de trabalho.
Chloe Harris trabalhava no setor de Controle de Mídias e um segundo ou dois distante das telas significava o risco de alguém salvar algo que não deveria.
“Eu me pergunto quantos portais já tentaram noticiar a essa altura, além das pessoas espalhando vídeos.”
Se houvesse notícias ou não, ela não tinha a energia de pegar o celular e descobrir, em face dos grandes pesos do trabalho.
Vídeos e registros surgem aos montes, mas a tecnologia de rastreamento acaba os barrando tão logo sejam lançados. Somente fontes que protegem a segurança nacional são permitidas e o trabalho das mesmas é até incentivado.
“Desinformação pelo bem da nação”, uma frase grudenta, proposta em reunião secreta com o presidente há uns dois meses. Desde então, essa política é seguida mais à risca do que nunca.
— Tomar café nesse humor não vai fazer bem, mas que se dane…
As planilhas bobas sobre transações monetárias de multimilionários iriam esperar; quebrar a apreensão adquiriu prioridade na lista pessoal dela.
Marilyn caminhou sem prestar atenção no caminho e, de mente cheia, não percebeu a conveniente aproximação, em tempo pior, impossível.
— Isso aqui tá cansando a todos nós, né? Huff! — Aquela voz animada soou ao lado do ouvido esquerdo.
Um pouco de susto causou um despertar a mais, até notar com clareza a presença da face mais comentada pelos vários andares.
— Ah, desculpa! Eu tô te atrapalhando, né? Poxa, foi mal!
Robinson sorriu de orelha a orelha, quase largando a pilha de folhas A4 ao balançar a mão para pedir desculpas; nova no ramo, ser um pouco atrapalhada podia ser perdoado.
— Não é nada disso… — respondeu a loira com um pouco de peso na voz. — Eu quem devia não ter ficado com a cabeça flutuando por aí.
— Não se culpe por isso! — A réplica veio de imediato. — Não tínhamos como saber que aquilo ia acontecer. Não podemos nos culpar por um erro que não cabe a nós assumir!
“Imaginei que diria algo nesse tom”, pensou Perez, analítica. “Mas o fato é que tínhamos, sim.”
Os agentes de campo deveriam ter sido mandados voltar e recuar. De tal forma, ao menos teriam menos baixas, para quase o mesmo efeito.
Agora, só restava amargar as perdas e a derrota, e se render ao plano maníaco de Grazianni.
— Ei, eu sei que essa não é a resposta certa também, tá? E se passasse pelas nossas mãos, eu não apoiaria — começou. — O Diretor vai ser penalizado por isso, pode acreditar.
A informação entrou em choque com as noções pré-concebidas da funcionária experiente.
— Também consigo ver que ele faz várias decisões de má fé — chegou mais perto. — Na minha honesta opinião, não vai demorar muito para algo acontecer e ele ser retirado.
As palavras ecoaram por dentro — não tanto opinião, mas com ares de ameaça, de uma profecia a ser cumprida —, a levando a congelar.
— Mas, bem! Vamos esperar o futuro! — distanciou-se para a posição original, retomando o tom altivo e vivo de antes. — Oh, e é um prazer! O senhor Walker falou muito de você! É mesmo linda como ele sempre faz questão de dizer!
E tal qual resfriou até parar, o cumprimento aqueceu-lhe a alma, a ponto de quase corar.
— Ele… Ele falou…?!
— Falou sim, e é a verdade! — Robinson sorriu. — Cada palavra dele a seu respeito é uma música!
E como se sequer houvesse existido, a pressão do dia ruim e do terrível tópico sumiram como vapor escapando da panela.
A própria voz de Robinson era viciante — a presença dela iluminava o lugar e trazia vida aos tons de cinza —, tal qual respirar o ar puro do campo, ao fim de anos andando entre poluição.
De certo modo, mais parecia Magia.
— Espero poder conversar mais no futuro. — Ela calmamente segurou a mão fria de Marilyn e a envolveu com seu calor. — Até lá, vamos trabalhar bem, certo?
Negar tais palavras soava como um absurdo impossível e, de pronto, novo ânimo para continuar o dia a invadiu.
— Porque só assim os nossos planos vão funcionar! Precisamos ser perseverantes em face das dificuldades do caminhos, Sra. Perez!
Os primeiros raios de sol ao fim da mais extrema nevasca; estandartes da esperança de dias melhores…
— Certinho? — sorriu, mostrando o fio branco dos dentes.
Não há medida cabível para mensurar a paz interior vivenciada por Marilyn, ao fim do contato.
— Ah, eu preciso ir…! Olha, depois a gente conversa melhor! — soltou a mão com certa pressa. — Ai, ai! Desculpa a demora, Chloe…! Eu tô chegando!
Ninguém se importou negativamente com a correria dela pelo escritório e, se qualquer coisa, a reação foi o contrário do esperado.
Os funcionários riram — alguns mais e os mais restritos, menos — e, ao final, a escuridão perfurante se desprendeu do espaço, dando lugar a novos e frescos ares de luz e calor, sensíveis em cada célula.
— Aqui estão — posicionou a pilha ao lado da impressora na mesa da ruiva, cheia de cuidado. — Foi mal por ter custado, de verdade…!
Longe do centro das atenções, a agente levou a mão direita ao peito, para notar o quanto, de repente, a ideia maluca de antes já não tinha mais ares tão impossíveis.
“... Será que eu posso…?”
A vontade de fazer algo a respeito se tornou umas vinte vezes maior e, se antes já a remetia de ser apenas o certo a se fazer, no momento atual adquiriu um caráter mais urgente, quase como…
“... Uma missão…” tremeu, e o próprio sangue congelou ao pesar na balança os riscos e perigos por trás. “... Quero muito fazer… eu preciso.”
O lado racional, em geral dominante, gritava e dizia, com todas as palavras, o quanto tal ideia era uma loucura.
Colocar esse plano em prática não apenas arruinaria quaisquer chances futuras de respirar no dia seguinte, mas também colocaria outras vidas em risco. Todas as portas diziam “não”, mas, por um motivo qualquer…
“... Será que… Será que eu posso tentar algo assim…?” grunhiu para si, incapaz de desviar o olhar da animada Agente Robinson. “... Será que eu teria essa coragem…?”
O lado mais emotivo e carinhoso, suprimido no exercício frio do trabalho, clamava para ser ouvido, falando na voz mais alta que, se houvesse uma chance, qualquer coisa podia se tornar real.
“... Eu pensei nesse plano…” mordeu a unha do indicador, perdida nas próprias hesitações da carne. “Talvez…”
Em seu coração, passou a existir uma chama ardente — a vontade de fazer acontecer —, viva, em face da falta de coesão ou lógica, somente a garantia de que iria dar certo.
“Preciso pensar”, suspirou fundo. “Eu… preciso pensar um pouco melhor… Talvez… Talvez, se… Talvez se falar com ele, eu…!”
Se jogou na cadeira e debruçou-se sobre a mesa, abandonando o trabalho na escolha de focar em tamanha “besteira” e, ainda assim, seus olhos não escapavam da figura da novata.
— Ei, Robbie! — Chloe a chamou, cheia de brilho. — Onde é que você vai almoçar hoje?
— Uh, eu? Bem… — A recém-chegada tocou o queixo, pensativa. — Qualquer lugar, eu acho?
— Ah, então você não tá ocupada?! — O nível de entusiasmo da ruiva subiu de 10 a 100 em questão de dois segundos. — Então vem comigo!
“...!”
A atenção focada da loira foi retribuída de longe, notada com outro singelo sorriso, um pouco mais tímido, porém tão expressivo quanto, durando menos de um segundo; o sorriso que amoleceu, ainda mais, os resquícios de rocha em seu coração.
— Pode ser sim! — Ao fim do breve contato, virou-se de volta para Chloe. — Nós duas!
— Então tá marcado!
No fundo, ela compreendeu que os dias não mais passariam do modo normal; uma nova sensação lhe tomava o peito, preenchendo uma brecha no coração e a dizendo que poderia fazer de tudo.
“Eu posso…” disse para si, convicta. “E eu vou.”
A ideia louca não mais soava como tal, e sim como a verdadeira e única coisa certa a se fazer, o caminho viável para se resolver…
… E ela faria acontecer.