Uma Cidade Pacata – Olhos Voltados para Mim
Capítulo 159: Vigilância
— Ai, ai… Hnng — suspirou o homem sentado na cadeira giratória, em cansaço. — A cada dia só piora, mas o trampo ainda é bom e paga bem…
Em frente a ele, várias telas se dispunham, sobre, abaixo e aos lados, umas das outras, exibindo as filmagens coletadas dos diversos espaços e cantos da construção acima.
— Colocaram isso nas minhas costas, mas não sei se vou conseguir recuperar essas imagens… Seja lá como fizeram, deram uma arruinada não só nas gravações do momento, mas também corromperam o arquivo todo do dia.
A grande sala de videomonitoramento se encontrava no segundo andar subterrâneo, escondida de forma estratégica, bem abaixo do local onde os sujeitos de pesquisa estão sendo monitorados.
— Que fita! Vou fazer o que posso, e tomara que não sirvam minha cabeça numa bandeja… Mas e aí, o que ‘cê acha que vai dar? Tá tão calado…!
O chamado em voz alta foi suficiente para provocar a atenção do único outro sujeito na sala de paredes acinzentadas e luzes mais baixas que o recomendável.
— Não pode falar um pouco mais baixo, Jeff? Eu tô tentando focar aqui — disse a companhia mais resguardada, digitando algo no laptop sobre a mesa. — Eu também tenho trabalho para terminar e vão degolar o meu pescoço do mesmo jeito que o seu, se não estiver entregue até amanhã.
— Tch… Cara chato! — rebateu, levando os braços para cima da cabeça. — Eu aqui, doido para conversar um pouquinho sobre os nossos futuros como os novos espetinhos da firma, e nem assim você me dá um sosseguinho dessa frieza, Monroe? Falando em mau-humor…!
Por mais que exagerassem nas possíveis consequências, os resultados de não poder fornecer informação tão crucial costumavam ser brutais; os superiores sempre liam todas as páginas dos relatórios, e caso vissem alguma brecha…
— Já chequei com todos os sistemas, mas aí vão inventar alguma coisa na hora… Por agora, eu já me resignei a pensar nas desculpas que vou dar quando me olharem feio..
Entendiado e, em simultâneo, bastante ansioso, o mais enérgico dos dois apertou a barra de espaço no computador ativo à sua esquerda, dando play em uma filmagem do sétimo andar, corredor leste.
— Olha para isso… — suspirou. — Já rodei em tudo o que dá, mas não deixa de ser esse monte de estática!
Os métodos de recuperação midiática da organização se provaram ineficazes em sequer diminuir a profunda poluição visual no monte de pixels em mudança contínua na tela.
No segundo 23 do décimo quinto minuto das 9h da manhã de 21 de Junho, os agentes e investigadores realizavam suas rotinas normais, indo e voltando de caras fechadas, tão mortos por dentro quanto esperado.
Porém, bastava ir cinco segundos no futuro para se perder o foco absoluto. De repente, as pessoas na filmagem pararam, olharam para a aproximação de algo no ponto cego inferior da câmera e o filme se degradou.
— Saca isso aqui, ó — chamou Jeff.
— Eu já vi isso umas dez mil vezes. Acha que eu também não tô com a bronca de consertar isso aí?
— Putz, cara. Às vezes, eu me pergunto o quanto você teve que mentir sobre si mesmo para acabar casado e com filhos…!
No segundo 28, já não havia mais um único pedaço compreensível em meio ao monte de verde, azul e vermelho na tela, que passou a piscar de forma quase imperceptível, junto a um terrível chiado.
— A minha esposa não tem nada haver com o trabalho — cedeu, fechando o laptop e mudando o sentido da cadeira, para ficar de frente ao monte de cor. — E não vai dar para colocar isso em ordem. Dito isso…
Monroe tomou a liberdade de operar o computador, passando frame por frame dos segundos finais filmados.
— Eles têm algum tipo de recurso que possibilita agir com discrição, sem necessariamente quebrar os arquivos e, pelo que tudo indica, não é coisa que mera tecnologia faça.
O homem mais sisudo avançou cerca de quinze frames, até atingir um ponto específico no segundo 27.
— Olha ali — apontou para um pequeno bloco de cores alteradas. — Você não pegou esse detalhe.
Um conjunto de pixels deformados surgiu do ponto cego inferior, seguindo em trajetória retilínea, em direção a um agente. Quadro por quadro, a deformidade se movia em velocidade alarmante, até quase acertá-lo.
— Certeza que isso não é só um erro na gravação? — questionou Jeff, coçando a fina barba. — A firma sempre manda a gente ser cético sobre isso… E olha! Você tá falando de livre e espontânea vontade!
— Hunf — bufou Monroe, revirando os olhos. — É que eu comparei com isso aqui, e é basicamente o mesmo efeito, em uma escala muito reduzida.
Ele apertou o play, e logo ao iniciar, a familiaridade das imagens levou ao questionamento certeiro.
— Isso… Não são as filmagens que a gente recuperou da Elderlog High…? Ei, espera aí…
— Tá percebendo agora?
O corredor vazio da escola repentinamente se viu tomado por espessas ondas de falhas nos pixels em se agrupar em boa resolução, como se a câmera tivesse sido submergida em água suja.
— Isso aconteceu no exato segundo onde registramos aquela explosão de PEM que matou os insetos e destruiu os sistemas elétricos dos carros. De toda forma, não dá para fazer comparação quanto às escalas dos eventos, mas…
E tal qual no registro mais recente, o arquivo terminou ao exibir uma tela sem sentido, repleta de cores espalhadas.
— É basicamente o mesmo princípio — finalizou Monroe. — Huh?
Uma notificação do sistema interno de computadores surgiu no canto da tela e, sem hesitar, o mais sério dos dois abriu o conteúdo.
— Um relatório? Mas já? — Jeff se arrumou na cadeira. — E esse outro arquivo é o quê?
— Parece que é um anexo dirigido ao pessoal que vai ficar responsável por uma próxima missão… — abriu, e tão logo o fez, os olhos quase lhe saltaram da cara. — … Santo Deus… Isso é ambicioso demais…
— O que é? O que é?! Deixa eu ver…!
Ao assumir o comando, o jovem Agente Jeffrey deu de cara com o mais conciso conjunto de medidas já visto ao longo de seus cinco anos na profissão.
O arquivo em questão se tratava de um esquema de cobertura, algo comum em tal meio de trabalho, se tratando de um plano bem arquitetado para esconder informação confidencial.
— … É sério isso? Um vazamento de gás…?
Contudo, no caso em questão, as coisas assumiram outra proporção.
— Eles vão bombardear o hospital e arredores, e dizer que a culpa foi de um dano crítico nas tubulações de gás…?
O documento continha até mesmo esboços de notícias e manchetes de jornal digital a respeito da futura “tragédia”, construídas para pintar os eventos como apenas mais uma série de fatalidades.
— Eles planejam chutar o governador de Montana e usar ele de bode expiatório nessa — afirmou o mais velho e mais calmo. — Parte do plano envolve não deixá-lo ciente da nossa atividade… Precisamos que ele perca o chão de verdade quando receber a chuva de críticas… O presidente vai ser afetado também, mas ele já está ciente, óbvio… Até vai dirigir uma verba medonha para reparar os danos.
Um plano meticuloso, construído com base no desespero de ocultar uma derrota completa.
— Vão associar o fogo na escola com isso, dizendo se tratarem de parte do mesmo planejamento urbano, incorrendo assim no fator comum “infraestrutura”… Que coisa…
No fundo, só mais um curativo sobre a ferida aberta e crescente de “humanos com superpoderes existem”.
— As grandes massas não vão comprar isso… não tem nem perigo. — Monroe andou até a cafeteira e encheu para si um copo do estimulante amargo. — A essa altura, a gente só tá brincando de enganar as pessoas lá fora, e… por falar em brincar…
Os olhos dele focaram em uma das telas em específico, sua atenção presa ao tomar o próximo gole.
— O que esse pirralho tá fazendo…? — fez careta ao beber mais um pouco.
— Qual pirralho? O que tentou fugir?
— O mais novo aqui — aumentou a ênfase ao apontar. — O tal de [Quebra-Mentes}... Presta atenção aí, na do canto.
A pequena tela, a expor a sala branco-azulada, se expandiu e tomou as outras ao fim de um curto comando no teclado e, de repente, a coletânea de registros ao-vivo deu lugar a uma versão “zoom” do garoto em sua cela.
— Haah… — suspirou Jeff, soando um tanto surpreso com o que via. — Não seria a minha opção de coisa para fazer se fosse eu preso em uma dessas, mas… Cada um com os seus objetivos, né? Acha que ele tá tentando planejar a fuga ou coisa assim?
— Eu sei lá — rebateu Monroe, já tendo finalizado o café. — Mas a gente tem que escrever isso como um adendo do relatório; o comportamento do moleque é de extrema importância para o presidente, então ele vai querer saber.
O mais próximo das telas pressionou a barra de espaço, o que fez o som reverberar pelas paredes fechadas, demarcando uma contagem.
— 33… 34… 35… 36… É… acho que é o limite do que eu suporto por agora…
— Ok, isso não é normal… Quer dizer, eu até entendo ele estar malhando no meio da cela… quer dizer, não, eu não entendo não, é só que…
O objeto de estudo descansava de uma série de exercícios, sua respiração problemática aparecendo bem visível, mesmo sob uma qualidade de imagem inferior.
Gotas grandes de suor escapavam da testa dele, acumuladas na veste branca padrão para os encarcerados, formando um contraste contra a pele escura.
A prática em questão podia até ser entendida, graças ao tédio de se ficar preso em um local sem variedade ou estímulos, porém, ao invés de apenas flexões ou abdominais, ele erguia a pesada estrutura metálica da cama com surpreendente facilidade.
— Será que a gente chama alguém…? Fala disso para o responsável por ele, ou…
— Começar de novo… Vou tentar fazer ao menos mais trinta…
— Ei, ei, ei…! Esse bagulho não precisa de umas duas pessoas só para tirar do lugar?! Então como ele tá levantando e baixando tão facinho assim?! — Jeff afiou os olhos ao questionar. — Isso era para ser impossível para alguém com esse corpo!
Além de apenas erguer e baixar o enorme peso de forma perpendicular ao peito, o movimento continha características coesas o bastante para ser chamado de “perfeito”, sem aparentes perdas de equilíbrio ou muitos tremores.
— Não é coisa de gente… Esse moleque…
… “Pode acabar trazendo problemas no futuro”, foi o que ele pensou em dizer, antes das luzes se apagarem.
CLICK!
— HAAAH?! Monroe?! Qual é, cara…! Não tem graça…!
A lanterna tirada do bolso de Jeff iluminou o perímetro parcialmente escuro. Em caso de uma falha total de força, os geradores de emergência teriam sido ativados, mas o funcionamento da central de monitoramento indicava não ter sido o caso.
Logo, Jeff tomou por subentendido que seu colega apagou a luz, com a intenção de assustá-lo.
— Qual foi? Tu nunca manda uma dessas…! — falou ao vazio, ouvindo apenas a própria voz.. — Monroe… Acende essa luz logo, vai.
Porém, os segundos passaram, não houve resposta e, para piorar a situação, o mais velho e responsável do par não parecia estar em lugar algum nas proximidades.
— … Monroe…?
Levantou, de pernas um pouco trêmulas e, devagar, começou a se distanciar, explorando a sala de tamanho médio, a contar com mais quatro computadores inutilizados e uma pequena estante de arquivos físicos inúteis.
— Ok, ok… Teve graça! Assustou um pouquinho, mas tá bom! A gente precisa trabalhar sério aqui! Bora!
Mas não houve o menor dos sinais quanto à presença do outro agente, com exceção de um objeto no chão, ao lado da garrafa de café: o pequeno copo de isopor, escorrendo os restos.
— … Me desculpa pela abordagem pouco sutil… É que eu ainda tô aprendendo, sabe? Acabei de chegar!
Adrenalina invadiu o sistema dele em um fragmento de segundo; a pessoa a falar não se tratava de Monroe.
— Quem é voc… ARGH! — tentou se virar de pressa, puxando a arma da cintura no processo, contudo, falhou mediante a afiada dor contra a lateral do pescoço.
— Vou precisar que você durma um pouquinho, mas não vou fazer nada de mau! Quando acordarem, sequer vão lembrar disso!
“Uma… invasora…!”
Jeffrey insistiu na tentativa de atirar na figura feminina oculta pelas sombras, sobrepujado pela profunda letargia provocada por seu ataque.
“Eu… preciso… lutar…”
— Desculpinhas! — Conforme a visão escureceu, a última coisa vista foi o branco e brilhante sorriso dela. — Vai ficar tudo bem, é uma promessa.
“Eu…”
Como um saco de batatas, o homem treinado colapsou no chão frio.
— Juro que não vou mexer onde não devo, só preciso checar uma coisinha.
Hannah caminhou com calma até o painel de controle do sistema de videomonitoramento, observando com interesse o novo hábito adquirido por seu irmão.
— Hmm… Ok, eu diria que isso é até esperado depois do que aconteceu lá na escola… Uma hora ou outra, ele iria acabar descobrindo — sorriu. — De qualquer forma, tá mandando bem, maninho!
A agilidade em operar o computador mais próximo a levou a uma série de arquivos confidenciais em poucos segundos, liberados para visualização serem incluídos os dados do Agente Monroe.
— Interessante — disse em voz alta. — O arquivo não só não aparece se não tiver as credenciais certas, mas os próprios valores no espaço de armazenamento do servidor compartilhado são mascarados para quem não tem esse acesso! Na minha conta, os arquivos contabilizavam 2GB e meio a menos…!
Como um funcionário com quase dez anos de carreira e patente considerável, o Agente Monroe detinha acesso de vários documentos de caráter sensível.
— Vamos ver, vamos ver… Ah, aqui! “Caso Montana”... que pouco original!
O clique revelou centenas de arquivos e registros diversos, de fotografias a datas de vários eventos marcantes na cidade, relativos aos “ataques terroristas”.
Porém, embora fosse tão interessante querer saber cada detalhe, Hannah logo encontrou o que tanto procurava.
— Aqui! É isso! — deu dois saltinhos de vitória. — É exatamente o que eu precisava!
Todos os 1,5 gigabytes de informação logo se viram prontos para modificação imediata, abrindo um leque de possibilidades tão promissor quanto uma mina de ouro.